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Anexo I – Projeto 1 Imagens Utilizadas

3 O DÍA DE LOS MUERTOS E O DIA DE FINADOS

3.2 O DIA DE FINADOS NO BRASIL

O Dia de Finados é comemorado no dia 2 de novembro, segundo a tradição cristã. Existem relatos desde o século I, no início do cristianismo, que dizem que podiam ser encontrados nas construções mortuárias, orações para os que nelas estavam enterrados. No século XI, o Papa Leão IX, estabeleceu a criação de um dia em que os fiéis deveriam orar pelos finados. Somente no século XIII foi estabelecido o dia 02 de novembro, por ser um dia após o Dia de Todos os Santos, no qual celebram-se todos os santos que não foram lembrados durante o ano (RINALDI, 2018, p.1).

O Brasil é um estado laico e a liberdade de religião é prevista na constituição, podendo-se considerar que no país, a religião caracteriza-se pelo sincretismo. Por ser um país de colonização portuguesa, o Brasil tem uma tradição cristã que reflete nos índices do IBGE de 2017(IBGE, 2017.), que indicam que cerca de 86% da população é cristã e, embora no censo, as pessoas se declarem de uma religião, muitas acreditam e participam das celebrações de mais de uma delas. O que não surpreende, pois, o Brasil como todos países latino-americanos, é multiétnico e caracterizado por sincretismos religioso e cultural.

A vasta cultura popular, com suas crendices, literatura oral e superstições, foi bastante registrada por Luis da Camara Cascudo que, em muitas de suas obras, relata histórias e costumes relativos à morte. No livro Literatura Oral no Brasil (1984, p. 333-

336), o autor narra o Ciclo da Morte, explicando que a visita dessa, cedo ou tarde ocorrerá e que é impossível lográ-la, ela sempre é vendedora. Ele explica também que “é um ciclo universal pelas constantes psicológicas inalteráveis em qualquer literatura oral do mundo”. Em Superstição no Brasil (1985, p. 51), dentro do primeiro livro compilado Anúbis e outras Histórias (1951), Camara Cascudo faz o seguinte relato em relação ao Dia de Finados:

A visita de cova é uma homenagem da família aos seus maiores, Dis Manibus. A Comemoração dos Mortos, festa litúrgica dos Fiéis Defuntos, 2 de Novembro, foi incluída nas orações regulares da Igreja pelo diácono Amalairem de Metz, em 827. Em 998 um Abade de Cluny, Odilon, mandou observar a obrigatoriedade do “Ofício dos Mortos” em todos os mosteiros da sua Ordem. A divulgação é, pois, do século X. A tradição romana conservava a homenagem aos mortos na Ferália, 13 a 21 de fevereiro, festa pública, fazendo interromper todas as outras e também os cultos, inclusive, a cerimônia nupcial. Na Ferália, levava-se alimento aos Manes, reunida a família e mceias. Feralis coena de Juvenal, coenam funeris de Pérsio. Havia também a Lemurália, 9-11-13 de maio, aos Lares, primitivamente dedicada à sombra inquieta de Remo que fora abatido por seu irmão Rômulo. Diziam- nas Parentálias e também “Ludi Genicialici”, com jogos, danças oferecendo- se flores, frutos, e sal aos defuntos.

Na página oficial do Vaticano, é possível ler os documentos em comemoração aos defuntos, proferidos por diferentes Papas no Dia de Finados, e no Angelus, Dia de Finados de 2014, o Papa Francisco disse:

A tradição da Igreja sempre exortou a rezar pelos finados, de maneira especial oferecendo por eles a Celebração eucarística: esta é a melhor ajuda espiritual que nós podemos oferecer pelas suas almas, particularmente por aquelas mais abandonadas. O fundamento da oração de sufrágio encontra- se na comunhão do Corpo Místico. Como reitera o Concílio Vaticano II, «reconhecendo claramente esta comunicação de todo o Corpo Místico de Cristo, a Igreja dos que ainda peregrinam cultivou com muita piedade desde os primeiros tempos do Cristianismo a memória dos defuntos» (Lumen gentium, 50).

