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Anexo I – Projeto 1 Imagens Utilizadas

3 O DÍA DE LOS MUERTOS E O DIA DE FINADOS

3.1 O DÍA DE LOS MUERTOS NO MÉXICO

O Día de los Muertos tem origem e significados que vão muito além de fantasiar-se para festejar, pois não é disso que se trata, mas sim, de reunir-se para celebrar e honrar seus antepassados e entes queridos. Mariano Gallego (2007, p. 94) diz que desde antes da chegada dos espanhóis, os indígenas da Mesoamérica acreditavam que a vida continuava após a morte, e que ambas não pertenciam a eles, mas sim às vontades dos deuses, por isso a morte era uma maneira de participar das suas forças criadoras, enquanto que os católicos acreditam que a morte é a passagem para a vida eterna. Villasenor e Concone (2012, p. 39) citam que, devido à força das crenças/indígenas, os missionários não conseguiram acabar com esse culto aos mortos, mas apenas modifica-lo e transferi-lo para os dias de “todos os santos” e dos “fiéis defuntos”, em 01 e 02 de novembro.

O Día de los Muertos surgiu então, a partir de um sincretismo religioso entre os cultos pré-hispânicos e a religião católica, trazida pelos espanhóis e se mantém até hoje, tendo recobrado força principalmente a partir do início do século XX, quando José Guadalupe Posada cria a Calavera Catrina, de personalidade notável, caráter contestador, simpática e ao mesmo tempo com função de memento mori, mas, principalmente, na época da Revolução Mexicana, “símbolo da renovação indigenista da arte mexicana” (ALVES, 2019, p. 67). Posteriormente, tornou-se símbolo da integração pré-hispânica e pós-colonial e, segundo Syntia Alves (2018, p. 67- 68), atualmente é “o esqueleto de maior importância quando se relaciona a caveira à cultura mexicana e há tempos vem se fortalecendo pela aceitação dos próprios mexicanos como elemento central da identidade cultural do país". Por essa tradição e identidade nacional, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura), em 2003, reconheceu a celebração do Día de los Muertos como Patrimonio Cultural e Imaterial da Humanidade (VILLASENOR, 2015, p. 4).

Syntia Alves (2015, p. 84) define a cultura mexicana como um mosaico de culturas, “um encontro de distintas partes que, mesmo contraditórias, quando reunidas dão origem a uma peça única, com partes que aparentemente convivem de maneira harmônica” e, segundo ela, essa mescla define a identidade cultural do país, que tem a segunda maior população católica do mundo. Alves (2015, p. 85) afirma que o

mexicano se deixa levar pelas crenças sincréticas, a visão da morte em especial, porque, mesmo após a Revolução Mexicana, não houve mudança nos sistemas de poderes e o povo continua desprovido de esperança.

Segundo Villasenor e Concone (2012, p. 40), essa celebração faz parte da resistência indígena e de suas raízes, que foram destruídas em grande parte pelos espanhóis e os autores explicam dizendo:

A tradição da celebração dos mortos, entretanto, permaneceu mais ou menos igual aos costumes originais dos diversos povos indígenas. Assim, a população deu destaque à festa do dia dos mortos, sendo parte do imaginário e da cultura popular mexicana, passando a ser vivida de maneira sincrética, misturando culturas indígenas e catolicismo popular. [...] Atualmente é a festa em que a morte invade a vida e a vida invade a morte, como dois movimentos do mesmo evento.

Através dessa mudança, ocasionada por esse sincretismo religioso e cultural, com a chegada dos espanhóis, o festival, convertido no Día de los Muertos, proporcionou aos mexicanos encontrarem nessa comemoração uma maneira de conviver e preparar crianças e adultos para a realidade inevitável que é a Morte. Villasenor e Concone (2012, p. 42) consideram que esse tipo de ideia move o homem de maneira positiva diante da morte, já que o aproxima dela e, mesmo sabendo que essa é indecifrável, pode permiti-lo brincar com ela. No Día de los Muertos, costuma- se presentear amigos e familiares com caveiras de açúcar para recordar que um dia todos morreremos (Figura 30).

