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Anexo I – Projeto 1 Imagens Utilizadas

4 CONSTRUÇÃO DA POÉTICA, PROCESSO CRIADOR E POIÉTICA

4.4 O GRAVAR DOS NOVOS SIGNIFICADOS

A gravura é a única linguagem, ouso dizer, única coisa em minha vida, na qual me permito arriscar, experimentar. Lido com os imprevistos não como erros, mas como resultados diferentes dos esperados. Eu até posso fazer uma projeção do que quero, ter uma ideia de onde vou chegar, mas nunca vou ter certeza do resultado sem imprimir, não vejo isso como problema. Como gravadora, vou realizando meu processo de produção da gravura sem ter certeza de seu resultado, deixando a matriz reger a maneira como ela é feita. O imprevisível fez com que eu aprendesse a lidar e aceitar aquilo que foge do meu controle, passando a ver o erro como uma modificação da concepção inicial.

Sempre me questionei, se o determinante para que minhas gravuras ficassem conforme o desejado, seria obtido através de técnica, da sintetização do meu pensamento através de um desenho ou da associação entre os dois. Foi então que percebi o quanto tinha aprendido em relação as técnicas, já consigo optar pela maneira que melhor me convinha para produzir, criando meus próprios hábitos, meios e atalhos. Tudo isso proporcionado por muita produção e muita experimentação contínua, sempre mantendo meu caderno ou diário, com materiais e técnicas empregados, pois o aprendizado é contínuo.

Porém, sei que a técnica é somente o meio como vou produzir o pensamento visual, ela é importante, mas não devo esquecer do tema/conteúdo. Ernst Fischer (2002, p. 150- 158) fala que tema e conteúdo (significado) são conexos, mas não são a mesma coisa. O tema só é elevado ao status de conteúdo pela atitude do artista, pois ele não se limita a ser o que é apresentado, mas como ele está sendo apresentado, em que contexto e com que grau de consciência social e individual. O conteúdo é como o artista expressa as tendências do seu tempo, e ele deve sempre lembrar-se que o objetivo e o propósito da arte não podem ser o de reproduzir, que o significado e conteúdo da arte não podem ser mera parecença. Buscamos artistas de referência, que tenham tratado do mesmo tema que queremos abordar, mas devemos lembrar que eles serão somente referencias. Dois artistas podem abordar o mesmo tema de maneiras bem diversas e seus trabalhos virão a ter pouco em comum, assim como Guadalupe Posada e eu fizemos ao abordar a morte.

Sempre tive medo de passar a ideia de um trabalho vazio, sem o conteúdo de que Fischer (2002) fala e isso me levou ao aprofundamento teórico. Mas não podia

esquecer que somente a teoria não sustentaria meu trabalho, assim como sabia que os retratos das lindas Catrinas, do início da pesquisa, ou somente o conhecimento de técnica, na graduação não levariam meu trabalho adiante. Luigi Pareyson (1989, p. 146) afirma que

Na verdadeira arte, a inspiração nunca é tão determinante que reduza a atividade do artista a mera obediência, e o trabalho nunca é tão custoso que suprima toda a espontaneidade; e o que caracteriza o processo artístico é a adequação entre a espera e descoberta, entre tentativa e êxito, quer esta adequação seja lenta e difícil, quer fácil e imediata

Chegar ao conteúdo que seria gravado, a partir dessa reflexão, passou por uma adequação lenta e difícil. Após a qualificação, até a semana de Finados de 2018, passei por uma estagnação criativa, não produzi texto, nem gravura. Como abordei no subcapítulo anterior, alguns acontecimentos contribuíram para que retomasse o andamento da pesquisa: os relatos dos participantes da instalação, os encontros e relatos no Cemitério Municipal, os filmes que vi e, por último, mas não menos importante, o depoimento que recebi, em áudio, de minha amiga mexicana Maria Cristina Maldonado, com suas impressões a respeito de meu trabalho (Anexo H):

