• Nenhum resultado encontrado

G RUPOS E TNOCULTURAIS E N ACIONAIS

3.2 O S G RUPOS E TNOCULTURAIS

3.2.4 O S A FRO A MERICANOS

Os descendentes dos escravos africanos habitam a América há tanto tempo como os brancos, mas desde sempre foram impedidos de ser membros da nação. Por um lado, não podem ser considerados estrangeiros, porque ali nasceram e habitam há séculos. Por outro lado, não podem ser considerados imigrantes, porque foram levados involuntariamente para os EUA e também não podem ser considerados minorias nacionais, porque não têm um território específico onde estejam concentrados, nem uma língua original própria; quando entraram na América, aqueles que tinham a mesma etnia foram propositadamente separados e proibidos de ali recriarem as suas culturas societais.44

«A situação dos afro-americanos é, portanto, virtualmente única»45: devido a séculos de escravatura e segregação, eles enfrentam obstáculos à integração que os imigrantes não enfrentam, pelo que fracassaram todas as tentativas de os integrar através da promulgação de leis antidiscriminação, semelhantes às que foram aplicadas aos imigrantes. Aliás, muitos afro- americanos, estão convencidos de que o sucesso de imigrantes, como os hispânicos ou os asiáticos, se fez às suas custas, o que gera ressentimentos mútuos.46 Acresce que, como os afro-americanos se encontram dispersos por todo o território dos EUA, não há nenhuma região americana onde estejam em maioria; consequentemente, também fracassou a tentativa de promover um nacionalismo negro e criar a nação negra no Sul dos EUA. Aliás, «a maior

43

Só abordamos aqui o problema dos negros nos EUA. Kymlicka afirma que a sua situação no Canadá é totalmente diferente e que, contrariamente àquilo que acontece nos EUA, não têm uma situação única, podem considerar-se imigrantes semelhantes a tantos outros. O autor explica que nos séculos XIX e XX, a maior parte dos descendentes canadianos dos antigos escravos africanos foi viver para os EUA, pelo que o grupo ficou reduzido a uma pequena minoria entre as muitas minorias visíveis que vivem no país. Por isso, nunca existiu um nacionalismo negro no Canadá e os negros canadianos nunca criaram instituições separadas. Os negros canadianos actuais são predominantemente oriundos das Caraíbas e chegaram há pouco tempo ao Canadá; aqui, podem apoiar-se no sucesso de todos os antigos imigrantes não-BASP (brancos, anglo-saxónicos, protestantes), sucesso esse que permite enfrentar com esperança os preconceitos e a discriminação de que ainda são alvo todas as minorias visíveis. Cf. Will Kymlicka, Politics in the Vernacular: Nationalism, Multiculturalism, and

Citizenship, pp. 185-187. Contudo, parece-nos prudente assinalar que, na sequência da argumentação acima

apresentada, veremos que Barry contrapõe a Kymlicka que não há razões para distinguir os negros canadianos dos negros americanos. Cf. Brian Barry, Op. Cit., pp. 316-317.

44

Cf. Will Kymlicka, “Western Political Theory and Ethnic Relations in Eastern Europe”, pp. 45-46.

45

“The situation of African-Americans, therefore, is virtually unique.” Ibidem, p. 46.

46

parte dos negros não tem nem quer uma identidade nacional distinta.»47 Sentem-se «desnacionalizados», mas querem ser cidadãos americanos.

O facto de o próprio Kymlicka reconhecer a situação singular dos afro-americanos serve de argumento para Brian Barry contestar a sua teoria dos direitos de grupo. Barry afirma que os multiculturalistas sofrem da «tendência endémica para presumir que os atributos culturais específicos são a característica definidora de todos os grupos.»48 Consequentemente, os multiculturalistas defendem que todos os problemas que os grupos enfrentam têm origem naqueles atributos.49 Ora, Barry argumenta que este é um dos motivos por que a teoria de Kymlicka falha: «os grupos podem sofrer de carências materiais, de falta de igualdade de oportunidades e de discriminação directa, e não existe razão para supor que estas desvantagens derivam do facto de possuírem uma cultura específica»50. Barry cita Kwame Anthony Appiah, que afirma que os afro-americanos são discriminados porque são negros, não por causa da sua cultura51; Barry também admite que as crianças negras possam sofrer desvantagens educacionais devido às carências culturais dos seus pais e do meio social de onde provêm:

Mas isto quase nada tem a ver com as diferenças culturais que orientam a agenda multiculturalista. Não existe aqui “nenhum conflito de visões entre as culturas branca e negra”, para referir a citação de Anthony Appiah que fiz na secção anterior. Melhor, estamos a falar de um défice que, com mais aptidão, pode ser comparado a uma incapacidade física ou tratado como equivalente à falta de certo tipo de recurso não material. De facto, era precisamente neste tipo de desvantagem que eu estava a pensar quando disse atrás que alguns grupos têm falta tanto de recursos materiais como de capital humano.52

47

“(…) most Blacks do not have or want a distinct national identity.” Ibidem, p. 183.

