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D IREITOS C OLECTIVOS E D IREITOS D IFERENCIADOS DE G RUPO

J USTIÇA E D IREITOS

2.4 D IREITOS C OLECTIVOS E D IREITOS D IFERENCIADOS DE G RUPO

Convencido de que a pertença cultural tem um estatuto mais importante dentro do liberalismo do que aquele que os liberais normalmente lhe reconhecem, Kymlicka empenha- se em demonstrar que é possível reconhecer às minorias um conjunto de direitos especiais, compatíveis com os princípios do liberalismo. Uma vez que acabámos de analisar estes

164

Cf. Ibidem, pp. 147-149.

165

“(…) to date, the ideals of mirror representation and democratic accountability have not yet been adequately integrated.” Ibidem, p. 149.

166

“It is a plausible extension of our existing democratic traditions, and there may be some circumstances where it is the most appropriate way to ensure an adequate voice for minority interests and perspectives.” Ibidem, p. 151.

direitos diferenciados de grupo, vamos agora esclarecer a forma como o autor os distingue

dos direitos colectivos.

Os direitos colectivos são direitos a exercer por colectividades, não são atribuídos aos indivíduos que compõem as colectividades e, por conseguinte, Kymlicka rejeita a ideia de que os direitos diferenciados de grupo possam ser equiparados a direitos colectivos: «Os direitos diferenciados de grupo podem ser atribuídos aos membros individuais de um grupo, ou ao grupo como um todo, ou a um Estado/província federal dentro da qual o grupo está em maioria.»167 No entanto, para o autor, o que importa não é determinar se os direitos diferenciados de grupo são exercidos por indivíduos ou por colectividades: «A questão importante é porque é que certos direitos são direitos diferenciados de grupo – isto é, porque é que os membros de certos grupos devem ter direitos relativos à terra, à língua, à representação, etc., que os membros de outros grupos não têm.»168 Kymlicka considera que o debate entre individualistas e colectivistas é estéril, não dá contribui significativamente para o esclarecimento das questões relativas aos direitos diferenciados de grupo nas democracias liberais. Admitindo que estes direitos «parecem reflectir mais uma perspectiva colectivista ou comunitarista, do que a crença liberal na liberdade individual e na igualdade»169, Kymlicka está, porém, convencido de que eles são compatíveis com estes princípios.170 E justifica tal convicção com base na distinção entre os dois tipos de exigências que os grupos minoritários podem fazer:

O primeiro compreende a exigência de um grupo contra os seus próprios membros; o segundo compreende a exigência de um grupo contra a sociedade mais vasta. Ambos os tipos de

167

“Group-differentiated rights can be accorded to the individual members of a group, or to the group as a whole, or to a federal state/province within which the group forms the majority.” Ibidem, p. 45.

168

“The important issue is why certain rights are group-differentiated – that is, why the members of certain groups should have rights regarding land, language, representation, etc. that the members of other groups do not have.” Ibidem, p. 46.

169

“(…) seem to reflect a collectivist or communitarian outlook, rather than the liberal belief in individual freedom and equality.” Ibidem, p. 34

170

exigências podem ser entendidos como formas de proteger a estabilidade das comunidades nacionais ou étnicas, mas respondem a diferentes fontes de instabilidade.171

As exigências do primeiro tipo são as chamadas restrições internas e permitem proteger o grupo da instabilidade provocada pela dissensão interna; as exigências do segundo tipo são as chamadas protecções externas e permitem proteger o grupo da instabilidade provocada por decisões externas, tomadas por outro(s) grupo(s), nomeadamente, pela maioria dominante. As restrições internas referem-se às relações intragrupais e podem levar o grupo a restringir a liberdade dos seus membros em nome da solidariedade, da tradição cultural ou da ortodoxia religiosa. Em contrapartida, as protecções externas referem-se às relações intergrupais e pretendem limitar o impacto negativo das decisões de outros grupos, reduzir a vulnerabilidade das minorias às maiorias.172

As restrições internas existem em todos os tipos de países, até nos que têm uma única cultura nacional. Mas as protecções externas só existem em Estados multiculturais ou poliétnicos. Restrições internas e protecções externas coexistem frequentemente, mas essa coexistência não é obrigatória; as diferentes formas como se relacionam entre si geram diferentes concepções acerca dos direitos das minorias. Os direitos diferenciados de grupo tanto podem ser utilizados para impor restrições internas como para desempenhar o papel de protecções externas, tudo depende das circunstâncias.173 Logo, Kymlicka conclui que, como as protecções externas reduzem a influência das decisões económicas da maioria dominante sobre a minoria, elas não estão em conflito com os direitos individuais dos membros do grupo minoritário: «grupos que têm estas protecções externas podem respeitar completamente os

