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Anexo I – Projeto 1 Imagens Utilizadas

4 CONSTRUÇÃO DA POÉTICA, PROCESSO CRIADOR E POIÉTICA

4.3 REINTERPRETAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DE ELEMENTOS

O objetivo inicial principal da pesquisa, era encontrar como reinterpretar e/ou ressignificar elementos, fossem eles materiais como o pan de muertos, as calaveras de açúcar, velas e flores ou imateriais como lembranças, memória e ancestralidade, avaliando sempre nas duas direções: elementos mexicanos que pudessem ser inseridos na minha realidade e elementos da minha realidade que pudessem assimilar características da cultura mexicana. A certa altura, meu trabalho ficou estagnado, porque não conseguia visualizar um meio de dar andamento no processo criativo. Então, alguns acontecimentos contribuíram para que eu compreendesse que, ao aprofundar-me na pesquisa, já estava fazendo essas reinterpretações e significações, com naturalidade, sem precisar forçar a adaptação dos elementos ao meu estudo. A partir dessa percepção, consegui elaborar a visualidade desse trabalho, expressa nas combinações de imagens e, consequentemente, nas gravuras.

O primeiro acontecimento, relaciona-se com a instalação que fiz no Cemitério Ecumênico Municipal, Vivir para Contarla (2017). Pedi para as pessoas que participaram e escreverem relatos sobre suas impressões. Consegui reunir, ao todo, sete relatos: minha mãe Shirlei, minha tia Maria Elena, meu irmão Garibaldi, minha cunhada Perla, meu marido Rodrigo e meus amigos Marcos e Vanessa (Anexos A, B, C, D, E, F e G). Cada um, a sua maneira, falou da mudança de percepção, do convite a participar ao acontecimento e de como aquela celebração que fizemos, fez diferença na estada num local relacionado a tristeza. Também relataram sobre o comportamento dos transeuntes e do quanto as pessoas podem ser preconceituosas com a cultura dos outros. Nesse ponto, percebi que, mesmo num pequeno grupo, já atingi um dos objetivos buscados nesse trabalho, que era a mudança de percepção sobre a cultura do outro. Lendo os relatos e, posteriormente conversando com essas pessoas, vi que elas passaram a me acompanhar nessa busca por respeito pelo outro, independente de quem for ou onde estiver, seja ele o mexicano que me apresentou sua cultura, seja o brasileiro que está ao meu lado.

Outro fator interessante, foi perceber que meu trabalho não atraiu os participantes somente pela visualidade, mas proporcionou momentos de reflexão a respeito de suas próprias vidas. Meu irmão Garibaldi (2019) escreveu: “Confesso que foi a vez, das poucas que estive no cemitério, que passei tanto tempo ao lado do

túmulo de minha avó paterna, a qual eu era muito ligado em vida, ela deve ter ficado alegre”.

Mas foi minha mãe Shirlei (2017), que falou diretamente dos elementos presentes na instalação:

Para nós, o dia seria de colocarmos flores, fazer uma oração e irmos para casa, mas não foi o que fizemos e sim, brindamos os nossos mortos com alguma coisa que os identificassem. Vô Colvero gostava de fumar palheiro, Vó Aracy fazia uma pizza saborosa, Tia Eni fazia doces e salgados e o bebê Gabriela foi agraciada com uma mamadeira de leite.

Embora pareça uma simples explicação dos acontecimentos, o fato de minha mãe recordar os gostos das pessoas e atividades de cada um, adjetivar como “saborosa” a pizza que minha avó fazia, dessa vez feita por ela e que , principalmente, “agraciar o bebê Gabriela com uma mamadeira de leite”, foi ideia dela, demonstra o quanto, mesmo sem perceber, ela está mergulhada em minha pesquisa junto comigo. A partir desses relatos comecei a pensar um outro modo de interação dos elementos, pois percebi que a presença dos elementos da cultura mexicana, não necessariamente precisaria ocorrer com inserção dos personagens de minhas gravuras, mas já estavam presentes, de modo reinterpretado e ressignificado, através da instalação e dos conceitos imateriais de memória e ancestralidade.

