• Nenhum resultado encontrado

Fandango paranaense da Ilha dos Valadares – processos de tradução cultural e aprendizagem inventiva na dança

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Fandango paranaense da Ilha dos Valadares – processos de tradução cultural e aprendizagem inventiva na dança"

Copied!
151
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

MESTRADO EM DANÇA THAIS DE JESUS FERREIRA

FANDANGO PARANAENSE DA ILHA DOS VALADARES – PROCESSOS DE TRADUÇÃO CULTURAL E APRENDIZAGEM INVENTIVA NA DANÇA

SALVADOR 2016

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

THAIS DE JESUS FERREIRA

FANDANGO PARANAENSE DA ILHA DOS VALADARES – PROCESSOS DE TRADUÇÃO CULTURAL E APRENDIZAGEM INVENTIVA NA DANÇA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial de conclusão do Mestrado em Dança, para obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Helena Alfredi de Matos

SALVADOR 2016

(3)
(4)
(5)

Ao meu amor, Nicolas, pequeno companheiro de vida e pesquisa. À minha mãe, alicerce e porto seguro da minha trajetória. A todos os meus mestres de sempre.

(6)

AGRADECIMENTOS

À Lúcia Matos pelas orientações provocativas que desestabilizaram ao mesmo tempo em que me motivaram a percorrer os caminhos da pesquisa, ao seu rigor e confiança necessários neste processo, por me direcionar fazendo a escrita pulsar.

Ao Governo do Estado do Paraná por ceder a licença de dois anos para a realização deste projeto. À Capes pela bolsa de estudos que viabilizou a dedicação necessária.

Aos professores e alunos do Programa de Pós-Graduação em Dança pelo compartilhamento dos múltiplos caminhos de se fazer/pensar dança. Pelo saboroso percurso do conhecimento, que transbordou questionamentos e descobertas.

À professora Daniela Amoroso, grande entusiasta da cultura popular, incentivadora desta pesquisa, por acreditar no Fandango como campo potencial para investigação.

Ao professor Pedro Abib, por proporcionar o diálogo entre a cultura popular e educação na academia, por aproximar os mestres e seus saberes populares da Universidade.

A todos os aprendizes da dança e aos mestres dos grupos de Fandango: Mestre Romão, Mestre Nemésio, Mestre Brasilio, Mestre Aorélio, por acolherem com amor minha pesquisa, abrindo seus ensaios, bailes e a própria casa, participando prontamente deste processo.

Ao Mestre Zeca pelas aulas de viola caipira e rabeca, que transbordaram contos, causos e sorrisos em meio às notas musicais.

À família Pontes, Deneris, Alcides, Márcio e Fabíola, que me acolheram de forma generosa para residir em sua casa na Ilha dos Valadares durante a pesquisa de campo.

Ao Siqueira, cinegrafista do Fandango, por disponibilizar todos os registros audiovisuais durante a imersão no campo.

À Fumcul (Fundação Municipal de Cultura e Turismo de Paranaguá) pela disponibilização de materiais e por acreditar nesta pesquisa.

A José Maria pelos cafés e prosas no Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, que esclareceram muitas dúvidas e proporcionaram descobertas inimagináveis sobre a história de Paranaguá e da Ilha dos Valadares.

(7)

Ao Centro Municipal de Educação Infantil Arcelina Ana de Pina, da Ilha dos Valadares, por acolher o Nicolas e inseri-lo no Projeto de Fandango como pequeno folgador, por proporcionar encontros das crianças com a cultura caiçara.

Aos gregos e troianos, Mi Bucadim Mais, Carlota Joaquina, Drink Neves e Marta Bausch pelos caminhos cruzados e experiências compartilhadas.

À Lisette Schwerter pela tranqüilidade e paz da sua companhia, Ligia Martins pelo seu olhar crítico e determinado me possibilitando ver sempre além, Michele Favero pelas longas conversas, disponibilidade e apoio constante e Railda Prudente por se fazer sempre presente na UFBA, em espetáculos e nos sambas, enfim a todas pela amizade além do espaço da Universidade, pelo caminhar juntas neste mestrado.

A toda minha família de Clevelândia pela compreensão nas distâncias e ausências durante este processo, pelo amor que transpõe qualquer dificuldade. Às crianças da dinda, Riccardo e Cecília, por todos os encantos e coloridices.

Ao meu amor, Alexandre, pela paciência e apoio neste período final da pesquisa, por compartilhar sonhos.

À minha família baiana, em especial Áurea e Enzo, por nos ter acolhido nestes dois anos, nos fazendo sentir em casa, por todo amor e cuidado recebidos.

(8)

Com nome de Deus começo Com Deus quero começa Sô muito chegado a Deus Sem Deus não posso passa. Versos do Fandango Paranaense

(9)

RESUMO

Essa dissertação trata dos processos de tradução cultural e de aprendizagem inventiva na dança do Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares, Paranaguá. O processo de tradução cultural consiste em um olhar para as tradições, atualizado e imbricado na dinamicidade da cultura popular, articulando, para tanto, perspectivas dos autores Bhabha (2013), Hall (2013) e Santos (2010). A aprendizagem inventiva (KASTRUP, 2007) se dá pela problematização e invenção, e essa proposta é deslocada para analisar os processos de ensino-aprendizagem presentes na dança popular, mais especificamente no Fandango Paranaense, considerando como um campo da educação não-formal. Essa manifestação popular foi entrecruzada por processos de resistência e ressignificação, ao mesmo tempo em que por colonização e recolonização, possibilitando, de um lado, a inventividade e, de outro, a obliteração do processo de criação. Assim, a aprendizagem da dança popular brasileira, no caso o Fandango, se apresentou por diferentes aspectos, pela repetição e replicação de movimentos e pela ação criativa e inventiva nos estados de corpo. A cartografia (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009), como uma tipologia das pesquisas de cunho qualitativo, foi adotada como percurso metodológico, constituído no ato de pesquisar, visando entender a relação entre cultura e educação. Assim, a imersão no campo da pesquisa, a contextualização do Fandango e as ações corporificadas que emergiram do processo constituíram os caminhos. Para tanto, algumas pistas se compuseram delineando a pesquisa de campo: corpo-dança, corpo-texto e corpo-dança-caiçara; e para complementar as pistas norteadoras se criaram micro pistas que são: parar para olhar, ouvir e sentir; pousar e desfocar a atenção; intervir sem inferir; registrar sensações e anseios; acompanhar processos; e descrever ações. As pistas criadas desenharam caminhos para a compreensão da problemática, que permitiu, pela observação participativa, a tradução cultural do Fandango Paranaense e o entendimento dos processos de aprendizagem na dança popular brasileira que apresentaram a ação corporificada de distintas formas, inventivas e/ou repetitivas, com as replicações abarcando as diferenças.

(10)

ABSTRACT

This dissertation is about the processes of cultural translation and inventive learning in dance of the Fandango Paranaense by Island Valadares, Paranaguá. The process of cultural translation consists in a look to the traditions, updated and deep in the dynamics of popular culture, articulating, for both, perspectives of authors Bhabha (2013), Hall (2013) and Santos (2010). The inventive learning (KASTRUP, 2007) occurs by the problematization and invention, and this proposal is shifted to analyze the teaching-learning processes present in popular dance, more specifically in the Fandango Paranaense, considering as a field of non-formal education. This popular manifestation was interlaced by resistance and the resignification‟ process and in the same time for colonization and the recolonization enabling on one side the inventiveness and another the obliteration of the process of creation. Like this, the learning of Brazilian popular dance, in case the Fandango, if presented by different aspects, by repetition and replication of movements and by the action creative and inventive in the states of the body. The Cartography (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009), as a typology of the research of qualitative nature, was adopted as a methodological path, consisting in the act of search, aiming to understand the relation between culture and education. So, immersion in the field of research, the contextualization of the Fandango and actions embodied which emerged from the process, constituted the paths. So that, some tips is comprised outlining the field survey: body-dance, body-text and body-dance-caiçara; and to complement the tips guiding questions it was created micro tips that are: stop to watch, hear and feel; land and not give attention; intervene without infering; recording of sensations and desires; follow procedures; and describe actions. The tips created drew paths for the understanding of the problems that allowed, by participant observation, the cultural translation of the Fandango Paranaense and the understanding of the learning process in Brazilian popular dance that presented the action embodied in distinct forms, inventive and/or repetitive with the replications embracing the differences.