O meu nome é Maria Cristina Maldonado Torres, sou mexicana. Morei praticamente vinte oito anos em Guadalajara, toda minha família mora lá. Eu posso dizer que todo mexicano, dia 2 de novembro, aliás a partir do dia 31, faz algum tipo de oferenda para algum ser amado que não está mais junto com a família. Todos, independentemente da idade, da religião, apesar da religião, porque é uma prática bem antiga advinda de práticas de antes mesmo da conquista dos espanhóis, então há uma mistura entre as religiões, enfim... Quando eu conheci a Aracy, que ela se interessava por esta festividade, esta comemoração, pra mim foi muito interessante, foi surpreendente porque a maioria dos brasileiros que eu já conhecia (faz sete anos que eu moro aqui, eu comecei a conversar com a Aracy acredito eu que em 2012, 2013, mais ou menos por ali) mas em todo esse tempo que eu moro aqui no Brasil, eu percebi uma coisa, a maioria dos brasileiros , eles olham a nossa comemoração de Dia de Finados, El Dia De Muertos, com um pouco de medo, alguns com morbo, alguns achando que tem a ver com outros tipos de oferendas realizadas em rituais pertencentes a religiões como umbanda, candomblé, e eles relacionam isso com algum tipo de bruxaria, alguma oferenda feita para agradar alguma deidade. Isso faz com que a gente já seja visto de um modo discriminado, discriminatório, acredito. Ou, por outro lado, se observa a festa apenas como um detalhe folclórico, como se o mexicano ficasse feliz quando alguém morre e a festa fosse pela morte, e não uma homenagem à pessoa que faleceu.

Então, quando eu conheci a Aracy, pra mim foi algo fantástico. Ver uma pessoa que estava fazendo uma leitura, uma interpretação sobre a cultura do meu país, uma interpretação respeitosa focada em detalhes, em tudo aquilo que a gente observa, só que desde o ponto de vista de uma mulher brasileira. Então, olhar as gravuras da Aracy me faz me olhar nos olhos dela. Quando olho uma gravura dela é como se eu estivesse me enxergando como ela me vê. Eu sei que é difícil explicar, mas cada gravura dela representa uma parte do entendimento dela sobre mim, sobre a minha cultura, sobre a minha família, sobre os meus ancestrais. Então quando eu olho uma gravura dela,

é como se eu estivesse vendo um quadro da minha história. É como se fosse um espelho que reflete, mas não a minha visão, a visão do outro, e há um diálogo entre o que ela entende sobre a cultura mexicana. Há uma representatividade, ela entende perfeitamente como nós observamos essa morte, essa passagem, como nós convivemos com isso, traz pra terras brasileiras e mostra, demonstra pro outro olhar brasileiro como ela, como brasileira olha nós como mexicanos. Então, acredito eu que o trabalho dela é uma importante contribuição, não somente na parte artística, mas na parte sociológica, na parte histórica.

É o olhar brasileiro de uma comemoração mexicana. E o mais importante, é que ela retrata tudo isso como se ela estivesse lá ou tivesse estado lá, mas ela nunca esteve, isso é o que mais me impressionou. Porque não é só ir lá fazer uma pintura, uma gravura de uma caveira com roupas típicas mexicanas. As gravuras dela têm emoção, não é apenas uma caveirinha colorida, de marketing, elas contam uma história, cada gravura dela conta uma história. E eu acho que a sacada dela é essa, as gravuras contam a história. Ela sonhou que esteve no México, e ela em vez de escrever esse sonho, ela fez uma gravura, ela fez um desenho, e está tudo detalhado ali.

Devo confessar que fiquei emocionada e cai em prantos, pois ouvir, de uma mexicana, que consegui compreender sua cultura e que ela vê meu trabalho como uma contribuição, reafirmou que a minha busca pela representação das ressignificações e reinterpretações estava no caminho correto. A partir desse ponto, os receios pelos quais estava passando, em montar os projetos e gravar, se desfizeram e voltei aos processos de gravação da maneira como sempre fiz. Embora, para quem veja de fora, o trabalho do gravador pareça automático, nada é feito sem pensar, cada detalhe tem seu propósito. Lancei mão dos registros, que passaram a fazer parte da poética, no momento em que serviram de referência para as gravuras, que foram desenvolvidas a partir da combinação de fotografias e gravuras demonstrando, assim, o potencial de transformação da imagem. Com o Projeto 1 e gravura S/ Título Nº 01, dei início a uma série de 10 gravuras realizadas a partir da composição dos registros no Cemitério Ecumênico, minhas gravuras pretéritas e fotografias de família.

Fazer as gravuras desse processo teve um significado diferente, pois dessa vez, os projetos foram feitos a partir do meu olhar, de eventos que participei, de minhas gravuras. Pude visualizar cada elemento, com suas nuances e texturas, antes de reproduzi-lo na placa de metal para a gravação. Cada pessoa, cada objeto, cada lembrança tem seu papel e a cada traço gravado a cada tom obtido, a satisfação de apresentar, reinterpretar, ressignificar e ser compreendida.