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5 Ô DE CASA! ENTRE TAMANCOS, RABECAS, CAIÇARAS E BARREADOS –

5.1 DESVELANDO A ILHA E O FANDANGO – A TRADUÇÃO DE UMA

Durante a pesquisa de campo de 2014 senti que fui conduzida pelo som dos batidos dos tamancos. Atravessei a ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares e, entre ruelas – que mais pareciam um labirinto –, fui percorrendo o caminho até a casa do Mestre Romão, sendo que desconhecia o endereço. Porém, no caminhar, ouviam-se batidos de tamanco e, ao seguir o som e perceber que ele se intensificava, cheguei à casa do mestre. Romão me recebeu com muito carinho – mesmo sem eu comunicar minha visita, e permitiu que eu assistisse ao ensaio dos seus netos.

Ao fim do ensaio, enquanto ouvia histórias do mestre, seus netos, de um a um, se aproximaram para pedir a bênção ao avô. Essa demonstração de afeto e respeito reverberou em mim um sentimento de habitar um território que desde o primeiro contato apresentou a multiplicidade e potencialidade da cultura popular.

À noite, após o ensaio, fui ao mercado do café e pesquisandançando pude criar conexões com o universo do Fandango, as trocas de informações e as redes

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de relações criadas permitiram conhecer um pouco da vida na Ilha dos Valadares, e este saber me instigou a descobrir outros caminhos da pesquisa, a pista corpo- dança estava instaurada. Ao assistir aos quatro grupos de fandango da Ilha, percebi neles distintos modos de configuração da dança, pois apresentavam diferenças no modo de bater o tamanco, na organização de espaço e nos figurinos.

O primeiro contato com os grupos foi determinante para entender os processos de tradução cultural do Fandango, pois a partir dele foram tecidas informações que se entrelaçaram às experiências posteriores do campo.

Na sequência do trabalho de campo, em agosto de 2015, percebi outras informações além daquelas acessadas no primeiro contato, pude estabelecer um diálogo mais próximo com pesquisadores do Fandango e o reencontro com mestres e aprendizes foi contíguo, possibilitando estreitar relações, permitindo outra dimensão nas trocas. Senti que a disposição dos caiçaras em participar e colaborar com a pesquisa era ainda maior. Assim, foi instaurada a pista corpo-texto. Nesta etapa da pesquisa o Mestre Brasílio já não estava mais acompanhando o seu grupo, e essa ausência do Fandango causou em mim desconforto e problematizações que serão apresentadas a seguir.

Quando iniciei a terceira etapa do processo, em outubro de 2015, mais uma vez fui surpreendida pela generosidade dos residentes da Ilha, muitos fandangueiros se dispuseram a me ajudar a encontrar uma residência e, entre tantos, a família Pontes apoiou minha aventura de pesquisadora e nos acolheu em sua casa (eu e meu filho Nicolas). Neste processo o Nicolas já estava matriculado no CMEI da Ilha dos Valadares e inserido no seu projeto de Fandango para crianças.

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Figura 7 - Nicolas e coleguinhas do CMEI Arcelina Ana de Pina em apresentação de Fandango na Praça Ciro Abalém - Ilha dos Valadares – Nov. 2015.

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

No período de residência na Ilha dos Valadares o Nicolas participou de dois eventos do Projeto de Fandango do CMEI, sendo a apresentação de dança na Praça Ciro Abalém, na imagem acima (Figura 7), e a missa da Festa do Rocio, na figura abaixo, na qual representou a Fundação de Cultura de Paranaguá (FUMCUL) ao lado de sua coleguinha Heloísa Costa, neta do mestre Nemésio Costa.

Figura 8 - Nicolas e Heloisa representando o Fandango (FUMCUL) na Festa do Rocio - Nov. 2015. Fonte:Arquivo pessoal da pesquisadora

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Nossa rotina resultante do deslocamento – de Salvador para a Ilha dos Valadares – sofreu transformações, mas rapidamente nos adaptamos e passamos a desvendar a vida na ilha. O meio de transporte dentro da ilha é basicamente bicicleta e cavalo, normalmente, enquanto eu transitava a pé, encontrava os mestres de bicicleta com a viola ou rabeca nas costas e algum compadre na garupeira. A utilização das bicicletas como meio de transporte se dá porque pela ponte só podem passar pedestres, ciclistas ou motociclistas (tanto bicicleta quanto motocicleta precisam ser empurradas durante a travessia). Ao lado da ponte tem uma balsa para a travessia de carros e caminhões.