(11)

LISTA DE SIGLAS

CMEI – Centro Municipal de Educação Infantil

FUMCUL – Fundação Municipal de Cultura de Paranaguá IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(12)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Foto tirada na Associação de Cultura Popular Mandicuera - Ilha dos

Valadares ... 17

Figura 2 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão – Mestre na janela de sua casa. ... 25

Figura 3 - Desenho do diário de bordo – Fandango e seus atravessamentos – com interferências do processo de análise dos dados. ... 28

Figura 4 - Fandango Bailado. ... 29

Figura 5 - Fandango batido - diferença nos modos de bater o tamanco. ... 97

Figura 6 - Ensaio Grupo Folclórico Mestre Romão ... 105

Figura 7 - Nicolas e coleguinhas do CMEI Arcelina Ana de Pina em apresentação de Fandango ... 112

Figura 8 - Nicolas e Heloisa representando o Fandango (FUMCUL) na Festa do Rocio - Nov. 2015. ... 112

Figura 9 - Ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares. ... 113

Figura 10 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão - Outubro 2015. ... 114

Figura 11 - Ensaio do grupo Pés de Ouro. ... 115

Figura 12 - Apresentação do Grupo Pés de Ouro - Boca Maldita - Curitiba - Out. 2015. ... 117

Figura 13 - Apresentação do Grupo Folclórico Mestre Romão - Boca Maldita - Curitiba - Out. 2015. ... 117

Figura 14 - Grupo Mandicuera na Festa do Fandango Caiçara - Ago 2014. ... 119

Figura 15 - Grupo Mandicuera - Baile do Fandango no Mercado do Café – Nov. de 2015. ... 119

(13)

SUMÁRIO

DO EMBALO DA SANFONA ÀS BATIDAS DO TAMANCO – descortinando uma

experiência singular de fronteiras, raízes, deslocamento e descobertas ... 11

1 AMANHECEEE!!!! O FANDANGO DA ILHA DOS VALADARES – UMA MANIFESTAÇÃO CAIÇARA SOB PISTAS CARTOGRÁFICAS ... 18

2 TRADUÇÃO – O ESPAÇO FRONTEIRIÇO DA CULTURA ... 32

2.1 RESSIGNIFICAR E TRADUZIR – ENTRE-LUGARES DA CULTURA POPULAR ... 32

3 DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS – REMINISCÊNCIAS ... 50

3.1 DOS BATIDOS AOS BAILADOS – CONTEXTUALIZAÇÃO DO FANDANGO 50 3.2 DANÇAS FOLCLÓRICAS OU DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS? REVISITANDO O FOLCLORE, AS TRADIÇÕES E A CULTURA POPULAR ... 60

3.3 DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS – DISTINTAS CONFIGURAÇÕES .... 75

4 CAMINHOS E ENCONTROS – EDUCAÇÃO, CULTURA E PROCESSOS DE APRENDIZAGEM NAS DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS ... 87

4.1 CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO – RELIGAÇÃO E ECOLOGIA DE SABERES NO FANDANGO PARANAENSE ... 89

4.2 DANÇAR FANDANGO? PROCESSOS DE APRENDIZAGEM INVENTIVA .... 95

5 Ô DE CASA! ENTRE TAMANCOS, RABECAS, CAIÇARAS E BARREADOS – OLHARES E SABERES DA CULTURA ... 110

5.1 DESVELANDO A ILHA E O FANDANGO – A TRADUÇÃO DE UMA TRADIÇÃO ... 110

5.2 FANDANGO - ENTRE A CRENÇA RELIGIOSA E A CULTURA POPULAR . 120 5.3 FANDANGO É DIVERTIMENTO TRABALHADO? CARA-CACHÊ! ... 123

5.4 FANDANGO – REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL BRASILEIRO (IPHAN) ... 127

ARREMATE – ao som e na reverberação dos batidos do tamanco ... 133

REFERÊNCIAS ... 139

(14)

11

DO EMBALO DA SANFONA ÀS BATIDAS DO TAMANCO – descortinando uma experiência singular de fronteiras, raízes, deslocamento e descobertas

A dança permeou minhas vivências e experiências desde a infância, iniciou quando meu avô, que era conhecido como “Gaúcho”, me levava aos bailes do CTG (Centro de Tradições Gaúchas) vestida de prenda1 e me ensinava os primeiros passos. Ele era o típico personagem rio-grandense e, além de ter uma grande barba grisalha, estava sempre pilchado2 com bombacha, botas e chapéu, e no inverno usava seu pala3. Foi com ele que aprendi a dançar meu primeiro vanerão4, e ele me encantava só de olhar!

Quando entrei no 1º ano do Ensino Fundamental participei da minha primeira apresentação gaúcha, a “Dança do Pezinho5”, popular no sul do Brasil, dançada por

muitas crianças por ser uma coreografia simples e cativante. Por volta dos meus sete anos, minha família se mudou para o Rio de Janeiro e moramos ao lado de um barracão que confeccionava figurino para a escola de samba “Mocidade Independente de Padre Miguel”. Naquele universo de cores e texturas minha imaginação fluía e se transformava, ganhava sacolas de penas coloridas e sobras de figurinos, o que me proporcionava novos encontros com a cultura popular, em especial o samba. No carnaval de rua do Rio de Janeiro a vibração e energia dos “bate-bolas6” ficaram em minha memória. Na mesma época, tive minha primeira

paixão musical, que foi o “Canto da Cidade”, de Daniela Mercury, e também com meus 8 anos foi minha primeira coreografia.

Quando retornamos para o sul minha paixão pelos carnavais foi aguçada e durante oito anos organizei bloco, confeccionei fantasias e ensaiava coreografias para cinco noites de carnaval. Na pequena cidade em que residia, Clevelândia-PR, o

1

Prenda, s. Joia, relíquia, presente de valor. Em sentido figurado, moça gaúcha. Prendado, s. Reinado. (É um neologismo criado para designar o tempo em que a Primeira Prenda exerce o seu reinado). In: Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. (NUNES, 1998, p. 395).

2

Pilcha é a indumentária tradicional da cultura gaúcha, utilizada por homens e mulheres de todas as idades. Portanto, pilchado é estar vestido a caráter, com a vestimenta gaúcha (NUNES, 1998).

3

O pala ou ponche é uma vestimenta tradicional dos gaúchos, usado para proteger do frio e do vento, por sobre a vestimenta usual. Também pode servir como cobertor improvisado (NUNES, 1998).

4

.Vanerão é um tipo de dança típica do gaúcho, uma das mais populares no sul do Brasil. O vanerão com sua vivacidade exige bastante energia, tanto dos músicos – em especial aos gaiteiros – como dos bailadores. Os passos de Vanerão devem ser executados em três movimentos: dois para a esquerda e um para a direita.

5O “Pezinho” é uma dança popular rio-grandense em que todos os dançarinos obrigatoriamente

cantam, não se limitando, portanto, à execução da coreografia.

6

Personagens carnavalescos fantasiados, característicos do subúrbio (zona norte e zona oeste) do Rio de Janeiro.

(15)

12

carnaval tradicionalmente acontecia no clube no ritmo das marchinhas, e todo o sudoeste do Paraná era atraído para nossa festa.