Na íntegra, no Concílio Vaticano II, a constituição dogmática, a Lumen Gentium, Capítulo VII, 5º, fala da União da Igreja celeste com a Igreja peregrina e aponta como expressões dessa união: as orações pelos defuntos e culto dos santos:

50. Reconhecendo claramente esta comunicação de todo o Corpo místico de Cristo, a Igreja dos que ainda peregrinam, cultivou com muita piedade desde os primeiros tempos do Cristianismo a memória dos defuntos (151) e, «porque é coisa santa e salutar rezar pelos mortos, para que sejam absolvidos de seus pecados» (2 Mac. 12,46), por eles ofereceu também sufrágios.

Esses textos explicam os motivos pelos quais o Cristianismo, mais especificamente a Igreja Católica, instituiu o Dia de Finados. Porém, a maioria das

pessoas é levada aos Cemitérios nessa data instituída, por costume, já que a maioria não sabe bem porque, nem de onde surgiu e, dentre as famílias, principalmente numa realidade tão plural como a nossa, cada família tem sua maneira de preservar sua tradição. Não é diferente na minha família, que é católica, espírita, umbandista, o que é muito comum no Brasil.

Por isso, minha instalação/intervenção, no Cemitério Ecumênico Municipal foi tão significativa pois, ao levar minha família e amigos, e cumprirmos nossos rituais, ao montar o trabalho, seguindo a tradição mexicana, porém reinterpretando os elementos e ressignificando à minha realidade e minha história, novos elementos foram agregados à pesquisa. Este trabalho, intitulado Vivir para contarla, foi realizado no Cemitério Municipal de Santa Maria, no dia 31 de outubro de 2017. Nele, foi proposto ao público, tomar parte de todo o processo, propiciando que as pessoas que se dispuseram a participar, atuassem efetivamente na montagem e interação, limpando o jazigo, plantando as flores, ingerindo os alimentos e conversando, gerando registros do momento. A proposição desta interação, era o público vivenciar o hibridismo proposto pela minha pesquisa pois, para a realização do trabalho, foram agregados os costumes mexicanos de inserir elementos referentes aos falecidos e o costume de muitas famílias brasileiras, que passam o Dia de Finados no cemitério e para passar o dia levam alimentos para fazer as refeições.

A minha família não somente participou do evento, como fez sugestões do que colocar como referência de cada familiar. Além de meus avós paternos, estão enterradas nesse jazigo, minha tia Eni, irmã da minha mãe e a minha prima Gabriela, que morreu com 1 ano. Meu irmão e minha mãe levaram, como referência a essa prima, uma mamadeira preparada com leite e achocolatado. Essa contribuição espontânea me surpreendeu de maneira positiva, pois ambos demoraram muito tempo a aceitar minha mudança de carreira profissional. Como não conheci meu avô, as lembranças que tenho são somente advindas de fotografias e histórias que a família conta, então levei o fumo de rolo e a palha para cigarro, que sempre foram referidos como um hábito característico. Com minha avó e minha tia, tive a oportunidade de conviver por muitos anos. Da minha avó, lembrei do suco de xarope de groselha e da pizza de massa de pão, que minha mãe fez para a ocasião; e da minha tia, que fazia salgados e doces para festas, lembrei do pãozinho húngaro, que eu fiz, embora um pouco sem prática culinária. Meus amigos interagiram dando ideias que melhoraram a montagem (Figura 40), participando e registrando os eventos. Foi fundamental, para

mim, que todas essas pessoas, não somente se dispuseram a ir me acompanhar, como se empenharam em realizar o trabalho juntamente comigo e aceitaram escrever relatos da experiência para contribuir com a pesquisa.

Figura 40 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

A tarefa mais difícil, foi tentar convencer os transeuntes a participar. Até mesmo pessoas conhecidas da família, quando foram abordadas e receberam explicação do que se tratava, recusaram-se a participar. Apenas um menino, amigo do meu irmão, e que estava no local esperando para ser contratado para limpeza de jazigos, interessou-se e perguntou do que se tratava e então, aceitou comer e ficar conversando (Figuras 41 e 42).