48

“(…) endemic tendency to assume that distinctive cultural attributes are the defining feature of all groups.” Brian Barry, Op. Cit., p. 305.

49

Cf. Ibidem.

50

“(…) groups can suffer from material deprivation, lack of equal opportunity and direct discrimination, and there is no reason for supposing these disadvantages to flow from their possession of a distinctive culture (…).”

Ibidem, p. 315. 51

Cf. Ibidem, p. 306. A obra de Kwame Anthony Appiah que Barry cita é“Race, Culture and Identity”, in K. A. Appiah and A. Gutmann (eds.), Colour Conscious: The Political Morality of Race, Princeton, Princeton University Press, 1996.

52

“But this has almost nothing to do with the cultural differences that drive the multiculturalist agenda. There is ‘no conflict of visions between black and white cultures’ here, to refer again to my quotation in the previous section from Anthony Appiah. Rather, we are talking about a deficit that is more aptly compared to a physical disability or treated as equivalent to lacking a certain kind of non-material resource. Indeed, it was precisely this

É verdade que Kymlicka subvaloriza a questão da cor da pele. Ao centrar-se na dimensão cultural dos grupos, procura explicações e soluções de carácter cultural. Por isso, defende que a solução para acabar com a discriminação dos negros nos EUA passa pela adopção de um conjunto complexo de medidas, que vão desde a compensação histórica pelas injustiças que eles sofreram no passado, à concessão de ajudas especiais à sua integração (acção afirmativa), à garantia de que eles tenham direitos de representação política e à concessão de apoios a organizações negras. O autor reconhece que muitas destas medidas parecem contraditórias, umas promovendo a integração, outras parecendo reforçar a segregação.53 Contudo, como a realidade dos afro-americanos é complexa e eles têm uma relação contraditória com a construção da nação americana, Kymlicka afirma que cada medida responde a um aspecto diferente dessa realidade e o conjunto dará frutos positivos, a longo prazo:

A longo prazo, a finalidade é promover a integração dos afro-americanos na nação americana, mas reconhece-se que este é um processo demorado que apenas pode funcionar se as comunidades e as instituições negras existentes forem reforçadas. A curto prazo, um certo grau de separação e consciência da cor é necessário para alcançar, a longo prazo, o objectivo de uma sociedade integrada e indiferente à cor (colour-blind). 54

Tal como em relação aos metecos, Kymlicka está convencido de que o governo americano tem obrigação moral urgente de modificar a situação dos afro-americanos que foram e são vítimas das maiores injustiças. E também aqui, o autor assinala a importância do factor prudência: se nada for feito, continuará a agravar-se o fosso entre os afro-americanos e o resto da sociedade, condenando os primeiros à pobreza, à marginalização e à violência sort of disadvantage that I had in mind when I said earlier that some groups are short of both material resources and human capital.” Brian Barry, Op. Cit., p. 323.

53

Cf. Will Kymlicka, “Western Political Theory and Ethnic Relations in Eastern Europe”, p. 47.

54

“The long-term aim is to promote the integration of African-Americans into the American nation, but it is recognized that this is a long-term process that can only work if existing Black communities and institutions are strengthened. A degree of short-term separateness and colour-consciousness is needed to achieve the long-term goal of an integrated and colour-blind society.” Will Kymlicka, Politics in the Vernacular: Nationalism,

permanentes e conduzindo ao desenvolvimento de uma subcultura separatista e de oposição às instituições «brancas», o que só poderá agravar os conflitos raciais já existentes.55

Assim como discorda da explicação dada por Kymlicka, Barry também discorda das soluções que ele propõe, até porque o próprio Kymlicka recusa estender essas soluções a outros grupos. Vimos na Secção 2.2 que Kymlicka considera que o objectivo dos afro-americanos é diferente do objectivo das restantes minorias: os afro-americanos visam a integração plena na sociedade americana, enquanto as outras minorias visam a manutenção da sua especificidade. É esta a razão por que Barry acusa Kymlicka de falta de coerência: «Então, segundo Kymlicka, a noção de que o tratamento igual significa tratar as pessoas da mesma forma tem de redundar na “política da diferença” em todos os casos excepto este.»56 Os afro-americanos são os únicos para os quais o tratamento igual significaria a não-discriminação e a igualdade de oportunidades. Para Barry,

Trata-se de uma evidente falácia concluir que os negros americanos são o único grupo em todo o mundo cujos membros aspiram atingir os mesmos objectivos educacionais e profissionais que a maioria, mas são impedidos pela discriminação e exclusão ou pela falta de recursos.57