Paralelo a isso, durante a adolescência participei de um grupo de danças gaúchas, orientado ora por meu professor de Educação Física, Arthur, que também tocava gaita (sanfona), ora por minha professora de arte, Nádia, casada com um músico, que em horário extracurricular, e muitas vezes em sua casa, orientava nosso grupo. Através destes professores tive maior contato com a dança, a arte, com as músicas e tradições gaúchas. Neste período fazíamos apresentações no CTG (Centro de Tradições Gaúchas), Clube Cultural e nos eventos escolares organizados pela Secretaria de Educação do Estado e Município, e quando era sediado Rodeio Crioulo no Parque de Exposições também participávamos enquanto grupo.

Quando ingressei na graduação optei por Educação Física, e nela encontrei a possibilidade de trabalhar com minhas paixões, a dança e o esporte.

No início da graduação realizei um projeto com crianças em situação de risco social, alunos da rede municipal de Clevelândia, e apresentamos a coreografia “Mostra sua cara” no Festival de Arte do Paraná, sendo convidados a reapresentar várias vezes, e recebemos o título de destaque do FERA (Festival de Arte do Paraná). Foi um momento marcante, pois foi meu primeiro trabalho com as danças populares das regiões brasileiras. As crianças que faziam parte do projeto eram talentosíssimas e foram imprescindíveis para o reconhecimento do projeto no Estado e Município.

Na graduação não tive uma experiência muito positiva com a Dança, pois a professora que ministrava a disciplina era formada em Direito e tinha no currículo anos como bailarina do Teatro Guaíra. Sentia falta da didática nas aulas, além de os conteúdos serem específicos da dança que ela praticava, porém encontrei outros espaços de formação fora da academia. Durante dois anos fui bolsista da Escola de Dança 8 Tempos, e, neste local de aprendizagem, pude conhecer outras danças de salão além das gaúchas. Recebíamos na Universidade (UFPR, em Curitiba) grupos de estrangeiros, japoneses, alemães, entre outros, e eu, como bolsista Pibic dava aulas de samba, forró e danças gaúchas para estes estudantes.

O despertar apaixonado pelas cores e sabores da cultura popular cresceu conforme o tempo foi passando, e, entre bailes, churrascos, rodeios e carnavais, minha trajetória foi sendo construída e meu modo de vida foi se consolidando. Após

(16)

13

a graduação minha energia foi canalizada para o trabalho com danças de salão e dança educativa7, tanto em escola particular como na rede municipal e estadual de ensino. Encontrei, nas danças de diversas manifestações populares, aquilo que acreditava ser uma possibilidade de trabalho interdisciplinar dentro das escolas e, desta forma, foram intensificados meu estudo e prática enquanto docente nesta área. Com isso, percebia a possibilidade de contextualizar o conhecimento para meus alunos e fazê-los perceber como atores da própria história.

Desejei, no mestrado, ampliar meus estudos, dentro do universo da cultura popular, a partir de uma prática etnográfica, preocupada e atenta a pensar a educação no interior da sua morada: a cultura. Iniciei, através do pré-projeto, uma intenção de compreender as danças populares no ensino formal público de Salvador. Porém, no primeiro ano do mestrado, entre disciplinas teóricas e vivências práticas, tanto na UFBA quanto em outros espaços, pude repensar meu objeto de estudo.

Durante um estudo de campo, em agosto de 2014, na Ilha dos Valadares, litoral paranaense, conheci o Fandango Paranaense – adotei maiúsculas para destacar o objeto desta pesquisa, o qual já despertava meu interesse enquanto professora da rede pública do estado do Paraná. O contato com o Fandango foi um encontro determinante na minha trajetória acadêmica, pois a partir das observações dos grupos de Fandango e dos diálogos e entrevistas realizadas com os mestres pude redefinir meu projeto e publicar artigos relacionados.

Uma discussão que teve início nas primeiras apresentações do pré-projeto nas disciplinas do mestrado, que diz respeito à utilização da nomenclatura Danças Folclóricas ou Danças Populares, foi imprescindível para repensar meu deslocamento do Paraná para Salvador, pois percebi, além do deslocamento geográfico, que ocorriam simultaneamente deslocamentos conceituais da dança que pesquiso.

O Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares se apresentou como um campo potencial para pesquisa, pois em suas vertentes encontrei um grupo que se autodenomina folclórico, bem como outros três grupos que não fazem esta distinção.

7

Dança educativa é um termo que conjuga as áreas da Dança e da Educação num terceiro problema, o ensino da dança para crianças e jovens no contexto escolar. Surge através do movimento arte-educação no Brasil, relacionando a questão da dança no campo arte-educação, tais como: dança criativa, dança-educação, dança educacional e tantos outros termos derivados. Países como Inglaterra e Estados Unidos adotaram dance education.

(17)

14

O que de certo modo fulgura meu entendimento acerca dos deslocamentos que vivenciei no trânsito entre o Paraná e Salvador, justificando minha vivência anterior ao mestrado nas escolas estaduais, que tinham embasamento nas danças folclóricas e o rompimento de fronteiras e conceitos ao me deparar com a dança popular em Salvador. Sendo assim, encontrei no Fandango um lugar de investigação que acolheu minhas vivências, meu processo de deslocamento e meu desejo de pesquisa.

Ao perceber esses entrelaçamentos pude entender que a compreensão de danças populares ou danças folclóricas recai na mesma questão com que me deparei ao tentar definir o que é dança popular. Há uma dureza nos conceitos e uma moleza nas noções, conforme observa o sociólogo Maffesoli (apud SILVA, 2012, p. 62) ao sugerir a possibilidade de ocorrer entre conceitos um deslizamento. Assim, considera-se que eles sejam atravessados por múltiplas identificações, ou seja, não é algo uno, acabado, coerente, coeso, linear, integral, único, original e estável. A cultura não se fixa dessa maneira. Logo, é preferível ter uma compreensão mais alargada – uma „noção‟, pois não há possibilidade de firmar ou fixar um conceito, e sua „dureza‟ pode limitar o entendimento do acontecimento, que está sempre em processo.

Estes foram os caminhos que permitiram delimitar meu objeto de pesquisa e encontrar a problemática que me move. A questão desta pesquisa está centrada no diálogo entre a cultura popular e a educação. O que me instiga é: Como os processos de tradução cultural presentes na dança do Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares possibilitam aberturas para processos de aprendizagem inventiva? O objetivo desta pesquisa é compreender de que forma a educação não formal (GOHN, 2011) e a cultura popular dialogam e como os processos de tradução cultural possibilitam aberturas para a aprendizagem inventiva (KASTRUP, 2007) no contexto da dança do Fandango Paranaense. A aprendizagem inventiva proporciona pensar na experimentação como criação de novas soluções, através da invenção de problemas e das experiências de problematização, enfim, a inventividade é um processo de criação.

Esta dissertação foi estruturada em cinco capítulos, sendo desenhada através de pistas cartográficas que foram conectando a teoria com a vivência do campo. No primeiro capítulo, “Amanheceee! O Fandango Paranaense em Valadares – uma manifestação caiçara sob pistas cartográficas”, apresentarei a cartografia como

(18)

15

percurso metodológico para entender a relação entre cultura e educação a partir de pistas que foram criadas no processo de pesquisa, tendo esta cunho qualitativo (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). As pistas que se compuseram para a pesquisa de campo foram corpo-dança, corpo-texto e corpo-dança-caiçara e, para constituí-las, criaram-se micro pistas, que são: parar para olhar, ouvir e sentir; pousar e desfocar a atenção; intervir sem inferir; registrar sensações e anseios; acompanhar processos; e descrever ações. As pistas não estavam prontas, mas se constituíram na processualidade da pesquisa (KASTRUP, 2009). Os caminhos metodológicos transpareceram a partir do primeiro contato com o campo, em agosto de 2014, no qual o próprio universo do Fandango deu aberturas para delinear a pesquisa e, a partir daí, foram se desvelando redes de informações que levaram a participar, em agosto de 2015, da 6º Festa do Fandango Caiçara em Paranaguá e, por fim a residência na Ilha dos Valadares, de outubro a dezembro de 2015. As experiências na trajetória da pesquisa proporcionaram revelar e compor as pistas cartográficas e encontrar nelas a direção.