Figura 9 - Ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Na escola do Nicolas o transporte escolar era uma carroça, o que dava a sensação de morar num sítio. E essa sensação era ampliada quando passávamos as tardes no quintal da casa onde moramos desfrutando de jabuticabeira, mamoeiro, mangueira e laranjeira, além do brinquedo preferido do Nicolas ser um balanço (de corda e madeira) na árvore. Apesar de a Ilha dos Valadares estar se urbanizando, ainda é possível ver nas garagens das casas mais barcos do que carros e os caminhos que levavam aos ensaios ou à Associação Mandicuera permitiam observar artesãos e marceneiros trabalhando em seus ofícios de construção de canoas, bem como pescadores com suas varas e redes de pesca.

Ao fim de todos os bailes de Fandango no Mercado do Café – que fica do outro lado da ponte, em Paranaguá –, mestres e fandangueiros voltavam a pé para casa contando causos e histórias de pescador, e eu os acompanhava. A maioria dos frequentadores dos bailes são os caiçaras da Ilha, os demais são curiosos, turistas e

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pesquisadores. A ponte representa uma ligação entre o sítio e a cidade, um elo que facilita o acesso dos caiçaras a Paranaguá. Os bailes acontecem a cada quinze dias, e um grupo de cada vez é responsável pelas apresentações da dança e pela música do baile, com exceção das Festas do Fandango, realizadas todo mês de agosto, que possibilita o diálogo dos quatro grupos.

Durante o período da pesquisa de campo pude acompanhar ensaios dos grupos, e umas das primeiras impressões ao acompanhar os ensaios foi registrada no meu diário de bordo.

Numa noite chuvosa do dia 13 de outubro, às 20h, me dirigi à casa do Mestre Romão na companhia do pequeno Nicolas. Chegando a sua casa, mais uma vez encontrei no portão sua esposa, sempre doce e simpática ao me receber, me convidando para entrar e participar do ensaio. Neste momento já podia ouvir batidas de tamanco dos netos do mestre. No caminho ao galpão de ensaio veio ao meu encontro seu neto, Luiz Carlos, que, conforme o combinado, já estava me esperando. Na varanda da casa estava o mestre Romão observando com atenção os seus netos e sobrinhos que iniciavam o ensaio. Cumprimentei-o e me dirigi ao galpão. Fui recebida por olhos brilhantes e curiosos de jovens sedentos por saber quem eu era. Assim, Luiz me apresentou e pude conversar um pouco com eles, falando sobre minha pesquisa e que estava ali para aprender mais sobre o fandango. Ao fim da minha fala fui aplaudida e todos sorriram – foi um lindo gesto de agradecimento por pesquisá-los e de boas-vindas à Ilha dos Valadares (Depoimento da pesquisadora no diário de bordo, 2015).

Figura 10 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão - Outubro 2015. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Várias sensações e impressões foram registradas no diário, e reler é rememorar cada momento vivido na Ilha. São registros subjetivos de uma pesquisa que se fez no processo, coletivamente. Os ensaios significavam o lugar dos encontros, para os jovens do grupo do mestre Romão era um momento de

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descontração e diversão, mas ao mesmo tempo era encarado com seriedade o legado do avô.

Outro grupo em que pude acompanhar os ensaios foi o Pés de Ouro, do Mestre Nemésio, apesar de apresentar dinâmicas de organização muito diferentes do grupo já citado também acontece em forma de encontro, no qual se ri, conversa e, por fim, compartilha um lanche com os amigos. Os ensaios aconteceram na Casa Dacheux, no Centro Histórico de Paranaguá. A maioria dos integrantes do grupo de Nemésio é veterana no Fandango e o mais jovem é o mestre, com 67 anos, isso faz com que os ensaios sejam um encontro de compadres e comadres. Em um dos seus ensaios pude observar que

Há muita experiência na roda de batedores, cada qual tem um modo singular de bater e mesmo em sincronia é possível perceber um batido mais arrastado, outro mais enérgico, um mais tímido e outro ousado, entre as dançarinas há uma líder, que corrige as demais e organiza o grupo, entre os homens esta liderança só pode ser percebida na hora do arremate. (Depoimento da pesquisadora no diário de bordo, 2015).