O insight que precisava, surgiu quando fui ao cinema ver o filme Coco (Viva -

A Vida é uma Festa, 2017), uma animação da Disney/Pixar, que narra a história de

Miguel, músico aspirante, confrontado com a proibição ancestral da sua família à música, que entra acidentalmente na Terra dos Mortos. Para regressar, precisa da benção da família, mas para fazê-lo, sem a condição de abandonar a música, precisa encontrar seu trisavô, um lendário cantor. Miguel fica intangível, entre os dois mundos, o dos Vivos e o dos Mortos e, algo que pode observar, enquanto está no panteão, antes de iniciar sua jornada, é o reencontro e confraternização das famílias com seus mortos. Foi então que decidi fazer o mesmo em minhas gravuras, trazer nossos mortos para reencontrar nossa família.

O primeiro reencontro foi com minha Tia Eni, irmã de minha mãe (Figura 59), inserida em uma fotografia da intervenção feita no dia 31 de outubro de 2017. Ela e sua neta Gabriela, estão enterradas nesse jazigo, juntamente com meus avós paternos. Escolhi essa fotografia por dois motivos: minha tia, que está com um bebê no colo, está olhando diretamente para o fotógrafo, que era minha mãe. Esse olhar, era típico dela, sempre encarando, por isso, fiz questão de mantê-la olhando

fixamente também, para o fotografo da situação de 2017, que era eu. A proximidade e cumplicidade que minha tia e minha mãe tinham ficou explicita na visualidade da imagem, pois, embora com diferença de iluminação e cor, olhos desatentos a perceberão integrada na fotografia, tanto quanto na gravura. Inicialmente, pretendia fazer com que esse bebê representasse a Gabriela, pois não consegui uma fotografia dela.

Figura 59 – Shirlei Colvero – Fotografia da Tia Eni e do Mano (1980)

Fonte: (COLVERO. 1980)

Porém, depois, mudei de ideia, pois esse bebê é meu irmão, que na fotografia do dia 31 de outubro de 2017, está na foto com minha mãe e com minha amiga Vanessa (Figura 60), e o bebê da outra fotografia, na composição das imagens, permanece olhando para o lado, em direção aos adultos, observando-os.

Figura 60 – Aracy Colvero - Projeto 3 - Combinação da Figura 60 e fotografia da instalação Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria, RS

Fonte: (COLVERO. 2018)

Meu avô paterno, que está enterrado nesse túmulo, meu pai e meu irmão, tem o mesmo nome, com uma pequena diferença de grafia (Garibalde/Garibaldi) e, unindo isso, ao fato de que o pequeno Garibaldi estava observando o que o Garibaldi adulto tinha se tornado, decidi manter o bebê sendo quem ele era originalmente (Figura 61). Outro fato que não devo ignorar, é que o Garibaldi Filho (o nome completo de meu irmão é José Garibaldi Borin Colvero Filho) adulto é, fisicamente muito parecido com o Garibaldi pai, que foi cremado, sendo assim ele também está presente na cena pelas lembranças e, de certo modo, fisicamente.

Figura 61 – Aracy Colvero - S/ Título Nº 03 (2018), gravura em metal.

Fonte: (COLVERO. 2018)

Os depoimentos e essa primeira montagem me libertaram de algumas amarras criativas, pois me fizeram perceber que as reinterpretações e ressignificações não necessitavam ficar restritas a velas, flores, comidas, bebidas e que as lembranças, as memórias, assim como o comportamento das pessoas eram elementos muito potentes que deveriam ser considerados. Então pensei, porque não estariam ali, também, mis Mamás? Está certo que naquele túmulo está enterrada apenas minha avó Aracy (Figura 62), mas a mãe dela, minha bisavó Barbara (Figura 63) com certeza viria vê-la, assim como minha avó Ceci (Figura 64) viriam ver sua filha Eni e sua trineta Gabriela e todas elas viriam ver seus descendentes.