Figura 30 – Calaveras de Açúcar

Para os mexicanos, vida e morte não são opostos, somos mortais e ela não é um fim, mas o começo de uma nova realidade. “A caveira segue sendo um importante ícone e reafirma a ideia de que, no México, os mortos nunca se vão completamente, e a Morte continua sendo uma personagem viva (ALVES, 2015, p. 86).

No México, diferentemente do resto do mundo, onde o Dois de Novembro assume um tom mais fúnebre, segundo Villasenor e Concone (2012, p. 42- 45), o Día

de los Muertos é uma celebração colorida e ruidosa e dura dois dias, e nela os

mexicanos mantém o costume de retratar e ridicularizar a morte com fantasias, brincadeiras e as Calaveras Literarias (Figura 31).

Figura 31 – Calavera Literaria (s/d)

Fonte: (Calaveras Literárias. 2013)

Em Primeiro de Novembro, o Dia de Todos os Santos, festeja-se a visita da alma dos angelitos que morreram e, no dia 2, prepara-se a bebida preferida dos adultos que partiram, para que os vivos brindem por estarem vivos. Tem elementos comuns em todo país e variações conforme a região ou estado mexicano. A celebração pode acontecer nos túmulos, nos cemitérios, ou nos altares montados em casa, onde são feitas as oferendas, e nelas cada elemento tem um significado, em especial a Cempasúchil (Figuras 32 e 33), flor que tem em torno de três mil anos e o nome vem do vocábulo náhuatl, Cempoalxóchitl, que significa Vinte Flores. Somente

floresce depois das chuvas, de agosto a novembro, por isso conhecida como Flor dos Mortos. Os pré-hispânicos usavam essa flor para honrar seus mortos porque diziam que ela guardava o calor do sol.

Figura 32 – Campesino no campo de Cempasúchil (2018)

Fonte: (GALLEGOS. 2018)

Figura 33 – Flor de Cempasúchil (2017)

Os mexicanos as colocam nos altares de oferendas, nos túmulos e fazem caminhos com suas pétalas, pois acreditam que seu brilho e calor guia os mortos ao altar, assim como seu regresso para o mundo dos mortos, em especial durante a noite (NEOMEXICANISMOS, s/d. p 3-4). Os túmulos são lavados, ornados com papéis, flores e velas, além de servirem para a família fazer piquenique e ofertar comida e bebida ao ente querido falecido (Figura 34).

Figura 34 – Día de los Muertos em Oaxaca, México (2015)

Fonte: (SORIANO. 2015)

Nos altares das casas (Figura 35), coloca-se flores, velas, comida, caveiras de açúcar, fotografias e pertences dos entes que se foram, a Morte é celebrada com bebidas, músicas e rezas, e a data é vivida com alegria e diversão. As velas, quando roxas, são sinal de luto; se forem quatro velas, dispostas em cruz, representam os pontos cardeais, para que as almas possam se orientar e encontrar o caminho (VILLASENOR, 2015, p. 9). Todas as representações são um deboche da Vida e da Morte, uma asserção do quanto a existência é pequena, insignificante e transitória (PAZ, 2014, p.59).

Figura 35 – Organização dos Altares de Muertos (2015)

Fonte: (QUERÉTARO, 2017)

Tanto nos cemitérios, também chamados de panteões, como nas casas, as celebrações são acompanhadas de comida, bebida, canto, dança, orações, lamentos e risos, afinal a Vida e a Morte são inseparáveis e a melhor forma de enfrentar a Morte é encarar, rir e brincar com ela, como parte da Vida. Sendo a morte o fim inevitável, de um processo natural: “Num mundo de fatos, a morte é mais um fato. Mas como é um fato desagradável, um fato que questiona todas as nossas concepções e o próprio sentido da nossa vida, a filosofia do progresso pretende escamotear sua presença” (PAZ, 2014, p.57). No mundo moderno, as pessoas agem como se a morte não existisse, mas não o mexicano. Ele vive diariamente com ela e costuma dizer em seus ditos, festas, que não se assusta com a Morte, porque “a Vida já o curou dos espantos”.