No segundo capítulo, “Tradução – O espaço fronteiriço da Cultura Popular”, apresento o conceito de tradição e tradução cultural sob a perspectiva dos autores Homi Bhabha (2013), Stuart Hall (2013) e Boaventura de Souza Santos (2010) e o aporte teórico para pensar a cultura popular. Os conceitos abordados neste capítulo são tecidos conjuntamente com a história e memória do Fandango Paranaense.

No terceiro capítulo apresento as diferentes configurações das danças populares brasileiras sob a perspectiva do Mestre do fandango Aorélio Domingues, que possibilita na sua abordagem revisitar o folclore e as tradições ao diferenciar danças folclóricas de danças populares, e das autoras Daniela Amoroso (2009), Maria Acselrad (2013), Marianna Monteiro (2011) e Renata de Lima Silva (2012) a partir de distintos processos de investigação do corpo nas Danças Populares.

No quarto capítulo, “Caminhos e Encontros – Educação, Cultura e Processos de Aprendizagem na Dança Popular”, é apresentada uma discussão a respeito da educação não formal, com base na autora Maria da Glória Ghon (2011), sobre a relação da cultura e a educação baseada nos autores Teixeira Coelho (2011) e Boaventura de Souza Santos (2010), com o conceito de Ecologia de Saberes, e ainda será explorado nesse contexto o conceito de aprendizagem inventiva proposto por Virginia Kastrup (2007), que parte dos princípios da inventividade, criação e problematização na educação, aqui deslocados para a dança popular. São tecidas

(19)

16

no percurso da escrita as vozes dos mestres e aprendizes sobre a aprendizagem da dança no Fandango, criando uma trama entre os conceitos dos autores e o campo.

O quinto e último capítulo, “Oh de casa! Entre Tamancos, Rabecas, Caiçaras e Barreados – Olhares e Saberes da Cultura Popular”, traz as impressões e observações de campo, relatando os encontros com o Fandango em 2014 e 2015. Neste capítulo apresenta-se um „passeado8 ou „sarandeio‟ a partir da discussão dos

conceitos abordados na pesquisa com o material coletado no campo, observação e entrevista com os mestres e batedores do Fandango. Nele apresentam-se as peculiaridades do campo e as problemáticas surgidas neste território. Por considerar o fandango como uma manifestação popular vinculada às tradições, são apresentados, a partir do entendimento dos mestres e aprendizes, os processos de tradução cultural e aprendizagem inventiva, por meio dos quais a dança vem se problematizando, ressignificando e reinscrevendo na atualidade.

O “Arremate” são as considerações finais deste processo de pesquisa, que não termina aqui, mas possibilita refletir outros caminhos para dar continuidade ao processo de tradução do Fandango Paranaense.

8

Passeado ou sarandeio é o movimento das mulheres na dança do fandango. A palavra passeado deriva de passear, caminhar.

(20)

17

Figura 1 - Foto tirada na Associação de Cultura Popular Mandicuera - Ilha dos Valadares Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

(21)

18

1 AMANHECEEE!!!! O FANDANGO DA ILHA DOS VALADARES – UMA MANIFESTAÇÃO CAIÇARA SOB PISTAS CARTOGRÁFICAS

Caminhante não há caminho, o caminho se faz ao andar Antonio Machado, Caminhante

Amanheceee é a chamada dos caiçaras para o baile de Fandango, a intenção dos fandangueiros antes de a festa iniciar é amanhecer tocando, cantando e dançando. Não há como prever quantas músicas serão tocadas, quantas marcas serão batidas, quantas valsadas e bailadas serão dançadas, porque ao iniciar o baile muitas interferências podem acontecer e não é possível assim sistematizar e prever seu andamento, mas é possível saber que o desígnio dos fandangueiros é amanhecer.

Assim, o Fandango como uma manifestação que faz parte de uma cultura movente dá pistas para um procedimento metodológico, porém não se permite fechar em um caminho, pois ele se faz no processo. A pesquisa se dá no sentido de conhecer e fazer, pesquisar e intervir, através do mergulho na experiência, a qual agencia teoria e prática, sujeito e objeto, sendo a trajetória do sujeito determinante na produção do conhecimento.

Neste sentido, essa pesquisa apresenta uma abordagem qualitativa (KASTRUP; PASSOS; ESCOSSIA, 2009) que envolve pesquisa exploratória, observação e análise das práticas artístico-culturais do Fandango, além de entrevistas e consulta a documentos. A partir das observações e vivências de campo, foram identificados sujeitos imbricados no campo de investigação, no caso os mestres e alguns aprendizes do fandango dos quatro grupos9 da Ilha dos Valadares, que foram imprescindíveis na compreensão e análise dos processos de tradução cultural e aprendizagem inventiva10 na dança do Fandango. A pesquisa de campo se deu em três fases, e em cada momento foram construídas pistas para pensar o contexto da pesquisa. E essas pistas não se fixaram, foram móveis e

9

Grupo Folclórico Mestre Romão, Grupo Pés de Ouro (Mestre Nemésio), Grupo Mandicuera (Mestre Aorélio) e Grupo da Ilha dos Valadares (Mestre Brasilio).

10

Para Kastrup (2007), aprendizagem não é entendida como passagem do não-saber ao saber, não fornece apenas as condições empíricas do saber, nem é uma transição ou uma preparação que desaparece com a solução ou resultado. A aprendizagem é, sobretudo, invenção de problemas, é experiência de problematização. A experiência de problematização distingue-se da experiência de recognição.

(22)

19

deram aberturas para outros caminhos que se fizeram necessários no processo. Além das pistas do campo, a organização das leituras e produções teóricas também foram delineadas sob pistas cartográficas.

Face ao exposto, a pista inicial consistiu na leitura de teorias relevantes ligadas à cultura, tradição e traduções culturais, com base nos autores Stuart Hall (2013), Homi Bhabha (2013) e Boaventura de Souza Santos (2010). Para esta etapa foi importante considerar os deslocamentos teórico-práticos da pesquisa e pesquisador, ao mesmo tempo em que os choques culturais vivenciados neste processo.

A segunda pista se deu a partir da investigação acerca da noção de danças populares brasileiras e a influência do movimento folclórico nas configurações de dança, e apresentou destaque aos relatos do mestre do Fandango acerca dos saberes populares relacionados à dança, que envolvem o objeto desta pesquisa, ou seja, dar voz aos fandangueiros foi imprescindível para melhor compreender a literatura. Esta etapa teve como base autores do folclore paranaense, Inami Custódio Pinto (1980) e Fernando Correa Azevedo (1973), e pesquisadores do folclore brasileiro, Câmara Cascudo (1972), Mário de Andrade (1986), além das pesquisadoras de danças populares Mariana Monteiro (2011), Daniela Amoroso (2009), Maria Acselrad (2012) e Renata Lima Silva (2012). A multirreferencialidade utilizada nos capítulos foi essencial para a compreensão da processualidade da cultura popular e da manifestação do Fandango Paranaense.

A pista seguinte, que se dedicou a relacionar cultura e educação, lançou mão de autores que tratam de teorias ligadas à educação não formal, Maria da Glória Ghon (2011) e Teixeira Coelho (2011), à noção de ecologia de saberes apresentada pelo autor Boaventura de Souza Santos (2010) e, por fim, para compreender os processos de aprendizagem inventiva na dança do Fandango, utilizou-se como referência a autora Virginia Kastrup (2007).

Esta pesquisa está inserida no campo das pesquisas qualitativas e se configura como uma pesquisa cartográfica que se apropria de aspectos etnográficos, pois a cartografia, segundo Kastrup (2009), é traçar um plano comum. Para ela,

A pesquisa de campo sobre produção da subjetividade enfrenta o problema de construir conhecimento envolvendo pesquisadores e pesquisados, com territórios e semióticas singulares. Surgem questões relativas ao protagonismo dos participantes e a como traçar com eles um plano comum, garantindo o caráter participativo da pesquisa. [...] Na cartografia o traçado

(23)

20

do comum tem como diretriz metodológica a transversalidade e examina os procedimentos de participação, inclusão e tradução (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 263).