Figura 11 - Ensaio do grupo Pés de Ouro. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

A seriedade e a concentração com que acontecem os ensaios são perceptíveis, assim como o desconforto quando alguém erra. Errar no fandango é fazer “balaio”, e quando um batedor erra o batido não tem como disfarçar, todos ouvem. Não sei se foi minha presença neste primeiro ensaio ou o fato de os netos do mestre terem participado que causou certa irritabilidade nos batedores veteranos, que resultou em sequências de erros. Havia uma diferença grande na marcação, quando os mais jovens entravam na roda os batidos soavam mais alto e o tablado

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de madeira vibrava com intensidade, e era feito um revezamento entre os jovens e os veteranos, com isso os senhores começaram a “se perder” nos batidos e iniciaram pequenas discussões: “Você bateu errado”, “trocou o batido”, “não era assim”.Mas rapidamente Mestre Nemésio justificou: “Sabe por que eles tão errando os batidos? Porque não tomaram nenhuma cervejinha! Acredita que o pessoal da fundação não deixa a gente beber aqui? Se eles tivessem bebido, soltavam os tamancos!” (risos) (COSTA, 2015). A declaração do mestre nos fez rir e ela se confirmou ao observá-los em bailes, onde não era possível ver fandangueiro do seu grupo fazendo balaio.

No final de semana que seguiu acompanhei os grupos Folclórico do Mestre Romão e Pés de Ouro em uma apresentação em Curitiba, na Boca Maldita57. Ao acompanhar o deslocamento de Paranaguá a Curitiba e a apresentação, percebi que o descaso com as culturas populares ainda é muito significativo. O primeiro problema apresentado foi em relação ao transporte para Curitiba – um ônibus com óleo vazando que só conseguiu chegar até uma garagem para ser trocado. Assim, chegamos ao destino apenas duas horas depois do previsto. Isso era aproximadamente 14h de um domingo, e todos estavam sem almoço, os veteranos do grupo Pés de Ouro e os jovens do Grupo do Mestre Romão.

Ao chegar ao local do evento percebemos desorganização, pois ninguém sabia comunicar aonde ir e com quem falar. E quando percebemos alguém disse: “Vocês vão apresentar agora, rápido!”. Fui ao camarim e ajudei as senhoras e as moças a colocar figurino e em minutos o grupo do Mestre Nemésio já estava no palco. Corri para fazer o registro fotográfico tentando com dificuldade acessar a frente do palco entre a multidão de pessoas. Assim,

Observei um grupo de pessoas rindo e zombando (alcoolizadas), gritando “Ih, fora!”, a tremenda falta de respeito com os artistas populares me desconcertou. Porém percebi que por ser um espaço público comportava distintas opiniões. Minutos depois de os músicos testarem os instrumentos iniciaram os fandangos batidos, as mulheres/senhoras do grupo Pés de Ouro dançaram o tempo todo para o público, com sorriso no rosto e acenando. Via nelas uma alegria ímpar e orgulho de estar representando a cultura popular. Assim, as vozes que pediam para eles saírem do palco foram abafadas pelos aplausos daqueles que souberam prestigiar o encanto do Fandango. E, de um modo muito simples, entre uma batida e outra, o

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Boca Maldita é a denominação de um espaço, sem área determinada, mas ao redor dos cafés, bancas de revista e bancos do calçadão na Avenida Luiz Xavier (Rua das Flores), onde se reúnem os "Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba", confraria esta que disseca todos os assuntos presentes nas manchetes dos jornais do momento em uma tribuna livre de palavras e pensamentos.

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Mestre Nemésio fazia correções aos integrantes do grupo e os reorganizava para o próximo batido, ele falava de um modo peculiar ao microfone e soava com graça a quem ouvia, era a voz do caiçara soando alto na boca maldita, e o silêncio se dava para que as pessoas entendessem o vocabulário da Ilha (Depoimento da pesquisadora no diário de bordo, 2015).

Figura 12 - Apresentação do Grupo Pés de Ouro - Boca Maldita - Curitiba - Out. 2015. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Figura 13 - Apresentação do Grupo Folclórico Mestre Romão - Boca Maldita - Curitiba - Out. 2015. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Dar espaço para uma expressão popular não é o suficiente, é necessário que isso se faça com o devido compromisso de assegurar condições para as apresentações. Assim, o descaso e falta de respeito com os mestres e aprendizes do fandango geraram algumas posturas nos mestres que pude acompanhar neste percurso da pesquisa. Outros convites para eventos foram feitos posteriormente e eles se posicionaram fazendo algumas exigências, por exemplo, o tablado para o batido – que não teve em Curitiba, entre outras coisas. Como as exigências não foram atendidas pelos organizadores dos eventos, eles recusaram a apresentação

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dos grupos. Foi uma postura que partiu da indignação dos mestres, dos aprendizes e minha, enquanto pesquisadora.