Octavio Paz (2014, p.49- 64) explica, que os mexicanos são muito reservados e sofridos e que as festas são seu único luxo para compensar a sua parcimônia e miséria, assim como são a libertação das normas que a sociedade se auto impõe. Para Paz (2014, p. 54), não existe nada mais alegre que uma festa mexicana, mas também não há nada mais triste, pois a noite é de festa e de luto, de vida e morte. Ele explica que a Morte é um espelho da Vida, e se a Vida não teve sentido, tampouco a Morte o terá, porque morremos como vivemos. E o mexicano, atraído pela Morte, se expressa de maneira vibrante, forçado pela pressão da sua vitalidade. O mesmo autor (2014, p. 202) diz:

Para os Astecas, o tempo estava ligado ao espaço e em cada dia, a cada um dos pontos cardeais. Pode-se dizer o mesmo de qualquer calendário religioso. A Festa é mais que uma data ou um aniversário. Não celebra, reproduz um acontecimento: abre em dois o tempo cronológico para que se reinstale, durante algumas breves horas incomensuráveis o presente eterno. A festa torna o tempo criativo. A concepção vira criação. O tempo gera.

Por isso a celebração tornou-se uma das mais populares do México, conhecida no mundo inteiro. Morte e Vida são inseparáveis, então o culto a uma é também o culto à outra. Costuma-se presentear amigos e familiares com caveiras de açúcar para recordar que um dia todos morreremos. Para os mexicanos vida e morte não são opostos, somos mortais e ela não é um fim, mas o começo de uma nova realidade. Como diz Octávio Paz (2014, p. 60) “a vida é a morte e que morte é a vida”.

A representação da morte na cultura mexicana, como conhecemos na atualidade, foi desenvolvida pelo artista José Guadalupe Posada, responsável por consolidar a festa dos mortos por suas interpretações da vida cotidiana, e atitudes do mexicano, por meio de caveiras atuando como gente comum, o que desenvolveu em suas gravuras e desenhos. Retratava as vaidades humanas, pessoas da alta sociedade e caricaturas com conotações políticas e sociais, mostrando as desigualdades existentes.

Posada se tornou marco na arte e na iconografia mexicanas, pois criava desenhos, gravuras e caricaturas sobre a morte, que acabaram por consagrá-lo. Posada foi criador das caveiras dançantes e da icônica Catrina, a dama de alta sociedade, variante feminina do Catrín (dândi) (Figura 36), e que cumpre a função de

memento mori, destinado a lembrar que as diferenças sociais não significam nada,

diante da morte, encontrando assim, “na ironia da morte, uma maneira de desenvolver a crônica da vida mexicana de sofrimento do povo”(VILLASENOR e CONCONE, 2012,

p. 41-42). A visão e reação frente a morte na cultura mexicana, assim como suas representações, em especial as gravuras feitas por Posada, são abordadas por Mariano Gallego (2000), Jorge Luiz Rodriguez (2011) e Jimena Gómez-Gutiérrez (2011).

Figura 36 – José Guadalupe Posada - Calavera del Catrín (Calavera de un lagartijo) (s/d), Amon Carter Museum of American Art, Fort Worth, Texas

Fonte: (CARTER. 2017)

Pelo aspecto social e político de seus trabalhos, Posada é um artista não- europeu, que dialoga com o expressionismo alemão. Por meio dos esqueletos e caveiras, fazia as sátiras e críticas sobre a realidade do povo e suas mazelas e retratava as angustias, dores e aspirações do povo mexicano, que vão de encontro com a situação europeia retratada pelos expressionistas. Sua extensa produção gráfica, estimada em mais de vinte mil gravuras, feitas em litografia ou placas de metal, recriam com imaginação extraordinária, grande senso de humor e capacidade crítica profunda, os males, misérias e preconceitos da realidade social e política de seu tempo (LUZ, 2016, p. 1-18) (Figura 37).