Nesse sentido, é pelo trabalho de campo que apresentamos as pistas que permitem observar e analisar as ações dos caiçaras que residem no litoral sul do Paraná. A proposta é encontrar relações entre as teorias e os resultados empíricos que se manifestam e compõem esse objeto, que mostram afinidades com a prática artística e de ensino aprendizagem da dança do Fandango, pela perspectiva de um diálogo intercultural (SANTOS, 2010).

Concomitante aos primeiros estudos teóricos, na pesquisa exploratória de campo foi realizada a primeira visita, efetivada com o viés da observação participativa de algumas atividades artístico-culturais do Fandango em Valadares. Foi uma etapa decisiva na definição da problemática que move esta pesquisa, além de proporcionar o conhecimento dos sujeitos e de diminuir distâncias entre pesquisador e objeto. Nesta etapa foi possível identificar alguns dos possíveis protagonistas da experiência em campo que foi realizada posteriormente.

A pista corpo-dança se refere ao primeiro contato com o campo no mês de agosto de 2014, entre os dias 15 e 17, período de realização da 5ª Festa do Fandango Caiçara de Paranaguá. O evento foi uma realização da Fundação Municipal de Cultura de Paranaguá (FUMCUL) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e na mesma data o Fandango recebeu o certificado de Patrimônio Cultural pelo IPHAN.

Dentre as atividades do evento ressalta-se a entrega, no dia 15 de agosto, do certificado de Registro de Bem de Natureza Imaterial do Fandango Caiçara aos Mestres Fandangueiros. Também foi possível acompanhar o ensaio dos netos do Mestre Romão e participar dos debates gerados pelos participantes da mesa redonda para discutir “Desafios e Perspectivas para a Salvaguarda do Fandango”, com Antonio Carlos Diegues e os mestres do Fandango. À noite aconteceu o Baile de Fandango no Mercado do Café com todos os grupos da Ilha dos Valadares (Fandango da Ilha dos Valadares, Folclórico do Mestre Romão, Mandicuera e Pés de Ouro). No dia 17 de agosto ocorreram distintos momentos de confraternização: almoço (barreado) na Associação Mandicuera; à tarde “café com banana” e roda de viola com os Mestres no Mercado do Café.

(24)

21

Durante esse evento foi possível entrevistar os mestres Aorélio e Brasílio sobre questões referentes à contextualização do Fandango e ao entendimento dos mestres acerca das Danças Folclóricas e Danças Populares, que permeavam as discussões da dissertação naquele momento. O modo utilizado para aproximar a pesquisadora do campo foi a dança, e, neste movimento da cultura, as fronteiras entrecruzaram pesquisadora e pesquisados. A dança como modo de ocorrência, de aproximação, se deu tanto no momento em que o som do tamanco foi o condutor para conseguir encontrar a casa do Mestre Romão, acessando o ensaio dos seus netos, quanto nas vinculações alcançadas com mestres, aprendizes e caiçaras residentes da Ilha durante o baile de Fandango no Mercado do Café.

A amplitude da problemática e sua característica eminentemente tradutória demandaram uma segunda incursão no campo, que ocorreu em agosto de 2015. Além de articular teorias e abordagens disciplinares, buscou-se relacioná-las de modo que se pudesse construir uma análise da problemática simultaneamente ao processo de observação participativa do campo. A segunda pista oriunda do campo corpo-texto possibilitou adentrar no campo com outra intensidade, de fazer leituras corpo-textuais dos sujeitos da pesquisa no sentido de tentar traduzir algumas questões que o próprio campo sugeriu, como compreender as diferenças apresentadas desde a primeira observação, seja pelo movimento percebido mais enfraquecido de mestres e dançadores no baile ou pelos questionamentos surgidos a partir de falas dos mestres ou aprendizes referentes ao cachê recebido para fazer fandango.

Essa segunda imersão no campo se deu entre 14 e 21 de agosto de 2015, nos primeiros dias aconteceu a 6ª Festa de Fandango Caiçara, na Casa Dacheux, no Centro Histórico de Paranaguá. A programação do evento incluiu a abertura da Exposição Fotográfica “As Marcas de Valadares”, lançamento de livros e de CD de fandango com os grupos da Ilha dos Valadares. Ocorreram também: rodas de conversa com mestres do fandango; apresentação do CMEI (Centro Municipal de Educação Infantil) da Ilha dos Valadares; uma conferência sobre a experiência pernambucana de valorização dos mestres da tradição oral, com a pesquisadora Maria Acselrad; mesas de debates sobre planos de manejo e a sustentabilidade caiçara. Também aconteceu o lançamento do projeto ”Artesanias Caiçaras: a Sustentabilidade do Fandango Através da Construção de Instrumentos Musicais”, financiado pelo Edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), do

(25)

22

Iphan. À noite, no mercado do café, a programação seguiu com o Baile do Fandango, no qual tocaram os grupos ”Mestre Romão”, “Ilha dos Valadares (Mestre Brasílio)”, “Mandicuera” (Mestre Aorélio), “Pés de Ouro” (Mestre Nemésio) e “Manema”, de Iguape, São Paulo.

No dia 16 houve almoço com barreado na Associação Mandicuera e um “Trajeto Afetivo”, na Ilha dos Valadares, com Poro11

, da Associação de Cultura Popular Mandicuera.

Os dias seguintes foram usados para a coleta de material bibliográfico e documental, bem como foi possível compreender diversos aspectos da contextualização histórica da Ilha dos Valadares através de duas tardes de café e prosa com o Sr. Zé Maria12 no Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá – verdadeiro guardador de memórias da cidade de Paranaguá –, além de ter acesso aos arquivos audiovisuais de Siqueira – cinegrafista amador do Fandango que há doze anos registra a manifestação e que também compartilhou os cafés no Instituto Histórico. Ambos disponibilizaram todo arquivo pessoal sobre o Fandango, gravando e cedendo diversos CDs e DVDs, desde livros históricos digitalizados a arquivos de áudio e vídeo para colaborar com a pesquisa, pois acreditam que essa produção precisa ser “multiplicada para se conhecer e não arquivada para se guardar”. O corpo-texto foi o instrumento base desta segunda pista cartográfica, que permitiu leituras do campo em relação à dança e aos distintos discursos dos mestres, além de aproximar pesquisadora e contexto através dos materiais teóricos e dos diálogos estabelecidos com os pesquisadores de Paranaguá.

As duas pistas delineadas nas incursões ao campo deram origem a um terceiro momento da pesquisa: a pista corpo-dança-caiçara. Essa etapa se deu em uma imersão no campo de três meses, de outubro a dezembro de 2015, configurando a residência na Ilha dos Valadares, que possibilitou experienciar o universo caiçara não apenas como observadora, mas como participante, não com o olhar estrangeiro, mas fazendo parte do coletivo e por momentos se confundindo com o próprio objeto estando imbricada na pesquisa. Foi um momento de rompimento de fronteiras que incluiu uma dimensão simbólica traduzida num

11

Eloir Paulo, mais conhecido como Poro, artesão do fandango e membro da Associação Mandicuera. É ele quem faz a bebida típica do fandango “mãe-cá-filha”.

12

José Maria Faria de Freitas, tesoureiro e estudioso do Instituto Histórico Geográfico de Paranaguá. Trabalha no Instituto desde os 40 anos e desde lá dedica-se a guardar memórias de Paranaguá. Hoje com 76 anos de idade, possui amplo acervo impresso e digital de livros e documentos reunidos da história de Paranaguá.

(26)

23

conjunto de relações culturais e afetivas entre minha pessoa e os caiçaras da Ilha dos Valadares. Os signos criados foram um elemento constitutivo do objeto, e, ao constituí-lo, constituiu-se pesquisadora/folgadora.