Eles me contaram, a partir dessa problemática, que a própria Fundação Cultural de Paranaguá já os convidou para apresentar e eles tiveram que bater tamanco nas pedras, conforme Anoldo Costa (2015), violeiro do grupo Pés de Ouro, “eles faziam assim ó... marcavam apresentação no Rocio, mas não levavam tablado, não levavam nada, aí nós tinha que bate na pedra [...]. Cancelemo esse ano a do Rocio, dança na pedra... já penso dança na pedra?”. Assim, ao compartilhar destes momentos com mestres e aprendizes do fandango, foi possível constatar que

Quando a cultura popular é convertida em espetáculo desterritorializado (isto é, deslocado de sua comunidade ou circuito de origem), ela passa a ganhar valor diante de consumidores de classe média urbana que podem transitar também por outras atividades culturais [...]. Deve-se então indagar quanto vale a cultura popular na visão do Estado brasileiro. Quem definiu, e com que critérios, que a cultura popular recebe sempre um apoio tão menor que o oferecido até hoje à arte erudita ou à arte popular comercial? E, quanto rende a cultura popular como produto ou serviço oferecido pela indústria do entretenimento? (CARVALHO, 2012, p. 42).

Se a prefeitura de Paranaguá não consegue perceber as necessidades do Fandango, como podem outras entidades fazê-lo? O fato é que o Fandango não pode ser transformado em bem simbólico e estético comercializável, a manifestação não está a serviço da mobilização cultural, não rende dividendos e não é apenas um clichê. Mas retrata um modo de vida dos caiçaras, envolve saberes e fazeres populares que vão além do valor mercadológico e precisam ser tratados com respeito. Sendo assim, “não faz sentido falar em culturas híbridas ou em trocas culturais sem tomarmos em conta as gritantes assimetrias de poder no campo da cultura” (CARVALHO, 2012, p. 46).

Não foi possível acompanhar durante a pesquisa de campo os ensaios dos grupos Ilha dos Valadares e Mandicuera. Os grupos não tiveram ensaios neste período de residência na Ilha, sendo os motivos: o afastamento do Mestre Brasílio do Fandango e o envolvimento do Mestre Aorélio com outras atividades em Curitiba. Porém pude participar dos bailes dos dois grupos e colaborar com um mutirão58 na Associação Mandicuera para organização do evento realizado nos dias 14 e 15 de novembro. Durante o mutirão trabalhávamos de dia e à noite os mestres tocavam e

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O mutirão consistiu na limpeza e organização do local para o evento, além das práticas da culinária caiçara – barreado, peixada e a mãe-cá-filha, comidas e bebida típica do fandango, respectivamente.

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cantavam fandango. As fotos abaixo são do grupo Mandicuera nas apresentações em agosto de 2014 e novembro de 2015, respectivamente.

Figura 14 - Grupo Mandicuera na Festa do Fandango Caiçara - Ago 2014. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Figura 15 - Grupo Mandicuera - Baile do Fandango no Mercado do Café – Nov. de 2015. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Os entre-lugares que o campo me proporcionou foram atravessados por situações desestabilizadoras e hibridismos. E, nesta dinâmica da cultura popular entre aulas de rabeca e viola caipira com o Mestre Zeca59, entre bailes e ensaios, peixada e barreado, caranguejo e camarão, danças e (an)danças, foram possibilitadas traduções do Fandango por distintos aspectos.

Toda tradução é feita pelo viés da pesquisa e ao considerar que não há neutralidade no conhecimento (KASTRUP; PASSOS, 2009) ela apresenta a

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Mestre Zeca (José Martins Filho), tocador e construtor de viola e rabeca, é referência do Fandango no litoral do Paraná, toca rabeca nos quatro grupos da Ilha dos Valadares e também viaja para outras ilhas a fazer Fandango. Participou ativamente da pesquisa, estando presente em quase todos os momentos da experiência do campo (dados da pesquisa de campo).

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subjetividade do pesquisador e do momento em que ele está inserido no campo. Assim, as problemáticas e reflexões apresentadas podem ser consideradas arranjos e desarranjos da cultura popular que se compõe por incertezas e devaneios do pesquisador.