Este trabalho surpreendeu, a partir das reações de surpresa, choque e estranhamento das pessoas que estavam visitando os jazigos dos familiares no dia em que realizei o trabalho, que foram muito além do que se esperava. Eu sabia que uma movimentação diferente a que estavam acostumadas, chamaria a atenção, mas não sabia como essas pessoas reagiriam. Algumas observavam do jazigo que tinham ido visitar, dando mais atenção à nossa movimentação do que ao falecido ao qual tinha ido levar flores (Figura 42), sendo que esse único registro foi feito como se estivesse fotografando meu trabalho. Outras pessoas, ao passar pelo local onde

estávamos, comentaram, de maneira que pudemos ouvir, que “era um absurdo estarmos fazendo ‘trabalho’, em plena luz do dia, uma pouca vergonha” sendo que, pudemos observar, que pararam na saída para comentar com o “guardinha”, que apenas riu (o jazigo de meus familiares fica a poucos metros da entrada).

Figura 41 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Algumas observavam do jazigo que tinham ido visitar, dando mais atenção à nossa movimentação do que ao falecido ao qual tinha ido levar flores (Figura 42), sendo que esse único registro foi feito como se estivesse fotografando meu trabalho. Outras pessoas, ao passar pelo local onde estávamos, comentaram, de maneira que pudemos ouvir, que “era um absurdo estarmos fazendo ‘trabalho’, em plena luz do dia, uma pouca vergonha” sendo que, pudemos observar, que pararam na saída para comentar com o “guardinha”, que apenas riu (o jazigo de meus familiares fica a poucos metros da entrada).

Figura 42 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Infelizmente não pudemos fotografar essas pessoas porque elas estavam pouco receptivas pois, com base nos comentários que ouvimos, entendemos que as reações se deveram ao fato de acreditarem se tratar de um trabalho de umbanda.

Portanto, a contribuição desse trabalho para a pesquisa, é diretamente relacionado com o ver a cultura do outro, pois, apesar de apresentar uma relação intercultural, pude perceber que o ver e o pré-julgar não somente refere-se a culturas estrangeiras, no caso a cultura mexicana, mas como à cultura brasileira, à cultura das pessoas que nos cercam. Durante quatro semanas, sempre aos domingos, foram feitos registros dos elementos que foram deixados no local (Figuras 43, 44, 45, 46 e 47), pois imaginou-se a continuidade deste trabalho através da documentação da transformação dos elementos. Outras possibilidades de continuidade, que foram pensadas, são a montagem em outros jazigos da família, sugerida por minha mãe, além de montagem em cemitérios inteiros no interior.

Figura 43 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Figura 44 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Figura 45 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (CASSULI. 2017)

Figura 46 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Este local, em especifico, teve um elemento de maior significação, por envolver pessoas vivas que possuem os mesmos nomes das pessoas enterradas no jazigo onde foi realizado: no caso minha avó paterna e eu, que nos chamamos Aracy, e meu

avô paterno e meu irmão, que se chamam respectivamente Garibalde e Garibaldi (Figura 47). Essa montagem também propiciou, à pesquisa, que em determinado momento, voltou-se para as questões primordialmente culturais, retornasse a abordar questões referentes a mim. O culto aos mortos, que sempre busquei ignorar, não participando das tradições familiares de visitação aos jazigos, voltou ao meu interesse, ocupando lugar importante na minha reflexão teórica e poética.

Figura 47 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

É importante ressaltar que realizei várias visitas ao cemitério municipal pois, a observação dos costumes locais fazia parte da construção do trabalho a ser realizado. Pude constatar que, na semana que antecede ao Dia de Finados, inúmeras pessoas vão ao cemitério para preparar os jazigos para o dia Dois de Novembro. Algumas delas, aproveitam a data para complementar a renda familiar, e permanecem no local, munidas de materiais de limpeza e pintura, aguardando contratação para limpar os túmulos, pois nem todas as famílias tem o costume, de realizar elas mesmas, a conservação dos jazigos, que inclui lavar, pintar e retirar ervas daninhas (Figura 48 e 49). Existem também pessoas que montam mesas de trabalho improvisadas, e pintam coroas de metal para serem vendidas para aqueles que preferem essas às flores naturais (Figura 50).