A pesquisa empírica não teve a intenção de fazer apenas descrição e reflexão de uma experiência localizada de um determinado movimento cultural, mas deu aberturas para os atravessamentos e desestabilidades que o campo proporcionou. A metodologia/pistas da pesquisa foi construída no dia a dia da Ilha, nos encontros com os fandangueiros ao transitar suas ruelas, nas rodas de conversa e viola com os mestres, nos ensaios dos grupos de fandango, nas trocas de informações com os aprendizes e na inserção de meu filho nesse universo como pequeno folgador; nos momentos dos bailes no mercado do café, no bate-papo com a balconista da padaria ou da mercearia da Ilha, nas idas e vindas pela ponte e seus encontros – no mercado do peixe ao lado da ponte na Ilha e no mercado do caranguejo, do outro lado da ponte, em Paranaguá, mas principalmente a construção da trajetória da pesquisa se deu nas danças do fandango bailado, em que era oportunizada uma proximidade sem igual dos caiçaras – jovens e velhos, que renderam de pedidos de casamento a ofertas de três barcos e um sítio, mas, muito além disso, renderam histórias de vida de fandangueiros, memórias de um povo pescador, sofrido e trabalhador, que transforma o suor em divertimento e que dança fandango desde que “se conhece por gente”.

A terceira pista corpo-dança-caiçara sugere que não há neutralidade no conhecimento (KASTRUP; PASSOS, 2009), pois a imersão no movimento cultural e artístico do campo ressignificam a trajetória do pesquisador e o trajeto da pesquisa, devido aos atravessamentos que o compõem. Desta forma, a pesquisa acaba por intervir na realidade, mais do que apenas a representar, sendo assim, todo conhecimento é tido como transformação da realidade e de si mesmo. O caminho se dá no processo, o qual vai sendo traçado sem determinações ou prescrições dadas, possibilitando desvios e novos arranjos.

Sendo assim, micro pistas foram adotadas para dar conta desta terceira etapa da pesquisa de campo, que foram: parar para olhar, ouvir e sentir; pousar e desfocar a atenção; intervir sem inferir; registrar sensações e anseios; acompanhar processos; e descrever ações. As pistas se constituíram na processualidade da pesquisa e a ordem de apresentação é apenas uma organização para expor os caminhos trilhados, mas elas se deram simultaneamente em todo o processo.

(27)

24

O processo de construção do caminho da pesquisa nos faz caminhar lado a lado com o objeto, e ao constituir esse caminho o pesquisador acaba por constituir-se nele (KASTRUP; PASSOS, 2013), resultado da imersão no plano da experiência na qual sujeito, trajeto e objeto se hibridizam. A primeira micro pista adotada na pesquisa, parar para olhar, ouvir e sentir, permite ao pesquisador tornar-se aberto ao encontro, acolher o inesperado, explorar o que lhe afeta e permitir que a atenção seja movente, que ela tateie e rastreie o inesperado, possibilita explorar as sensações até ser tocado por algo. O gesto de pouso permite a percepção e faz com que um novo território se forme, reconfigurando o campo. Ao pesquisar o Fandango, sujeito e objeto estabelecem uma relação imbricada de saberes e fazeres. Este é o movimento que sustenta a construção na dimensão processual da pesquisa.

A micro pista pousar e desfocar a atenção sugere a concentração da atenção em momentos da pesquisa, em estar atento aos movimentos coreográficos ou às falas dos mestres e, ao mesmo tempo, desfocar a atenção quando o contexto sugere esse desvio, no sentido de olhar além dos movimentos coreográficos ou ouvir os suspiros e silêncios dos mestres.

A atenção sem focalização acolhe o inesperado e sua suspensão permite acessar dados subjetivos, interesses prévios e saberes acumulados que entram em sintonia com o problema de pesquisa. Desta forma desfocada, as experiências vão ocorrendo sem sentido imediato, são os signos que indicam quando algo acontece, e isso se dá de forma processual. Os signos somente são compreendidos porque são acolhidos pela atenção. Por exemplo, durante a observação de um dos ensaios do Fandango desfoquei a atenção da dança e pude assistir a distância o Mestre Romão, que, enfermo, debruçava-se na janela de sua casa observando a distância seus netos batendo tamanco. Desfocar a atenção permitiu encontrar outros caminhos para entender aquele contexto do ensaio, o silêncio do mestre significou muito para que eu pudesse entender o processo.

(28)

25

Figura 2 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão – Mestre na janela de sua casa. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Outra micro pista que delineou o campo foi intervir sem inferir, que possibilita intervir na realidade e transformá-la, uma vez que o conhecimento resulta em construção, pois, para os autores Kastrup e Passos, “há uma dimensão da realidade em que ela se apresenta como processo de criação, [...], o que faz com que em um mesmo movimento, conhecê-la seja participar do seu processo de construção” (2013, p. 264). Neste sentido, é possível identificar pelas relações sócio-histórico-culturais que ao pesquisar o fandango é inevitável acessar o plano comum entre sujeito e objeto, entre pesquisador e fandangueiros, pois há uma relação de saberes e fazeres. E é este movimento que sustenta a construção na dimensão processual deste fenômeno – o Fandango Caiçara. Tenho entendido que fazer uso da cartografia e traçar um plano comum, sem o qual a pesquisa não acontece, se configura como um dispositivo potente para desvelar a expressão cultural típica dos caiçaras.

A cartografia como método de pesquisa-intervenção consiste em uma ação que traça no percurso as metas da pesquisa, as diretrizes se fazem por pistas e pelo percurso da pesquisa, considerando todo o processo de investigação. Esta pista considera que toda pesquisa é intervenção e que a intervenção se dá no mergulho da experiência somado aos efeitos do percurso, e este percurso se faz na relação do objeto com o sujeito e o conhecimento.

O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na

(29)

26

experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho metodológico” (BARROS; PASSOS, 2009, p. 18).

Estamos, enquanto pesquisadores, implicados no campo da experiência, e isso indica que a pesquisa está mais entre forças do que entre formas, pois a dinâmica não se faz por projeção, decisão ou propósito, mas por contágio ou propagação (BARROS; PASSOS, 2009). Sendo assim, “intervir é mergulhar no plano implicacional em que as posições de quem conhece e do que é conhecido, de quem analisa e do que é analisado se dissolvem na dinâmica de propagação de forças [...]” (BARROS; PASSOS, 2009, p. 25). No Fandango é possível entender que os atravessamentos que compõe a dança interessam, incluindo os que estão aquém e além dela, pois em forma de rede dão consistência a estes entre-lugares da pesquisa.

Registrar sensações e anseios é a micro pista que tornou possível criar um mapa cartográfico de pesquisa possibilitando a flexibilidade e multiplicidade de entradas e sentidos para uma experimentação, sendo ele um mapa móvel, sem centro. Esse processo apostou na experimentação, estando mais próximo do real, como implicação e intervenção da realidade. Para Kastrup e Passos (2009), as pistas que guiam um cartógrafo são como referências que apresentam uma atitude de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do caminhar no próprio percurso da pesquisa.

Para a cartografia, em lugar de regras e protocolos, as pistas destacam a importância da prática, de ir a campo, lançar-se na água, experimentar dispositivos, habitar um território, afinar a atenção, deslocar pontos de vista e praticar a escrita (KASTRUP; PASSOS, 2009). Para expressar, compreender e identificar a cultura popular é preciso mergulhar no universo que a rege, é necessário conhecer o outro e reconhecer-se nele, é imprescindível que sujeito, trajeto e objeto dialoguem, vai muito além do olhar, é observar e participar, é encantar-se e permitir os atravessamentos e transformações.