171

“The first involves the claim of a group against its own members; the second involves the claim of a group against the larger society. Both kinds of claims can be seen as protecting the stability of national or ethnic communities, but they respond to different sources of instability.” Will Kymlicka, Multicultural Citizenship: A

Liberal Theory of Minority Rights, p. 35. 172

Cf. Ibidem, pp. 35-36.

173

direitos civis e políticos dos seus próprios membros.»174 Contudo, muitas vezes, as medidas tomadas a título de protecções externas reduzem a liberdade dos indivíduos dentro da comunidade e até podem ter custos económicos: por exemplo, a protecção das terras dos índios através do sistema de propriedade comunal impede que elas sejam compradas ou expropriadas por membros da sociedade mais vasta, mas simultaneamente, e sem violar os direitos civis e políticos dos índios, restringe a sua liberdade, porque os impede de vender terras.175 Além disso, as protecções externas também têm custos para os membros da sociedade mais vasta, dificultando-lhes a mobilidade e a obtenção de autorizações de residência, ou impedindo-os de ter acesso a serviços públicos na sua própria língua.176 É por isso que, na opinião de Kymlicka, embora os liberais demonstrem alguma aceitação das protecções externas, colocam-lhes limites: as protecções externas só são legítimas se contribuírem para promover a igualdade entre grupos.

Em relação às restrições internas, ou seja, às limitações dos direitos políticos e civis das minorias, Kymlicka assegura que a posição liberal é de rejeição absoluta, porque, como vimos no Capítulo 1, os liberais consideram que os indivíduos de todos os grupos devem ter liberdade para questionar e rever as respectivas práticas e tradições. A resposta de Kymlicka às objecções de Brian Barry (analisadas na Secção 2.3) reside precisamente na distinção entre restrições internas e protecções externas: nenhum direito que prejudique os indivíduos de um grupo, nomeadamente os mais frágeis, em nome da defesa das características e das regras do grupo, pode ser aceite. As restrições internas nunca são legítimas, porque o liberalismo exige liberdade dentro do grupo; portanto, «uma concepção liberal dos direitos minoritários não pode acomodar todas as exigências de todos os grupos minoritários.»177

174

“Groups which have these external protections may fully respect the civil and political rights of their own members.” Ibidem, p. 38. 175 Cf. Ibidem, pp. 42-44. 176 Cf. Ibidem, p. 109. 177

“(…) a liberal conception of minority rights cannot accommodate all the demands of all minority groups.”

Também está aqui subjacente a problemática da tolerância. Analisá-la-emos mais à frente (Secção 2.5). Por agora, vamos seguir a argumentação de Kymlicka relativamente à questão da distinção entre restrições internas e protecções externas: ele defende a tese de que, em determinadas circunstâncias, os direitos de autogoverno e os direitos poliétnicos podem ser utilizados para limitar os direitos dos membros das minorias; por exemplo, nos EUA, em nome do direito de autogoverno, os membros de uma tribo índia podem recorrer de uma decisão do seu conselho tribal para o tribunal tribal, mas não podem recorrer ao Supremo Tribunal.178 O autor também dá exemplos de grupos étnicos e etnoreligiosos que apelam aos direitos poliétnicos para impedirem as crianças de acabarem a escolaridade obrigatória, ou para manterem tradições como a da imposição de casamentos arranjados.

Porém, Kymlicka rejeita a acusação de que «permitir tais práticas opressivas é uma extensão “lógica” das políticas correntes do “multiculturalismo”»179. É verdade que, por um lado, os índios desconfiam que os juízes do tribunal, que são maioritariamente brancos queiram impor-lhes uma interpretação ocidental dos procedimentos democráticos, «sem ter em consideração se as práticas tradicionais índias são uma interpretação igualmente válida dos princípios democráticos.»180 Mas, por outro lado, também é verdade que os índios têm vindo a afirmar o seu respeito pelos direitos humanos e as liberdades consignadas na Constituição, havendo mesmo grupos que aceitam a autoridade de tribunais internacionais dos direitos humanos.181 Em relação aos grupos étnicos e etnoreligiosos, a opinião de Kymlicka é que poucos são aqueles que, no Ocidente, exigem o direito de impor restrições internas; a maior parte das exigências que fazem são relativas a protecções externas. De forma geral, as democracias ocidentais rejeitam qualquer justificação para a persistência de práticas

178

Cf. Ibidem, pp. 38-39.

