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Doutorado em Sociologia: as aventuras de uma professorinha de artes na

Tinha pouco contato com o campo da sociologia. Eu cumprira a disciplina

Introdução à sociologia na graduação, e Sociologia da educação durante o

mestrado. Fora dos territórios dessas duas disciplinas, estudara poucos autores, por motivação própria. Por isso a ideia de propor um projeto de pesquisa ao doutorado em sociologia parecia uma imprudência. A despeito disso, e atenta aos conselhos da professora Iria Brzezinsky, decidi investigar alguns aspectos sociológicos do ensino de artes, propondo discutir práticas artísticas desenvolvidas por jovens fora das escolas em contraponto ao ensino de artes promovido a partir dos currículos escolares.

A proposta foi motivada pela conversa com três meninas adolescentes integrantes de uma banda de punk rock, que também trabalhavam com pintura, grafitti, tatuagem, entre outras atividades. Indagadas sobre o que estudavam, na escola, nas aulas de artes, responderam que era “normal”. Para elas, a normalidade residia no fato de a escola lhes oferecer aulas de história da arte, nas quais aprendiam conteúdos que não dialogavam com suas vidas, ignorando sua atuação. Seria surpreendente, para as adolescentes, que a escola passasse a se inteirar de seus projetos. Talvez nem tivessem, mesmo, interesse nessa possibilidade (MARTINS, 2008). Essa questão ultrapassava as questões da educação escolar, e decidi abordá-la a partir das dinâmicas sociais.

Munida do projeto de pesquisa, aprovada no processo de seleção, dei início ao contato com as obras de teóricos clássicos e contemporâneos da sociologia. O fôlego ficava em vias de me faltar, tais eram os desafios e os vislumbres que se abriam a cada etapa. Quantas revoluções eram possíveis nos modos de pensar de uma professorinha de artes?

Logo no primeiro ano do curso, conduzida pelas aulas do professor Sérgio Paulo Rouanet, tive o privilégio de estudar as relações entre a psicanálise e a sociologia, a partir dos trabalhos deflagrados pelo Instituto para Pesquisa Social, conhecido

como Escola de Frankfurt. A triangulação possível entre essas linhas teóricas com o cinema mostrou-se um território altamente instigante.

Estimulada por uma observação inesperada feita pelo professor, mais uma vez, deparei-me com um corte na risca do bordado, deslocando o foco de pesquisa para o campo do cinema e da ficção científica. Na nova abordagem, busquei estabelecer relações entre teorias sociológicas que tratam da cultura, da indústria cultural, das tecnologias, das imagens técnicas, e dos universos imagéticos projetados nas telas das salas de cinema, redesenhando futuros de naturezas as mais diversas, no decurso do século XX. A mudança foi acolhida pelo meu orientador, o professor João Gabriel Lima Cruz Teixeira, o melhor anfitrião que poderia ter me recebido naquelas searas da sociologia da cultura, em diálogo com as artes, as performances e o cinema.

Ao decurso dos trabalhos, no entanto, constatei que, embora aparentemente houvesse me desviado do projeto inicial, de fato as questões relativas à educação, às artes visuais e ao ensino de artes formavam a base da imersão no universo do cinema, entendido como um campo com grande repercussão na formulação de pensamento e no fornecimento de elementos formadores dos nossos imaginários. Fazia parte daquilo que, alguns anos mais tarde, vim a discutir como campo das chamadas pedagogias culturais (MARTINS & TOURINHO, 2014).

Tal abordagem permitiu compreender que, em grande medida, as narrativas cinematográficas integram nossas memórias e referências tanto subjetivas quanto coletivas de mundo, de modo que nossas identidades dialogam com elas. A tese, defendida em 2004, tratou da ficção científica no cinema e a questão do imaginário social sobre o devir. A argumentação foi construída em torno à ideia de que as questões relativas ao futuro ganharam dimensão visual e sonora, no século XX, nos filmes de ficção científica, como resultado dos entrecruzamentos entre desenvolvimento científico e tecnológico, espírito inventivo, ilusionismo e arte. As metáforas científico-ficcionais das narrativas fílmicas constituíram uma espécie de testemunho dos contextos sociais e históricos nos quais são produzidas.

A pesquisa envolveu o mapeamento de mais de 1000 títulos de filmes realizados entre 1902 e 2002. A discussão teórica foi construída a partir de um conjunto de duas dezenas de filmes, e organizada em torno a três eixos: as cidades que habitam

os filmes de ficção científica, os sistemas de controle social assentados em bases tecno científicas, e o antagonismo entre as noções de nós e de outros. A tese foi reescrita e publicada em livro, pela Editora UnB (MARTINS, 2013a). A imersão nas histórias em que se entrecruzam ficção e ciência propiciou o reencontro com as aventuras das pesquisas nos laboratórios de física e de eletrônica, abandonadas desde a conclusão do ensino médio, e as aventuras das histórias fantásticas que se podem contar. Além disso, abriu cenários e questões que puderam ser retomadas posteriormente, em outras pesquisas.