Figuras 62, 63 e 64 – S/a - Vó Aracy Borin Colvero (1979), S/a - Bisa Barbara Achutti Borin (1978) S/a -Vó Ceci Brito Vieira ( s/d)

Fonte: (COLVERO. 2018)

Tive a felicidade de conhecer as três Mamás e achei importante que as três pudessem encontrar um novo membro da família, minha cunhada Perla (Figuras 65 e 66). Bisa Barbara com seus 1,30 m e seu coquinho nos cabelos alvos, que andava em pé dentro de um fusca, agarrada no puta merda, ranzinza que volta e meia xingava alguém em árabe para não ser entendida, mas que preservava a alegria de ir para o portão e se agarrar nas grades para ver as crianças saírem da escola, em frente a sua casa em Uruguaiana, já que foi para lá depois que minha avó Aracy ficou cega, não pode mais cuidar dela e foi morar conosco. Vó Aracy também xingava, mas ao árabe, adicionava o italiano, vindo de seu pai. Depois pedia desculpas e mandava meu irmão comprar balas e bolachas escondido para eles passarem a tarde comendo, já que era diabética tinha a alimentação controlada. A morte dela iniciou um período muito difícil em nossa vida, pela mudança de comportamento de meu pai. Sempre amorosa, mas séria e de poucas palavras, vó Ceci não falava palavrão pois achava feio, ao contrário de suas filhas, que adoram lançar uns impropérios. Ela está enterrada em outro cemitério, no Santa Rita, na Faixa Velha, mas nada impediria ela de nos ver. Ali, de pé, fisicamente falando poderíamos estar vendo qualquer uma de suas três filhas, tamanha a semelhança.

Figura 65 – Aracy Colvero - Projeto 4 - Combinação das Figuras 62, 63 e 64 com fotografia de Vanessa Obem da instalação Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico de Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2019)

Figura 66 – Aracy Colvero - S/ Título Nº 04 (2019), gravura em metal.

No dia 02 de novembro de 2017, quando retornei ao cemitério com minha mãe, minha tia Lena (irmã de meu pai) e minha prima Cláudia (mãe da Gabriela e filha da Tia Eni), visitamos outros jazigos, além daquele onde foi feita a instalação do dia 31 de outubro. Um deles foi o dos meus trisavós Maria Reschden Achutti e Maron Mansur Achutti, pais da minha bisavó Barbara Achutti Borin, mãe da minha avó paterna Aracy Borin Colvero. Enterrados no mesmo jazigo estão os seus filhos Antônio e América (Figura 67), o genro Hygino Trevisan, esposo de América e a neta Elusa Chaves, filha adotiva de América e Hygino (Figura 68). Tia América, Tio Hygino e Elusa moravam no apartamento 22, do Edificio América, construído sobre o terreno onde ficava a casa de Maria e Maron. Minha avó Aracy morou no apartamento 21, em frente ao deles, porta a porta, depois meus pais e atualmente, eu.

Figuras 67 e 68 – S/a Tia Bisa América Reschden Achutti (1947), Shirlei Colvero Prima Elusa Helena Chaves e sobrinha Natália Rodrigues Colvero (s/d)

Fonte: (COLVERO. 2018)

Minha família sempre teve uma relação estreita com eles. Tia América, que era professora, sempre prezou por nossa educação, e Tio Hygino, advogado, preparam o pai, que eles chamavam de Zeca Tigre, para o vestibular. Tia América e minha mãe tinham uma amizade muito grande, um relacionamento de mãe e filha e, quando

minha sobrinha Natália nasceu (Figura 68), a Tia, com suas balinhas de menta, a Elusa, e sua filha Priscila, nos ajudavam a cuidar dela, e sempre demonstraram amor e carinho genuínos, com todos nós. Os apartamentos 21 e 22, enquanto habitados por essas pessoas, eram uma só casa, um só lar. Impossível que, a Méquinha (nosso apelido carinhoso) e a Eguga (como a Natália falava Elusa, quando pequena), não viessem nos encontrar. Da Méquinha, ainda tenho, claramente em minha memória, a voz, repetindo o seu mantra, escrito também em sua lápide: A fé remove montanhas. (Figuras 69 e 70).