Figura 37 – José Guadalupe Posada. Placa 7: Suicídio de um plutocrata injusto (entre 1890–1910), The Metropolitan Museum of Art

Fonte: (METROPOLITAN. 1930)

Sobre os motivos que me levaram a ter Posada, com suas caveiras e a icônica

Catrina, como principal referência, devo fazer algumas considerações. Por

acontecimentos ocorridos no âmbito pessoal, senti a necessidade de compreender por que temos que passar pelos processos de perda e iniciei uma série de leituras em torno do tema da Morte. Hoje entendo plenamente, que minhas dúvidas eram decorrentes da minha inserção dentro de uma cultura ocidental, onde a morte não é tratada como inerente a vida, e sim, como seu oposto, como tabu.

Pelo aprofundamento teórico em relação a seu trabalho, e sobre a cultura mexicana, passei a ver morte de forma mais natural, apesar de doída, pois o ente que morre permanece vivo em nós, em nossas lembranças, transformando meu trabalho artístico, de uma questão estritamente pessoal, à uma questão cultural, relativa a um povo com a qual passei a identificar-me. A temática de Posada, seus desenhos e gravuras, assim como a técnica estão sempre em meu foco principal de interesse. A maneira como o artista desenvolveu seus trabalhos, permitiu que suas gravuras transcendessem a temporalidade fugaz da temática, revelando autonomia estética e é por isso que ele foi tão influente sobre a arte mexicana, os muralistas e muitos outros artistas, em especial na América Latina.

Apesar de simples, observa-se nas suas imagens um domínio técnico, variações de cinzas, pretos e brancos, que dão ritmo e vivacidade. “Na consciência

intrínseca da morte, que dilui as supostas verdades sobre as quais se organiza o país, o ritual aparentemente fúnebre traz uma reflexão apaixonada pela vida” (S/A, 2006- 2007, s/p), e nesse ponto reside minha principal motivação pela escolha de Posada.

É admirável, a maneira como Posada desenvolveu uma consciência crítica, social e política, porém o modo desmistificado e bem-humorado como trata a Morte foram os fatores que me levaram a eleger suas caveiras como referência. Busco, a partir de seu trabalho, retratar a morte de maneira natural, sem tabus, por entender sua inerência a vida e, as caveiras de Posada, embora cumprindo o mesmo papel de

memento mori, como as mais variadas representações ao longo da história da arte, o

fazem de maneira que refletem a vida cotidiana, desejos e acasos das pessoas onde a presença da morte é constante, mas, mais importante do que lembra-se dela, é lembrar da vida.

No momento em que me conscientizei disso, iniciou-se uma mudança de percepção que influenciou no direcionamento de pesquisa e passei a preocupar-me e apresentar, não somente retratos de Catrinas, mas a cultura mexicana e a relação dos mexicanos com a morte, o que me levou a conhecer e agregar as artistas mexicanas Graciela Iturbide (Figura 38) e Celia Calderón (Figura 39), que representam os costumes e realidade do povo mexicano, assim como o escritor mexicano Octavio Paz, que apresenta seu povo, a partir de seu ponto de vista, em O Labirinto da Solidão (2014). Comecei, então, a produzir as gravuras com as pessoas ambientadas, interagindo e agindo.

Figura 38 – Graciela Iturbide - Na’ Lupe Pan (Juchitán, México) (1986)

Figura 39 - Celia Calderón - La familia (1948), Coléccion Blaisten

Fonte: (BLAISTEN. 2018)