Entreato 6

No último semestre do doutorado, tive o privilégio de conversar sobre meu assunto com o Prof. Octávio Ianni, durante um congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Respeitado cientista social, tinha especial interesse em debater e combater as diferenças e injustiças sociais. Nos anos 1990 e início dos anos 2000 publicou livros sobre os processos de globalização da economia, bem como no campo da sociologia da cultura. Sendo um dos autores de base referidos na tese, pedi autorização para lhe enviar parte do material. Já estava em vias de finalizar a escrita, quando fui surpreendida por seu telefonema. Mostrou-se entusiasmado com o assunto, mas muito zangado pelo fato de eu perder um tempo desnecessário dedicando-me à escrita sobre metáfora, algo infrutífero, afirmou. Que eu deveria tergiversar menos e entrar logo na crítica mais dura à hegemonia colonizadora e imperialista dos Estados Unidos da América do Norte, dizia ele, do outro lado da linha, com voz eloquente. Àquelas alturas, independentemente do resultado da banca, sentia-me já doutorada, pela advertência devidamente consubstanciada, em interlocução tão respeitavelmente especial. Ao mesmo tempo, também me senti autorizada a pesar a mão na receita do mestre: menos teoria sobre metáfora, mais análise crítica... e tomadas de posição crítica de modo mais explícito frente às relações de dominação e injustiça social.

Naquele mesmo período, retomei parte dos trabalhos na Faculdade Dulcina de Moraes, convidada a coordenar a implantação dos cursos de especialização em Arte-Educação/Artes Visuais; Arte-Educação/Teatro; História das Artes Visuais; Arte, Educação e Inclusão. Os poucos artistas e muitos arte-educadores que formaram as turmas, em sua maioria, tinham concluído seus cursos de graduação havia alguns anos, até mais de uma década. Os professores vinham se dedicando, desde então, exclusivamente à atuação em escolas da educação básica. Viam, ali, a possibilidade de formular reflexões a partir de suas próprias vivências práticas, como condição de ampliação de suas visões de mundo, e da construção de compreensão de suas inserções no mundo.

Além de coordenar os cursos, orientei um projeto de pesquisa, cuja referência, neste memorial, se justifica, pelo entrecruzamento de vários vetores importantes. Intitulado Duas Mulheres de Fibra, foi desenvolvido por Eudirce Silva Almeida, estudante que enveredou pelos estudos tardiamente, tendo concluído a graduação pouco antes de completar os 70 anos. Seu trabalho, na especialização, abordou o percurso de duas outras mulheres: a artesã-artista Dona Clotildes, que produz famílias de bonecas feitas com bucha e as expõe na Feira de Trocas, em Olhos D’Água, no município de Alexânia, em Goiás, e a arte-educadora Lais Aderne, responsável pela criação da Feira de Trocas, no início dos anos 1970. Nos anos 1980, como Secretária de Cultura do DF, organizou o Festival Latino Americano de Arte e Cultura FLAAC, tendo sido, também, a primeira presidente da Federação de Arte Educadores do Brasil FAEB. Além desses trabalhos desenvolvidos, ela esteve à frente de alguns projetos com eco museus, incluindo o Eco Museu do Cerrado. Sua concepção de educação não se dissociava da cultura e das questões ambientais, transpassada por uma noção de arte situada muito além dos territórios demarcados pelo sistema da arte.

Os vários encontros com Laís Aderne (anos 1980, anos 2000) motivaram reflexões importantes, as quais foram sistematizadas muitos anos depois, com alguns textos já publicados. Neles, busco articular algumas questões caras aos projetos de pesquisa, ensino e extensão em curso. Cito, por exemplo: Rascunhos para uma poética da solidariedade como exercício crítico à concepção colonizadora da arte (MARTINS, 2018b).

No mesmo semestre da conclusão do doutorado, e concomitante à coordenação dos cursos de especialização, assumi, como professora substituta no Departamento de Sociologia, a disciplina Introdução à sociologia. A disciplina era oferecida a todos os cursos da universidade, fazendo parte do núcleo comum obrigatório de muitos deles. Havia muitas turmas, com um número muito grande de estudantes. Fiquei responsável por três turmas com cerca de 100 estudantes cada. A despeito da extensão do desafio, foi prazeroso descobrir aspectos sociológicos para áreas profissionais tão distintas entre si, tais como a medicina, as engenharias, além da educação, do direito e da psicologia.

O concurso para professor efetivo na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás foi noticiado em meio a essa efervescência. Já inscrita, mas ainda indecisa entre avançar no concurso, ou investir na continuidade à carreira docente na Universidade de Brasília, fiz a escolha. Nela, pesou a possibilidade de participação na instauração do novo, o que me pareceu ser, àquele momento, mais potente na Faculdade de Artes Visuais, da UFG. Tomada a decisão, também encaminhei o último pedido de exoneração da rede pública de ensino do Distrito Federal, quase duas décadas depois do primeiro ingresso.

SEGUNDA PARTE:

DOCÊNCIA, PESQUISA, EXTENSÃO E GESTÃO NA

13.

Chegada à Universidade Federal de Goiás. A