A micro pista acompanhar processos sugere que o verdadeiro sentido do método da cartografia para investigar o fandango seja o acompanhamento de percursos, a implicação em processos de produção e a conexão de redes ou rizoma13. “A cartografia surge como um princípio do rizoma que atesta, no

13

(30)

27

pensamento, sua força performática, sua pragmática: princípio „inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real‟” (KASTRUP; PASSOS, 2009, p. 10). Sendo assim, a cartografia é acompanhar processos inventivos e de produção de subjetividades, e não de representação de um objeto. A pesquisa de campo requer a habitação de um território que, em principio, o cartógrafo não habita. O trabalho de campo realizado para esta pesquisa teve a residência na Ilha dos Valadares como a habitação de um território desconhecido, proporcionou o acompanhamento dos processos e a produção de subjetividades no Fandango, a partir de uma experiência de observação e participação.

A micro pista descrever ações sugere que mergulhar na experiência é uma forma de implicação no real, na qual a análise se dá pela aproximação, sem distanciamentos, assim o plano da experiência acontece enquanto intervenção. Ao imergir na experiência da pesquisa de campo do Fandango Paranaense foi possível compreender a importância da análise sem distanciamento. As aproximações possibilitaram traduzir falas e silêncios, e ao se inserir no ambiente de pesquisa você o transforma e é, ao mesmo tempo, transformado por ele, você ressignifica o objeto e é reinscrito com ele.

O processo de pesquisa é composto por instabilidades e atravessamentos e, sendo assim, há que se colocar em análise toda a produção de conhecimento que compõe a vivência de campo. Nesse sentido, atribui-se relevância significativa a tudo que rodeia o objeto/sujeitos da pesquisa, sejam as relações sociais, políticas ou outras redes que estão além destes, mas os permeiam, ou seja, a dança e todo o contexto que rege a manifestação popular atravessando-a atribuem significados.

Cada momento vivido no processo de pesquisa de campo do Fandango foi registrado por um diário de bordo, que foi lido e relido, às vezes de forma desinteressada, para apenas aprender com o próprio caminhar e rememorá-lo. Alguns acontecimentos se destacavam e faziam conexões com outros saberes vividos em distintos momentos, por vezes questionamentos que surgiam nos ensaios encontravam respostas nos bailes e apresentações, ou em um diálogo desinteressado eram encontrados caminhos e esclarecimentos para a pesquisa. A figura abaixo faz parte do diário de bordo, é um símbolo que descreve o movimento do Fandango no local em que ele acontece, registrado durante a pesquisa de campo.

(31)

28

Figura 3 - Desenho do diário de bordo – Fandango e seus atravessamentos – com interferências do processo de análise dos dados.

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

A imagem representa o Mercado do Café14, tem diversos acessos, ao centro dele fica o tablado onde se dança fandango batido e bailado, a pista corpo-dança surgiu e se retroalimentou neste espaço, foi nele e a partir dele que processos de tradição foram ressignificados e as traduções foram desveladas.

No entorno do tablado há um fluxo de pessoas que entram e saem do mercado e que por ele circulam, este fluxo pode ser considerado o contexto (com texto) no qual se deu a segunda pista cartográfica corpo-texto. Neste espaço foram acessadas informações importantes sobre o universo do fandango, nele se estabeleceram relações e conexões importantes para os caminhos da pesquisa, e

14

Construído em meados do século XIX, no estilo neoclássico, foi reformado no início do século XX e adaptado com tendências do classicismo. Era um ponto de degustação do café, servido com quitutes da região. Atualmente abriga um centro gastronômico que oferece refeições à base de frutos do mar e comida típica do litoral, além dos tradicionais bolinhos de camarão, de banana e pastéis de vários sabores. A cada quinze dias são promovidos bailes de Fandango para a comunidade caiçara,

especificamente os moradores da Ilha dos Valadares (Disponível em:

(32)

29

em um movimento de vaivém, de entradas e saídas, encontros e desencontros com os caiçaras se fizeram os corpos-textuais da pesquisa.

A pista corpo-dança-caiçara reverberou no espaço de atravessamentos, no entre-lugar do corpo-dança e corpo-texto, no qual foram possibilitadas aproximações com os caiçaras que regularmente frequentam os bailes. Considera-se este lugar de transição e – a partir da metáfora de “subir e descer do tablado” – há outras dinâmicas sociais e culturais estabelecidas entre os grupos de fandango. Enquanto um grupo dança o batido alguns batedores dos outros grupos ficam ao redor batendo o tamanco e a cada fandango batido dançam-se dois bailados (Figura 4).

Figura 4 - Fandango Bailado. Fonte: Foto de Ivan Ivanovick

Assim, no fandango bailado todas as pessoas que em um momento eram espectadoras sobem no tablado e se tornam protagonistas da dança. É interessante observar que há dinamismo na estrutura do lugar, nas relações que se constituem neste ambiente e no modo de fazer fandango, o que corrobora com o que se entende pela cultura popular – movente e instável.

O diário de bordo como descrição de ação é o relato vivo de uma experiência que foi tecida diariamente, sendo costurada por palavras, falas e ações corporificadas que se sobressaíam pelos afetos e sensações da experiência do campo. Mesmo que a produção da dissertação seja, em determinados momentos, uma caminhada solitária, é a experiência de campo que a inspira, os afetos do campo são transportados para a escrita que pode revelar sensações e expressões.

(33)

30

A composição da escrita se dá ancorada na experiência, na qual sujeito e objeto se fazem juntos, compartilhados nos momentos autorreflexivos da pesquisadora e nos compartilhamentos e reflexões com a orientadora.

O Fandango pede passagem e a pesquisa de campo significou a abertura de um caminho, deu voz ao inaudível e abriu espaços para uma cultura invisibilizada. O território do Fandango carrega uma história anterior, suas tradições e costumes, então o cartógrafo começa sua pesquisa no meio de algo que já está em processo, por isso a produção vai além das formas representadas e das informações coletadas, e é preciso entender que o próprio território presente possui processualidade. Assim, a pesquisa pode dizer muito, tanto sobre o presente quanto sobre o passado em movimento, caminhar com ela nos transpõe e transforma o futuro a cada instante. É preciso estar no campo, visitar e experienciar o objeto que nos interessa, ser afetado por aquilo que nos afeta. No fandango, acessar a experiência de cada sujeito da pesquisa, fazer conexões e descobertas, criar elos e se permitir viver no cruzamento de territórios é necessário para aproximar o olhar estrangeiro do território que passa a ser sua habitação, podendo explorá-lo com olhares, escutas, pela sensibilidade, pelos ritmos musicais, pelos movimentos da dança.

Ir a campo sugere uma cognição ampliada, aberta aos planos dos afetos, na qual a sensibilidade do cartógrafo dá espaço para as intensidades buscarem expressão. No caso do Fandango foi necessário pesquisar dançando e dançar pesquisando, ao mesmo tempo que pesquisar cantando e cantar pesquisando, ou ainda pesquisar tocando e tocar pesquisando, num constante estado de aprendizagem. Desta forma, é possível dizer que da simplicidade e singeleza da pesquisa um elo nasce do caminho que ao conhecer se constitui, e ao se constituir o caminho pesquisador também é constituído.

Ao habitar um território existencial nos é possibilitada a experiência de construir ali um novo território que consiste em construir um saber com o Fandango e não sobre o Fandango. A experiência ao habitar e se reinscrever neste território é singular e implicada, transformadora e reveladora. A experiência vivida na Ilha dos Valadares foi um momento tanto de desterritorialização como de busca por habitação, por afetividades, por encontros. Foi um encontrar-se comigo mesmo, além do encontro com os sujeitos da pesquisa, foi a aproximação do pesquisador com o objeto, e, na maioria das vezes, foi um sentir-se parte do objeto, parte do

(34)

31

processo de pesquisa não apenas como observadora, mas sim como agente imbricada na processualidade do Fandango.