Figura 48 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Figura 49 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Figura 50 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Realizei registros, por meio da fotografia, em todas as visitas que fiz ao Cemitério Municipal, desde os preparativos para finados à deterioração de coroas de flores colocadas pós enterros (Figura 51 e 52). Em algumas dessas visitas, em que tive oportunidade de permanecer por mais tempo no local, pude apreciar e fotografar detalhes da arquitetura e esculturas. Percebi que, nos momentos de pesar, as pessoas buscam honrar seus entes de diversas formas, incluindo um cuidado pormenorizado da sua última morada, gerando belas homenagens, traduzidas em detalhes de pedra e metal. Quando vamos, no Dia de Finados, celebrar aqueles que partiram, não olhamos ao nosso redor e perdemos a oportunidade de apreciar os detalhes, as sutilezas que nos cercam. Esculturas, relevos e entalhes se espalham pelo local, apresentando um acervo riquíssimo de obras, produzidas para materializar o sentimento da perda e eternizar os que se foram, revelando que, mesmo na morte, podemos encontrar a beleza (Figuras 53 e 54).

Figura 51 e 52 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

A visita ao cemitério, no dia 2 de novembro de 2017 tinha como propósito, não somente o registro, como conversar com as pessoas que por lá estivessem. Algumas foram mais receptivas que outras na abordagem, porém, quando explicava o propósito dos registros, as pessoas aceitaram ser fotografadas, inclusive posando para as fotos, e relataram sobre seus costumes relativos à data, como Dona Neuza (Figura 55).

Figura 53 e 54 – Aracy Colvero – Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Figura 55 – Aracy Colvero – Dona Neuza - Vivir para contarla (2017), Cemitério Ecumênico Municipal, Santa Maria / RS

Fonte: (COLVERO. 2017)

Em 2 de novembro de 2018, ao passar por esse mesmo local, avistei apenas o rapaz que a acompanhava em 2017. Não tive coragem de chegar para perguntar por ela, apenas procurei pela lápide depois que saíram e não encontrei, então acredito que ela simplesmente não estava naquele dia. Mas sempre vejo a fotografia, recordo que, quando pedi para fotografá-los ela aceitou muito solicita mas exigiu sorridente: “Ah, não! Deixa eu fazer uma pose!”. E, o orgulho como qual ela parou me encarando e mostrando as flores que havia levado para seus entes queridos é semelhante ao orgulho que as senhoras da gravura Memento Mori Nº 12, da série De la Muerte y

Otras Catrinas mostram, ao posar com seus trajes festivos na celebração aos seus

Figura 56 – Aracy Colvero – De la Muerte y Otras Catrinas -Memento Mori Nº 12 (2016), gravura em metal

Fonte: (CAMARGO. 2016)

Elas compartilham estar ali, não só para cumprir um protocolo social mas demonstram estar homenageando aqueles que amam porque não esquecem deles. As duas senhoras mexicanas, atrairiam olhares, como qualquer pessoa diferente dos os padrões considerados normais chamariam a atenção. Mesmo na montagem (Figura 57), a percepção da diferença se dá por essas senhoras serem representações em gravura, porém, a interação delas ficou tão natural, que seria fácil acreditar que elas estavam ali e seriam, no máximo, descritas por excêntricas pelos transeuntes que não gostassem de seus trajes (Figura 58). Possivelmente, seriam motivo de chacota por parte de alguns, já que o respeito pelo outro e por suas diferenças está cada vez mais esquecido, frente a crescente discriminação e intolerância.

Figura 57 – Aracy Colvero -Projeto 2 - Combinação das Figuras 56 e 57

Fonte: (COLVERO. 2018)

Figura 58 – Aracy Colvero - S/ Título Nº 02 (2018), gravura em metal

Essa experiência da instalação e das incursões pelo Cemitério Municipal, na semana anterior e no Dia de Finado de 2017 e 2018, proporcionou retomar lembranças relativas a diferentes etapas da minha vida e à minha família. Percebi que identificar-me com a cultura mexicana, possibilita que tudo o que é referente a mim, incluindo família e amigos, pode ser inserido no contexto do hibridismo que busco apresentar em minha pesquisa. Desse modo, comecei a pensar na produção das gravuras, baseada em cenas geradas na intervenção, em fotografias de meus familiares já falecidos e nas minhas gravuras. Imaginei como conseguiria reunir, num mesmo cenário as várias pessoas, elementos separados por tempo e espaço, pois no campo das ideias, era possível. Elaborei então os projetos, fazendo montagens em programas de edição de imagens, finalizando-as com desenhos, diretamente nas placas de latão, preparadas para gravura.