Figura 69 – Aracy Colvero - Projeto 5 - Combinação das Figuras 67, 68 e fotografia da continuidade da instalação Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico de Santa Maria / RS

Figura 70 - Aracy Colvero - S/ Título Nº 05 (2019), gravura em metal

Fonte: (COLVERO. 2019)

Em 2018, retornei ao Cemitério Ecumênico em três datas, nos dias 28 e 30 de outubro e no dia 2 de novembro. Nesse ano, não montei a instalação, fui para fazer registros, conversar com as pessoas, coletar material e dados. Fui acompanhada do Rodrigo, do Marcos e da Vanessa, que me auxilia sempre com os registros. No dia 28, de maneira geral, fiz registros para finalizar algumas composições. Porém, nos dias 30 de outubro e 02 de novembro, alguns acontecimentos provocaram modificações e acréscimos significativos no perceber e pensar o trabalho e, principalmente, no que diz respeito ao outro. Entramos pelo portão lateral, onde fica o jazigo de meus avós paternos, e subimos a rua principal. Logo avistamos uma moça, parada ao lado de um banco onde estavam caixas térmicas, guardanapos e copos (Figura 71).

Decidi parar para conversar e depois de me identificar e obter permissão, fotografei Graziela Paz, que me contou que estava ali, vendendo bebidas e lanhes, numa tentativa de gerar alguma renda, pois estava desempregada. No dia 02 de novembro, iria visitar os túmulos de parentes, mas durante aquela semana, iria aproveitar todo o tempo que pudesse para trabalhar, pois estava precisando. Perguntei como estava o movimento, ao que ela respondeu: “Fraco, acho que as pessoas não estão acostumadas a comer e beber em cemitério, nem água querem.” Chegamos à conclusão de que muitos desses receios vêm de superstições, muito bem relatadas por Camara Cascudo (1985), como o que é do morto fica para o morto, e também de preconceitos, de ligar a presença de comida em cemitérios, aos trabalhos de umbanda, mas Graziela disse que não iria desistir e iria continuar trabalhando.

Figura 71 – Aracy Colvero - Graziela Paz (2018)

Fonte: (COLVERO. 2018)

Uma situação diferente dos personagens das gravuras Memento Mori Nº 01 (Figura 72) e Nº 11 (Figura 73) da Série De La Muerte Y Otras Catrinas, que embora estejam ali em barraquinhas e, aparentemente, atendendo ao público para falar a respeito de sua cultura, estão no cemitério para relembrar sua cultura e honrar seus mortos.

Figuras 72 e 73 – Aracy Colvero - De La Muerte Y Otras Catrinas – Memento Mori

Nº 01(2016), gravura em metal e De La Muerte Y Otras Catrinas – Memento Mori Nº 11 (2016), gravura em metal

Fonte: (CAMARGO. 2016)

Embora em situações diferentes, as três pessoas, quando colocadas lado a lado, formam um grupo de conversa coeso e, que acolheram-se mutuamente (Figura 74). Meus personagens, com seus pertences, vieram fazer companhia a Graziela, proporcionando participação em alguma celebração, mesmo que não de seus familiares. Em contrapartida, Graziela aceitou os dois personagens como companheiros de sua jornada diária (Figura 75). Percebi que, os dois mexicanos, estrangeiros e a moça negra, trabalhadora, seriam o que chamei de visíveis invisíveis.

