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Linhas de fuga partem do ponto em que o observador, ou a observadora se encontra, e vão em direção ao infinito. Dirigem-se a algum ponto onde o olhar e o horizonte se cruzam. No mais das vezes não são retilíneas. Quase sempre, como as riscas de bordado, quebram-se, em descontinuidades.

Estradas constituem linhas de fuga. Gestos também. Desejos. Projetos. Devires... Mais de três décadas depois de ter concluído a graduação, lanço-me à ventura de voltar à condição de discente, para cursar o bacharelado em filosofia. O que uma professorinha de artes pode aprender num curso de filosofia? Ante a perplexidade destes tempos, o curso de filosofia pode abrir flancos para o aprofundamento em perguntas que, bem sei, não terão respostas. Mas fornecerão matéria prima para levar a cabo outro projeto, que provisoriamente denomino de Tratado para-

filosófico ficcional sobre a espécie humana. A ênfase desse pensar pretende

estar na crítica à perspectiva antropocêntrica que preside as produções nos diversos âmbitos da cultura: religião, arte, ciência.

Embora ciente quanto à impossibilidade de perceber e construir interpretações sobre o mundo fora da condição humana, da qual não me é possível desvencilhar, me disponho a experimentar a formulação de um pensamento segundo o qual a espécie humana não ocupe centralidades na produção de linguagem, cultura, conhecimento, ou seja lá o que mais. Compreender a condição humana numa relação de paridade às demais substâncias vivas, conhecidas e desconhecidas por nós, pode traçar outras perspectivas e possibilidades para repensar as próprias questões relativas aos modos de fazer, sentir e saber e, portanto, à educação, às artes, à cultura, e tanto mais.

No entanto, esse projeto/escrita também não se pretende tomar muito a sério, num esforço por reivindicar menos poder à própria narrativa humana de si sobre o mundo. E apresenta-se em camadas, desde relações mais próximas, dentro dos circuitos de atuação profissional, estendendo-se, em pequenos saltos, a circuitos cada vez mais abrangentes, com os olhos buscando luzes e buracos negros nas galáxias, as visíveis, as não visíveis... particularmente as não sabidas...

Ora, esse projeto encontra-se circundado, antes, de outros projetos que reclamam prioridade. Dentre os quais, está a sistematização de escritas sobre o trabalho das professoras Maria Felisminda de Rezende e Fusari, a querida Mariazinha Fusari, e de Lais Fontoura Aderne, a nossa Lais Aderne, que, de distintas maneiras, marcaram minha formação.

Mariazinha Fusari foi pioneira no desenvolvimento de pesquisas estabelecendo relações entre mídia e infância, desde as questões da educação, da comunicação e da arte. Quando a obra de Vilém Flusser era ainda ignorada nessa área de estudos, ela me orientou a abordar as questões das imagens técnicas no trabalho final do mestrado. Embora, no campo do ensino de artes, ainda tenha sua produção muito pouco explorada, é respeitada entre pesquisadores que trabalham com a noção de educomunicação, tendo sido cofundadora do Núcleo de Comunicação e Educação NCE, da Universidade de São Paulo (USP).

Da mesma forma, o trabalho de Lais Aderne reclama sistematização, para ganhar visibilidade. Seu nome se faz presente, hoje, sobretudo entre os projetos dos eco- museus aos quais deu início, e que continuam em funcionamento. No entanto, sua atuação foi bem além dessas frentes, tendo articulado de modo singular as relações entre meio ambiente, sustentabilidade, educação, arte e cultura, num sentido comunitário e colaborativo. Uma colecionadora de pessoas, como teria referido o filho, Pierre Aderne, por ocasião de seu falecimento.

Entendo o importante papel que Mariazinha Fusari cumpriu, na minha formação, quanto à aproximação entre as questões da arte, da educação e das mídias. Do mesmo modo, o quanto as interlocuções com Lais Aderne me motivaram a pensar as relações entre educação, arte e cultura desde outros pontos de vista. Seu trabalho tem sido uma das fontes inspiradoras para avançar sobre o rascunho disso que tenho chamado de poética da solidariedade, talvez poiesis da solidariedade, nas relações com a cultura, a educação, as artes e o cinema.

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Como é possível notar, as linhas de fuga não se desenham em paisagens vazias de relações, tampouco têm origens em territórios desabitados. Chegaram até este ponto por vias compartilhadas, por redes de relações, e só assim é possível que prossigam, instaurando o vir-a-ser. Nada do relatado neste memorial teria sido

possível não fossem as parcerias de caminhada. Por isso, escolho fazer referência a todos com quem eu tenha caminhado, no ofício da orientação e da supervisão, bem como a docentes e profissionais das áreas técnicas na UFG. Como não conseguiria citar todos os nomes, o farei por meio de alguns, que adensam essas relações, pelos vínculos plurais.

