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O curso de graduação Você quer ser professora de educação artística?

educação artística?

A abertura ao outro é movida, também, pela curiosidade. E muitas vezes nossa curiosidade nos move por caminhos cheios de quebras e descontinuidades. Eventualmente (quando nos pedem um memorial, por exemplo), revisitamos esses percursos, desde os registros da memória. Ao fazê-lo, vamos ajuntando fragmentos, retalhos, tentando reinventar sentidos para as narrativas daquilo que pensamos ter sido. Compomos painéis dessas memórias colecionadas ao longo da vida. Podemos pensar em inventários, como fez Arthur Bispo do Rosário (DANTAS, 2009). Para cada painel, elegemos critérios para a escolha dos objetos que integram a composição: cor, tamanho, textura, material, valor afetivo, estado de conservação... A esta altura, recupero, novamente, as palavras da professora Magda Soares, quando compara nossas memórias a riscos de bordado. Nunca sabemos o desenho completo. Ao contrário, “vamos bordando nossa vida, sem conhecer por inteiro o risco, representamos o nosso papel, sem conhecer por inteiro a peça” (1991, p. 28). Só quando podemos observar o já vivido constatamos os cortes, as linhas interrompidas, as mudanças de direção, algumas delas bruscas. A momentânea curiosidade adolescente marcou uma tomada de decisão definidora de minha identidade profissional. Na fila de inscrição no vestibular, indecisa entre a física ou a engenharia elétrica, deparei-me com um curso de licenciatura em educação artística, no manual do vestibulando. Alguém explicou: é o antigo curso de belas artes. Encantei-me com a descoberta. Aquela escolha frustrou as expectativas dos professores e causou espanto na família. Você quer ser professora de educação artística, e trabalhar na escola? Essa pergunta feita por minha irmã anunciava as perspectivas profissionais que me aguardavam, em substituição aos laboratórios de experimentos e pesquisa, planilhas de cálculos, projetos e plantas de redes de circuitos elétricos e eletrônicos. Lembrei-me do papel não muito relevante cumprido pelas professoras de educação artística na educação básica. Dei de ombros. Faria o curso.

Com 17 anos, iniciei a graduação. No primeiro dia, enquanto descia as escadas amplas pelo caminho ajardinado que me levaria ao auditório do Instituto Central de Ciências, o ICC, senti os degraus fugindo sob os pés. Tinha a mesma sensação que me tomara na noite de véspera à mudança para a cidade, para estudar, aos 9 anos. Uma nova paisagem se abria à minha frente, e não conseguia suspeitar os rumos aos quais me levaria.

Nessa nova paisagem, não se demorou para encontrar trincheiras às portas das salas de aula, montadas por estudantes em greve. À época, os reitores das universidades federais eram indicados pelo presidente da República, sem consulta à comunidade universitária. O então reitor da Universidade de Brasília, José Carlos Azevedo, estava em seu segundo mandato, vigente de 1980 a 1985. Militar da Marinha, tinha formação em engenharia naval, física e engenharia nuclear. Principalmente a ele, e à estrutura governamental vigentes, eram endereçadas as manifestações da insatisfação estudantil.

Aquele período foi marcado por contradições, lacunas e perplexidades. Muitos dos professores que, na década de 60, haviam participado da instalação do Instituto Central de Artes, conhecido como ICA, já extinto quando do meu ingresso, tinham sido demitidos, como consequência de seus confrontos ou dissonâncias com o governo militar. Dentre os professores que permaneceram, integrando o quadro docente do então Departamento de Desenho, alguns dos quais meus professores, bem poucos representavam focos de resistência crítica dentro da universidade.

Nesse contexto, eu e meus colegas nos formávamos professores de educação artística, entre oficinas de artes plásticas, desenho, cerâmica, teatro, dança, música, ateliers de gravura, eleições de DCE, greves de estudantes, confrontos com a polícia, e a fundamentação do ensino de Arte apoiada, em parte, em orientações da LDB nº 5692 e em parte no chamado ideário escolanovista.

No tocante à Lei de Diretrizes e Bases vigente, destacava-se o perfil polivalente na formação de professores da educação básica. O curso que formava professores de arte para o ensino fundamental era uma Licenciatura de curta duração, com três anos, e preparava para a atuação em artes plásticas, música e teatro. Já a formação para a atuação no ensino médio durava quatro anos, no formato de Licenciatura plena. Na base inicial do currículo estavam as várias linguagens

artísticas. Em seguida, aprofundava-se na formação específica, de acordo com a habilitação escolhida. Minha formação teve habilitação em artes plásticas.

Já o ideário escolanovista fundava-se na defesa do direito de todos à escolarização formal, pública, de qualidade. Nela, defendia-se que o exercício das linguagens artísticas tivesse, por base, a liberdade de expressão a partir da livre experimentação. A ênfase do curso esteve nas disciplinas práticas, com pouco espaço para uma problematização mais ampla e consistente nas áreas da cultura, da estética, da história das artes, das linguagens artísticas e, mesmo, da arte- educação e suas concepções teóricas e metodológicas. Dentre as professoras que se tornaram referência, cito Helena Barcelos (oficina de teatro, educação, abordagens interdisciplinares), Cathleen Sidki (desenho) e Ligia Saboya Freitas (oficina de artes plásticas, litogravura, ensino de artes). No campo da educação, Teresinha Rosa Cruz foi referência com marcos fundantes, os quais pude retomar e sistematizar mais recentemente.

Um pouco além das questões curriculares, uma extensa gama de atividades tomou parte dessa formação, desde as aulas de dança em projetos de extensão, à participação em grupos de teatro, aos embates deflagrados pelos projetos de arte contemporânea, e às ações demandadas pelos centros acadêmicos e diretório central de estudantes. No entanto, minha inserção em todas essas frentes era marcada pela condição de dúvida frente as convicções que moviam muitos de meus colegas (ao menos eu acreditava que fosse assim...), particularmente os mais ativos na cena cultural e política. Eu outra, estrangeira. Essas dúvidas também pulsavam nas aulas de história da arte, de filosofia, de estética. De onde emanavam as tantas certezas de que os discursos e as ações deles decorrentes estavam impregnados? Por que, tantas vezes, as ações ou posturas de estudantes e professores não correspondiam aos seus discursos? Como deveria me situar em relação àquilo tudo?