Estrangeiros, marginais, outsiders, que seriam percebidos apenas pelo que, aos olhos dos outros seriam esquisitices ou características discriminatórias, mas deixados de lado e ignorados, sem nome e sem história por não se encaixarem nos padrões. Ao colocar os mexicanos integrados e, principalmente, ao parar para falar com a moça e saber seu nome, Graziela, e conhecer sua história vi também que o

outro que carece de percepção de minha parte, é o outro que está ao meu lado, que

Figura 74 – Aracy Colvero - Projeto 6 - Combinação das Figuras 72, 73 e 74 (2019)

Fonte: (COLVERO. 2019)

Figura 75 – Aracy Colvero - S/ Título Nº 06 (2019), gravura em metal

Depois de me despedir de Graziela, subimos um pouco mais a rua, e, de longe avistamos um senhor que sorria para nós. Ao chegarmos perto ele disse: “Eu me lembro de vocês do ano passado”. Esse senhor é Seu Gelson Altemir da Silva, Agente Administrativo Auxiliar da prefeitura, responsável pela organização dos 4 cemitérios de responsabilidade do município de Santa Maria (Figura 76). Ele não só nos explicou sobre o funcionamento do cemitério durante o ano todo, como levou para uma visita guiada, nos relatando histórias sobre os mortos, os familiares, e o dia-a-dia de trabalho. Perguntei para ele a respeito das pessoas que trabalhavam dentro do cemitério vendendo coisas e fazendo limpeza, como funcionava. Ele contou que não há uma regulamentação por parte da prefeitura e que, na verdade, essa ignora a presença dessas pessoas, que elas não precisam pedir permissão, pois afinal, o local é público e a maioria delas é gente pobre, tentando se manter na vida. Assim, ele fez questão de nos apresentar para algumas dessas pessoas, como Jurema.

Figura 76 – Vanessa Obem – Aracy Colvero em conversa com Seu Gelson Altemir da Silva (2018)

Fonte: (OBEM. 2018)

Jurema trabalha há 5 anos limpando túmulos. É um negócio de família, como a maioria dos limpadores. A cunhada trabalhava no ramo, e quando ficou desempregada, Jurema pediu para entrar no negócio. Me contou que o jazigo que ela estava limpando, era de uma família rica. Porém, os donos eram um casal de idosos, que não tinha condições de ir fazer a limpeza, e seus filhos não tinham interesse em

fazê-la, por isso, todos os anos, eles contratavam alguém. Esse ano, ela estava ali preparando tudo para o Dia de Finados, um jazigo de pessoas que ela não conhecia, mas, mesmo que estivesse sendo paga, estava tratando com mais consideração que os filhos dos parentes vivos (Figura 77). Por esse motivo, os personagens que trouxe ao encontro de Jurema, são os únicos de uma gravura de uma série diferente, a Al

Diablo La Muerte Mientras La Vida Nos Dure – Escena 09 (2015), mexicanos, não

maquiados de calaveras, aparentemente de meia idade, mas que não deixaram de honrar seus entes queridos, levando flores, comida, acendendo velas, limpando, recordando (Figura 78). Diferente dos parentes do casal, referidos por Jurema, que parecem não se importar com os falecidos e tampouco importar-se-iam com quem limparia o jazigo, resolvem contratando um serviço ou deixando para quem, ainda se importa, o casal de velhinhos, o fazê-lo.

Figuras 77 e 78 – Aracy Colvero – Jurema (2018), Al Diablo La Muerte Mientras

La Vida Nos Dure – Escena 09 (2015), gravura em metal

Fonte : (COLVERO. 2018)

Os personagens, vieram acompanhar a solitária Jurema, esquecida em seu trabalho, já que é mais uma outra visível invisível, que ficou feliz ao ser abordada e contar sua história, que ao dizer seu nome e ser ouvida me fez perceber a importância de dar voz ao outro, que é ignorado e negligenciado, visto apenas como um serviço contratado, esquecido como indivíduo, como cidadão (Figuras 79 e 80).