A pesquisa de campo do Fandango realizada na Ilha dos Valadares permitiu reconhecer as pistas metodológicas apresentadas no próprio percurso, pois o processo se fez no caminho e a experimentação tomou lugar do experimento, fizeram sentido os versos de Fandango que dizem: “No Fandango nada se ensina, tudo se aprende”, o aprender tomou a cena e se deu em cada olhar, suspiro, presença ou ausência de fala, em cada toque de viola ou movimento da dança. Surgiram perguntas de respostas inacabadas, fazendo-me recuar das deduções ou soluções prévias, as conexões com mestres e aprendizes foram se expandindo em todos os sentidos, compondo arranjos e desarranjos, foram criadas alianças entre pesquisador e objeto, que, de tão forte o elo, deixaram de ter essa divisão “entre” e simplesmente resultou num vínculo.

Conforme Fonseca (2009), pela cartografia foi possível dedicar-me ao que excede, ao que enevoa e embaralha os retos caminhos da razão. Foi um estado de perder a posição central em um processo a ser conduzido, e de me reconhecer como corpo-de-passagem. Assim, a pesquisa foi a possibilidade de extrair do mundo do Fandango os sentidos, de atuar pela afetividade, e através dela fazer transparecer o invisível, o impensado, o indizível. A pesquisa de campo fez-me abrir para o sensível, criar laços com o território existente, desfocar pontos de vista e me constituir neste processo de construção do objeto. No pesquisar se fez pesquisa e se fez pesquisadora.

(35)

32

2 TRADUÇÃO – O ESPAÇO FRONTEIRIÇO DA CULTURA

2.1 RESSIGNIFICAR E TRADUZIR – ENTRE-LUGARES DA CULTURA POPULAR

Primeiro eu peço licença Que assim foi o meu ensino, Depois da licença dada Eu mesmo me determino. Versos de fandango da Ilha dos Valadares

Os deslocamentos, tanto espaciais quanto conceituais, com os quais me deparei ao iniciar esta pesquisa foram e são processos de tradução, de ressignificações e de novos olhares. Na busca por compreender a cultura popular pude fazer uma releitura do conhecimento que trazia em minha bagagem – metaforicamente falando, e, articulando com as vozes dos autores, meu saber foi sendo atravessado e contaminado por novos saberes, sendo reinscrito e relocado. Foram momentos constantes de instabilidade e negociação que me fizeram compreender o significado da palavra tradução e o entendimento alargado da cultura popular.

Etimologicamente, a palavra cultura vem do latim “colere”, que significa o cuidado dispensado ao campo, ao gado, ao cultivo agrícola. Até o século XIII o termo designava um estado de terra cultivado (algo que está dado), aos poucos a palavra passa a referir-se à ação de cultivar a terra (algo em processo) (EAGLETON, 2011, p. 9). Se cultura significa cultivo, um cuidar que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo passa a sugerir uma dialética entre o natural e o artificial, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. Implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós (realista), mas tem também uma dimensão construtivista, já que esta matéria-prima é elaborada de forma humanamente significativa (EAGLETON, 2011, p. 11).

“Tenho quase tanta dificuldade com „popular‟ quanto tenho com „cultura‟. Quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (HALL, 2010, p. 273). A declaração de Stuart Hall nos dá a ideia de que entender a cultura popular é diferente de conseguir conceituá-la e que mesmo o mais profundo entendimento possui lacunas. Sua compreensão pode ser reinscrita a

(36)

33

todo o momento, pois a cultura é hibrida e dinâmica e qualquer tentativa de conceituação apresentará faltas e falhas. Porém algumas posturas, como a percepção, o olhar e a sensibilidade do pesquisador, bem como sua disposição em se realocar, se reposicionar e ressignificar frente às diferenças culturais, são determinantes no entendimento do processo da tradução da cultura popular.

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma arqueologia. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu trabalho produtivo. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. [...]. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2013, p. 49).

A cultura, e, assim como ela, o Fandango Paranaense, possui dinamismo e transitoriedade, está sempre em processo, se reinventando e transformando, é constantemente reinscrita e sua simbologia é mutável, negocia com o tempo e o lugar e com todas as relações e saberes que a envolvem. Stuart Hall (2013) complementa:

[...] em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a cultura popular em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma percepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Em seguida, atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes e subordinadas. Observa o processo pelo qual essas relações de domínio e subordinação são articuladas. Trata-as como um processo: o processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas. Em seu centro estão as relações de força mutáveis e irregulares que definem o campo da cultura – isto é, a questão da luta cultural e suas muitas formas (HALL, 2013, p. 285).

A definição apresentada reconhece a cultura e todas as suas formas como compostas de antagonismos e instabilidades. Não há fixidez na cultura popular, assim não é possível garantir a estabilidade dos seus signos. A compreensão da tradição apresentou, historicamente, um posicionamento fixo e radical, porém ela é entendida como reinvenção, pois os signos e símbolos culturais ao serem incorporados em determinado campo social são ressignificados, e não apenas

(37)

34

reproduzidos e apropriados, os símbolos são atribuídos pelas culturas locais em que se inserem. A partir do exposto, apresentarei uma discussão acerca das tradições e seus processos de tradução cultural, articulando os conceitos que permeiam este entendimento.

O autor Homi Bhabha (2013) faz uma leitura sobre a articulação da diferença cultural e a tradição:

A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais e étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O direito de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição e de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão na „minoria‟ (BHABHA, 2013, p. 21).

O Fandango Paranaense, assim como grande parte das manifestações populares, passou por diversos processos, apresentando tentativas de permanência e resistência, sendo esta última um esforço de redesenhar o passado, no qual criou estratégias de reinscrição e condições de sobrevivência, por estarem condicionados aos poderes políticos e sociais. Para o mestre Aorélio Domingues15, isso aconteceu por que

[...] o Fandango teve vários processos de modificação, mesmo na época do Império ele era proibido porque ele era tido como muito lascivo, muito barulhento. Então tem muitos registros inclusive, até no livro do professor Magnus, que comenta sobre essas proibições, e que as pessoas que ditavam essas regras elas colocavam que o fandango tinha que ser arrumado, tinha que ser mais ponderado ou tinha que ser feito de outra forma, ou só feito por pessoas que conseguissem paga, ou seja, elitiza já naquela época (DOMINGUES, 2015).

O mestre acredita que, apesar do posicionamento do Estado em relação ao fandango, houve a persistência da tradição, pois foram criadas estratégias de negociação para dar continuidade à manifestação. Mestre Aorélio (2015) acredita que o Brasil, no período de 1400 a 1500, era um território sem lei e por isso foram tomadas provisões para “arrumar” o fandango. Para ele, “o fandango se fazia no meio da caboclada, da jagunçada, pessoal bêbado dançando com índio, com índia,

15

Referências

Documentos relacionados

financiamento direto às escolas, já que atuam no acompanhamento e execução do PDDE através da Associação de Pais, Mestres e Comunitários (APMC). Na abordagem teórica

Além disso, a ficha contempla dados sobre todos os programas do estado: Asas da Florestania (Programa específico do Estado do Acre, já citado anteriormente e que atende

Ao considerar a notável melhoria nos resultados do Idepe alcançados pelas escolas de Ensino Médio após a implementação do Programa de Educação Integral,

Ao ampliarmos um pouco mais a reflexão, poderemos retomar novamen- te a importância do professor no desenvolvimento de relações mais próximas com as famílias, fato que nos remete a

2 Denominação fictícia dada às escolas vinculadas.. dificultam a efetiva recuperação da aprendizagem dos alunos, além de investigar os efeitos sobre o desempenho

A presente dissertação é desenvolvida no âmbito do Mestrado Profissional em Gestão e Avaliação da Educação (PPGP) do Centro de Políticas Públicas e Avaliação

de professores, contudo, os resultados encontrados dão conta de que este aspecto constitui-se em preocupação para gestores de escola e da sede da SEduc/AM, em

A análise dos instrumentos apresentaram fragilidades no desempenho da gestão, descritas no estudo do caso e nas entrevistas que revelam equívocos institucionais,