Por primeiro, lembro de todos os meus orientandos e todas as minhas

orientandas, principais motivações da caminhada nestes últimos 16 anos, citando

duas interlocuções que se estabeleceram nos três âmbitos: graduação, mestrado e doutorado. Tratam-se da professora Adriane Camilo Costa, hoje professora na Secretaria Municipal de Educação de Goiânia e na PUC/GO, e Paul Cezanne Souza Cardoso de Moraes, artista hoje radicado em São Paulo, com um percurso instigante e promissor. Acrescento uma terceira referência, o professor Juan Sebastián Ospina Álvarez, de quem fui orientadora no mestrado, pela Universidad de Caldas, na Colômbia, e no doutorado, na própria UFG. Em nome dele, reporto a importância de todas as interlocuções com quantos pesquisadores e realizadores de outros países, neste percurso. Suas atuações desenham linhas de fuga outras que se lançam a mapas tantos, multiplicando possibilidades.

Reporto gratidão a meus e minhas colegas de trabalho, tanto na docência quanto nas áreas técnicas, citando algumas interlocuções que também estabeleceram o trânsito desde as relações de orientação e supervisão, chegando à parceria profissional, e vice-e-versa. A professora Carla Luzia de Abreu era estudante de graduação quando cheguei à FAV. Desde então, cumprimos alguns trajetos lado a lado, como orientadora e orientanda, e hoje é parceira na docência e em quantos outros projetos. A professora Noeli Batista dos Santos me propiciou aventuras sensíveis “além do espelho de Alice”, quando fui sua orientadora, no mestrado. Ouso incluir os nomes das professoras Valéria Fabiane Braga Ferreira e Lilian Ücker, de cujos percursos, no mestrado, eu pude me aproximar, em alguma medida, na condição de coorientadora. Hoje posso partilhar com essas quatro mulheres, por quem cultivo profundo respeito, as alegrias e as tensões de sermos docentes nesta Faculdade de Artes Visuais. E com quem posso compartilhar projetos, linhas de fuga, outras fatias de utopia! A professora Lara Lima Satler, de quem fui orientadora no doutorado, deu continuidade à nossa interlocução no pós-

doutorado, quando respondi pela supervisão. Embora esteja vinculada a outra unidade na UFG, a Faculdade de Informação e Comunicação, mantemos os laços muito estreitos em projetos vários, em importantes trânsitos interdisciplinares. O servidor Renato Cirino que, sendo técnico na área de audiovisual da FAV, manteve diálogo comigo como orientando no mestrado e doutorado. Tendo formação também como professor de Artes, é parceiro em quantos projetos de pesquisa, extensão e ensino. A servidora Julia Mariano Ferreira, que, sendo fotógrafa e funcionária da UFG, é também professora na UEG. Orientanda de mestrado e doutorado, tem sido companheira em bordados, poesias e outras tramas de afetos e saberes. Finalmente, reporto Alzira Martins Prado, secretária no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual. Tendo caminhado lado a lado comigo nos anos que cumpri como coordenadora do Programa, agora assume também a posição de discente, para cumprir a formação no mestrado, com minha orientação.

Entreato 15

Tenho me ocupado, cada vez mais, com coisas desimportantes...

Num texto intitulado “Antropologia de uma imagem sem importância”, o professor Etienne Samain (2003) se debruça sobre o espanto que lhe causa uma fotografia realizada por seu filho, então com 9 anos de idade, e todas as perguntas por ela disparadas em sua direção. O autor discorre sobre o quão inquietante é a capacidade dessa imagem em subverter as palavras, configurando espaços múltiplos do imaginário humano, individual e coletivo. Em suas palavras, aquela imagem ousa “reivindicar e roer (...) um pedaço da realidade” (p. 47).

Não é só com imagens visuais que tenho me ocupado. Com elas também. Inclusive as fotográficas e as do cinema. Mas é com desimportâncias de toda sorte que tenho aprendido fazeres, experimentado sentires, construído saberes... movida pelas perguntas que elas me disparam, e pelos pedaços de realidade que roem... Para melhor me explicar, peço ajuda ao poeta Manoel de Barros (2018, p. 25).

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras

fatigadas de informar. Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Para o contexto das artes e da cultura visual, a questão da desimportância, esse “atraso de nascença”, é abordada com muita propriedade pelo pensador argentino Colombres (2005): “El problema del arte es el problema de todo que se coloca fuera de él, en la anodina esfera del no-arte, ese reino de la insignificancia que se ha convertido en un poderoso mecanismo de dominación” (p. 277). Esse reino da insignificância e suas bordas indefinidas, que o mundo das coisas importantes da arte (e da política, e do mercado...) teima em colonizar, me interessa por sua pluralidade, pela multiplicidade de formas, cores, movimentos, conhecimentos. Sobretudo, pela capacidade de resiliência e pelas estratégias de resistência. É em seus territórios que proponho cultivar, coletivamente, sementes de poética da solidariedade...