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Da antiguidade até ao início do século XX

No documento A Cooperação Internacional Portuguesa no (páginas 30-34)

Até ao século XIX, as teorias interpretativas associadas aos conceitos de saúde e doença podem ser sintetizadas em duas vertentes: a ontológica e a dinâmica.

Na concepção ontológica, a doença assume o carácter de uma entidade natural ou sobrenatural, externa ao corpo humano, que se manifesta ao invadi.lo. Na concepção dinâmica a doença é considerada como produto da desarmonia entre forças vitais, sendo que o restabelecimento da saúde advém da restauração do equilíbrio (Oliveira e Egry, 2000).

Os primeiros esforços conhecidos por parte dos nossos ancestrais para curar as doenças encontram.se documentados até há vinte mil anos atrás (Straub, 2005) nas figuras encontradas em cavernas (Altamira, Niaux, Lascaux), que nos dão provas, não só das capacidades artísticas do homem do paleolítico superior, mas também das suas actividades e concepções mágico.religiosas associadas aos fenómenos de saúde e doença (Sousa, 1981;Straub,2005).

A ideia de um deus, uno ou múltiplo, deve ter surgido cedo na consciência do homem, com a de um ser dotado de poderes sobrenaturais. A sucessão das estações e tantos outros acontecimentos na natureza, não podem deixar de ter dado ao homem o sentimento da sua pequenez e de o levar a reconhecer, nessas e em muitas outras forças, um poder transcendente. A patologia humana, salvo os casos em que a causa era manifesta, era.lhe absolutamente inexplicável, mas mesmo nestes casos (Sousa,1981), em interpretações puramente teológicas (Martins,2005) o factor sobrenatural conservava uma grande importância (Sousa, 1981).

Embora os avanços mais expressivos em saúde pública, apenas se tenham feito na Grécia e em Roma, durante os séculos V e VI a.C. (Straub, 2005), também desde as civilizações mais antigas, se foi organizando alguma forma de melhoria das condições de higiene e meio ambiente em que os grupos de indivíduos se fixavam (Ferreira, 1978), dado ter.se começado a constatar a importância, que estes aspectos, tinham sobre a saúde e a doença (Straub, 2005).

É justamente neste contexto que, cerca de 400.377 anos a.C., Hipócrates estabelecia as raízes daquela que haveria de ser a ciência médica ocidental (Ferreira, 1978; Martins,2005; Ribeiro,2005; Straub,2005). Defendendo um conjunto de princípios teóricos e metodológicos, baseados na observação objectiva e no raciocínio dedutivo, este filósofo grego foi o primeiro a propor uma concepção dinâmica de corpo, (Czeresnia, 2001) a afirmar que a doença era um fenómeno natural e não um capricho dos deuses, e que um corpo e uma mente saudáveis eram assim a expressão de um equilíbrio harmonioso, entre os quatro fluidos corporais (“humores”) (Fernandes, 2008; Straub,2005) e a natureza apreendida como totalidade (teoria humoral).

A queda do império romano no século V d.C.,abriu as portas para a Idade Média, época caracterizada pelo retorno às explicações sobrenaturais, dada a poderosa influência que a igreja passou a exercer sobre todos os domínios da vida das pessoas (Straub, 2005).

Já no final do medievo, as frequentes guerras e o aumento das epidemias na Europa trouxeram de volta a preocupação com as formas de transmissão das doenças (Oliveira e Egry, 2000).

No final do século XV, nascia uma nova era: a Renascença, e com ela importantes mudanças para a evolução do conhecimento científico e a revitalização da prática médica (Straub,2005).

Por considerar o corpo humano “(…) a weak and imperfect vessel for the tranfer of the soul from this world to the next.” (Engel, 1977,p.131) nesta nova era, a igreja dá permissão para que finalmente se integre o estudo do cadáver na reflexão sobre a saúde e a doença (Tubiana, 2000). Como resultado Andreas Vesalius escreve o primeiro estudo oficial de anatomia humana (Straub, 2005), possibilitando o surgimento de disciplinas como a Anatomia, a Fisiologia e a Patologia (Oliveira e Egry, 2000) que juntas conduziram ao que Luz (cit in Oliveira e Egry, 2000,p.10) classifica como "o deslocamento epistemológico . e clínico . da medicina moderna, de uma arte de curar indivíduos doentes para uma disciplina das doenças".