179

“(…) allowing such oppressive practices is the ‘logical’ extension of current ‘multiculturalism’ polices (...).”

Ibidem, p. 41. 180

“(…) without considering whether traditional Indian practices are an equally valid interpretation of democratic principles.” Ibidem, p. 39.

181

tradicionais que impliquem a violação dos direitos fundamentais dos membros das minorias étnicas e etnoreligiosas.182

Um outro argumento identificado por Kymlicka e que é utilizado para defender as restrições internas é aquele que afirma que elas são subprodutos das protecções externas, que não são desejáveis em si e por si mesmas, mas também não podem ser evitadas. Vimos atrás o exemplo da política de propriedade comunitária dos índios, mas existe um outro exemplo que Kymlicka analisa com alguma profundidade e que nos parece merecer uma breve exposição, até pelo papel que o autor atribui à preservação das línguas minoritárias: diz Kymlicka que as leis da língua vigentes no Quebeque183 se destinam a garantir a igualdade de oportunidades aos francófonos, contra o poder económico que a maioria anglófona possui, no Canadá; impor a utilização da língua francesa em todos os aspectos da vida pública dentro do território do Quebeque é, portanto, uma protecção externa; desta protecção externa resulta, no entanto, uma restrição interna:

Em parte, esta é uma restrição interna, porque em parte visa proteger a estabilidade da sociedade do Quebeque das escolhas dos seus próprios membros. Em parte, também é uma protecção externa excessivamente restritiva, porque, de modo desnecessário, restringe a liberdade dos anglófonos de usarem a sua própria língua.184

Além de se tratar de uma protecção externa útil e legítima, pois protege o francês e garante que ele continue a ser a língua das oportunidades no Quebeque, ela é excessivamente restritiva, na medida em que, sem necessidade, impede os anglófonos de utilizarem o inglês; por outro lado, trata-se também, de certa maneira, de uma restrição interna, porque proíbe a

182

Cf. Ibidem, pp. 41-42.

183

Estas leis consagram, por exemplo: o direito à educação em língua francesa, desde a escolaridade básica até ao ensino superior (inclusive); o direito de utilizar a língua francesa em todas as interacções com o governo e as instituições públicas, assim como no emprego; a isenção de os imigrantes aprenderem o inglês para adquirirem a cidadania; a obrigatoriedade de apresentar a publicidade e os signos comerciais em francês. Cf. Will Kymlicka,

Politics in the Vernacular: Nationalism, Multiculturalism, and Citizenship, p. 158. 184

“This is partly an internal restriction, since it is partly designed to protect the stability of Québéquois society from the choices of its own members. It is also partly an over-restrictive external protection, since it unnecessarily restricts the freedom of anglophones to use their own language (…).” Will Kymlicka, Citizenship

utilização no comércio de signos linguísticos ingleses, o que impede os francófonos de escolherem voluntariamente a utilização do inglês.185

A verdade é que a distinção entre restrições internas e protecções externas é frequentemente ignorada, tanto pelos defensores como pelos críticos dos direitos diferenciados de grupo. Quer uns, quer outros falham: Kymlicka concorda que muitas vezes a dissensão interna resulta de influências externas, mas considera que existe uma diferença fundamental entre restrições internas e protecções externas:

As protecções externas visam garantir que as pessoas são capazes de manter o seu estilo de vida se assim escolherem, e não são impedidas de fazê-lo por decisões tomadas por pessoas exteriores à comunidade. As restrições internas visam forçar as pessoas a manter o seu estilo tradicional de vida, mesmo que elas não queiram escolhê-lo de forma voluntária, porque há outro estilo de vida que lhes parece mais atractivo.186

No caso das protecções externas, a influência exterior torna impossível a manutenção do estilo de vida tradicional, mesmo contra a vontade das pessoas do grupo minoritário; logo, limitar essa influência é uma forma de garantir a liberdade de escolha dos indivíduos. No caso das restrições internas, a influência exterior dá aos indivíduos a possibilidade de escolherem – se quiserem – estilos de vida alternativos; logo, ao limitá-la reduz-se a sua liberdade.187