Figura 79 - Aracy Colvero - Projeto 7 - Combinação das Figuras 77 e 78

Figura 80 - Aracy Colvero - S/ Título Nº 07 (2019), gravura em metal

Fonte: (COLVERO. 2019)

Depois de nos despedirmos do Seu Gelson, encontramos uma velha conhecida de 2017, Dona Sandra, a senhora que faz as coroas se flores de metal e que perguntou, se esse ano eu não iria comprar uma. Prometi que dia 02 de novembro compraria uma, já que estava sem dinheiro naquele momento, ao que ela me disse para não chegar tarde, pois só teria novas na semana de Finados de 2019, que as recebe prontas, fazendo somente a pintura. Fiquei feliz de lembrar seu nome, e senti ainda mais a importância que um pouco de atenção pode fazer na vida de uma pessoa que pode estar recebendo nenhuma. Vanessa e eu fotografamos Dona Sandra trabalhando e, nesse ano de 2018, ela nos mostrou seu estoque, preparado para

Finados. Porém disse que estava reduzido, porque sua mãe, com quem aprendeu o oficio (outro negócio de família), estava hospitalizada após sofrer um infarto, então entendemos porque, apesar de mais falante, estava também mais séria (Figura 81).

Figuras 81–Aracy Colvero - Dona Sandra (2018)

Fonte: (COLVERO. 2018)

Acreditei ser pertinente, então, colocar em sua companhia, ajudantes que oferecessem seu produto, assim as moças da gravura De La Muerte Y Otras Catrinas

– Memento Mori Nº 04 (Figura 82), vieram ao Cemitério Ecumênico, auxiliar Dona

Sandra (Figuras 83 e 84). Voltamos a encontra-la dia 02 de novembro, observando o movimento distraída, pois todas as coroas já haviam sido vendidas.

Figura 82 Aracy Colvero -De La Muerte Y Otras Catrinas – Memento Mori Nº 04 (2016), gravura em metal

Fonte: (COLVERO. 2018)

Figura 83 – Aracy Colvero - Projeto 8 - Combinação das Figuras 81 e 82

Figura 84 – Aracy Colvero - S/ Título Nº 08 (2019), gravura em metal

Fonte: (COLVERO. 2019)

Nesse dia, um acontecimento importante me mostrou que a reinterpretação e ressignificação de elementos acontecia naturalmente, sem, necessariamente, ser feita por mim. Avistei três mulheres, uma delas, a mais velha, visivelmente aborrecida, falando muito. Fotografei de longe mas decidi me aproximar, mesmo correndo o risco de ser enxotada, pois avistei, sobre o túmulo, velas e pirulitos. Me identifiquei, expliquei a respeito do meu trabalho e não precisei perguntar o motivo da contrariedade. A senhora, Dona Ione, se apresentou, apresentou a filha Daiane e a sobrinha Isaura e me explicou que os restos mortais do marido, haviam sido removidos das carneiras, sem ela ser avisada. Que sabia que era porque ela não tinha pago, mas não tinha dinheiro, que pelo menos deveriam avisar e que teriam que dar conta dos ossos.

Depois que ela se acalmou, disse que as abordei pela curiosidade em relação aos pirulitos e velas, e elas me explicaram que naquele túmulo estava enterrada uma criança, que elas levavam os doces para ela: pirulitos, bala, chocolate, refrigerante (Figura 85 e 86). Justifiquei meu interesse pelo meu trabalho e contei sobre a instalação do ano anterior e as reações das pessoas. A resposta de Dona Ione

(informação verbal)1, me mostrou que todo esse estudo atingiu a consistência e

profundidade que eu buscava:

A gente entende, a gente é de ‘religião’ [Umbanda] e é sempre assim, sempre olham atravessado. Mas a gente não dá bola, a gente faz porque a gente acredita e quer fazer um agrado pra quem a gente gosta. Eu acho que ela fica esperando os doces e deve ficar bem feliz.

Meu coração saltou de alegria e satisfação ao perceber que, do seu modo, aqui no Brasil, existem pessoas que mantém tradições semelhantes às dos mexicanos. Elas ressignificaram e reinterpretaram os elementos sem ter a intenção de fazê-lo. Talvez possa atribuir essas proximidades aos sincretismos gerados pelas