Nesta mesma época um dos seus mais influentes pensadores, o filósofo e matemático francês René Descartes (1596.1650) (Bolander, 1998; Straub, 2005), conjuntamente com Galileu e Newton, enunciavam também aqueles que viríam a tornar. se os princípios básicos da ciência (Engel, 1977). Na obra “Le traité de L’Homme” Descartes aplicava especificamente este modelo mecanicista ao homem e à doença humana, naquele que ficaria a ser conhecido como “modelo cartesiano” ou “dualismo cartesiano” (Brown, 1989).Segundo Roy R. Grinker e George Engel, com esta concepção, Descartes influenciaria de forma negativa a medicina moderna, por separar a “(…) mind as subject from body as object and creating a dichotomy that even blocks unitary concepts”(Grinker,1979, p.69).Esta posição partilhada pela grande maioria dos autores consultados é contudo colocada em causa por Theodore Brown em “Cartesian

Dualism and Psychosomatics”: “ (…) The mythic image of a villainous Descartes, who in a stroke destroyed holistic medical theory, clearly disintegrates in the light of historical enquiry. If we turn now to Descartes own writings we will find still less reason to believe (…)”( Brown, 1989, p.325).A interpretação superficial da sua filosofia, resumida à expressão “dualismo corpo . mente”, conduziria assim à rejeição vigorosa da noção de que a mente influencia o corpo (Straub,2005; Bolander, 1998).A partir de então, o estudo da mente (não . científico) ficaria relegado à religião e à filosofia, enquanto que o estudo (científico) do corpo era reservado à medicina.

Entretanto e apesar de todos os avanços que aconteceram desde 1500 até meados do século XIX, na maneira de pensar e de viver de uma parte significativa da humanidade (Ferreira, 1978), no século XVIII, a revolução industrial, teria, paralelamente, consequências nefastas para a saúde da humanidade (Fernandes, 2008; Ribeiro,2005). O superpovoamento desregrado das cidades da europa ocidental provocado pela migração maciça de trabalhadores iletrados dos campos (Ferreira, 1978), que se aglomeravam em casas com parcas condições de habitabilidade e salubridade (Ribeiro, 2005), tornar.se.iam factores desencadeantes e facilitadores, conjuntamente com as mudanças ecológicas e sociais daí decorrentes, da difusão de microrganismos causadores de grande morbilidade e mortalidade: começava a época das grandes epidemias (Fernandes, 2008; Ribeiro, 2005).

No final do século, vinculados à concepção dinâmica, paradigmas sócio. ambientais assentes no neo.hipocartismo passavam a predominar como forma de explicação da origem das doenças, tornando.se, e associados aos primeiros grandes movimentos da revolução sanitária do século XIX (Oliveira e Egry, 2000), a articulação entre miséria social e doença, um centro de interesse e de estudo na medicina (Czeresnia, 2001).

É no contexto desta “medicina social” e na continuidade dos trabalhos realizados sobre o tema por Johann Peter Frank, sobre o aumento pelas preocupações humanitárias e sociais no sentido da responsabilidade entre os povos, que Edwin Chadwick, no célebre relatório “The sanitary condition of the labouring population of the Great

Britain” (1842) considera, e pela primeira vez na história, a doença como principal

causa de pobreza, demonstrando que pobreza e doença formavam um ciclo vicioso: as pessoas adoeciam porque eram pobres, empobreciam mais porque eram doentes e o seu estado de saúde continuava a piorar porque a sua miséria aumentava (Ferreira, 1978).

Vinculada aos paradigmas sócio.ambientais, uma outra influência poderosa para a compreensão dos problemas de saúde pública da época, foi a postura assumida por Florence Nightingale ao afirmar que o ambiente era uma das principais fontes de infecção (Graaf, Mossman e Slebodnik,1989), e a doença “(…) um processo reparador(…) um esforço da natureza para corrigir um processo de envenenamento ou

de desgaste (…)”(Nightingale, 2005, p19), ou uma reacção contra as condições em que a pessoa se encontrava (Graaf, Mossman e Slebodnik,1989).

No século XIX as grandes descobertas de Virchov, Pasteur e Kock sacudiriam o mundo médico e inaugurariam uma nova era: a da bacteriologia (Ávila . Pires, 1989; Oliveira e Egry, 2000; Trilling,2000; Straub,2005).

Ocorria desta forma a transformação mais profunda, “brutal”, nas palavras de Sournia (1991,p.364), da história da medicina: retomou.se a vertente ontológica (Oliveira e Egry, 2000) da causalidade e a doença foi identificada como lesão de um órgão, passando a considerar.se, como afirma Leriche (cit. in Canguilhem, 2009, p.35), que "(…)na doença, o que há de menos importante, no fundo, é o homem (…) Portanto, não são mais a dor ou a incapacidade funcional e a enfermidade social que fazem a doença, e sim a alteração anatómica ou o distúrbio fisiológico.” (Canguilhem, 2009,p.35).

Para controlar os agentes patogénicos e a sua disseminação são assim desenvolvidas as modernas medidas de saúde pública (Fernandes, 2008), que teriam na descoberta da penicilina por Fleming, um passo decisivo (Straub,2005).Tais medidas, tiveram um sucesso inigualável no combate das doenças infecciosas e revelar.se.iam fundamentais para as mudanças dos padrões de saúde e doença do mundo desenvolvido e a evolução das sociedades modernas (Bolander, 1998).

Quando essa construção se consolidou, os paradigmas sócio.ambientais, então no seu apogeu, perderam força e decaíram (Czeresnia, 2001). Aprofundaram.se as dualidades que caracterizariam o pensamento ocidental, e o conhecimento passou progressivamente a orientar.se no sentido da especialização, da redução e da fragmentação (Czeresnia, 2001).

No documento A Cooperação Internacional Portuguesa no (páginas 30-34)