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Da cláusula geral da função social do contrato

No documento A INTERVENÇÃO DO JUIZ NOS CONTRATOS (páginas 70-80)

3 O DIREITO DOS CONTRATOS

3.3 Dos contratos no Código Civil de 2002

3.3.1 Das cláusulas gerais

3.3.1.3 Da cláusula geral da função social do contrato

Paulo Velten191 ensina, com propriedade, que a função social não é uma

figura própria das ciências jurídicas. Relaciona-se, com efeito, a todas as ciências, na medida em que todas buscam a verdade, tendo como destinatário o ser humano, que somente se realiza plenamente em sociedade.

185 TARTUCE, Flavio, A função... cit., p. 154.

186 Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros

e atualização monetária, segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster.

Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

187 CC, Artigo 406, I. Este mesmo dispositivo admite exceções à regra do “pacta sunt

servanda”, em razão de acordo entre as partes ou da vontade da lei. Mario Julio de Almeida Costa salienta que esta alteração pode decorrer de providências legislativas, vontade das partes ou intervenção judicial (COSTA, Mario Julio de Almeida. Direito... cit., p. 283.).

188 CC, Art. 1372 Efficacia del contratto.

I l contratto ha forza di legge tra le parti. (Art. 187. Eficácia do contrato: O contrato faz lei entre as partes - tradução livre).

189 CC, Art. 1.091.

Las obligaciones que nacen de los contratos tienen fuerza de ley entre las partes contratantes, y deben cumplirse al tenor de los mismos. (Art. 188, CC- As obrigações que nascem dos contratos tem força de lei entre as partes contratantes e devem cumprir o teor dos mesmos - tradução livre).

190 Art. 1197: “Las convenciones hechas em los contratos forman para las partes uma regla

a la cual deben someterse como a la ley mesma” (Art. 1197: As convenções feitas nos contratos formas para as partes uma regra que deve ser respeitada como se fosse lei - tradução livre).

Desta forma, a função social dever ser vista como relacionada à atuação do ser humano em benefício da sociedade.

Daí a se indagar: qual seria o fim social do contrato? É neste ponto que reside a importância das cláusulas gerais acima mencionadas: propiciar ao julgador o estabelecimento do sentido da norma, em determinada época e contexto social, de modo a manter a legislação sempre atual.

Exemplo disto é o conceito da função social do contrato, um conceito amplo e impreciso que, no decorrer do tempo, pode alcançar os mais diversos significados, cabendo ao juiz determiná -lo no momento adeqüado.

Como bem salienta Rogério Ferraz Donini192, a função social do

contrato sempre fez parte da teoria contratual. Entretanto, sob o prisma do liberalismo, entendia-se que ela seria alcançada pela simples atuação dos contratantes.

No atual momento histórico, entendemos que a função social do contrato adquire um aspecto muito mais amplo. Conforme já foi dito, as cláusulas gerais consagradas pelo Código Civil de 2002 vieram apenas confirmar os princípios constitucionais e a valorização do indivíduo e do princípio da dignidade da pessoa humana. E a função social do contrato surge implícita na Constituição Federal, como forma de propiciar o desenvolvimento econômico e alcançar alguns dos objetivos da República Federativa do Brasil que, nos termos do artigo 3º, I a III da Carta Constitucional, são os de

“I- construir uma sociedade livre, justa e solidária, II-

erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e III – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Tanto é assim que o artigo 170 da Carta Magna estabelece a ordem econômica como a forma para se alcançar este objetivo, assegurando “a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Da análise destes dispositivos, Sidnei Turczyn193 conclui que:

“é bastante clara a função do Estado Moderno de

perseguir o desenvolvimento econômico como alvo principal a ser alcançado, inclusive como meio de atingimento das demais formas de desenvolvimento (social, cultural e educacional), todas elas dependentes, no entanto, do desenvolvimento econômico”.

Suzana Maria Pimenta Catta Preta Federighi194 igualmente afirma

que a regulação das atividades econômicas por meio da intervenção do Estado autorizada pela Constituição Federal, em especial por seu artigo 170, pressupôs “tornar mais efetivas as garantias básicas nela previstas”.

Complementarmente, tem-se que o principal elemento para o atingimento do desenvolvimento econômico é o contrato. Por isso é possível falar em função social do contrato como sendo a utilização do contrato para desenvolvimento econômico, com o objetivo de “assegurar a todos a existência digna, conforme ditames da justiça social” e “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Miguel Reale195 segue esta mesma linha de raciocínio ao relacionar o ato de contratar com a livre iniciativa, consagrada pela Constituição de 1988, como um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito.

Também defendendo a previsão da função social do contrato na Constituição Federal, Flavio Tartuce196 ensina que a mesma encontra respaldo também no artigo 1º da Carta Maior, que trata da dignidade da pessoa humana . Por sinal, este doutrinador inclui até mesmo a função social do contrato como uma espécie do gênero função social da propriedade, consagrado expressamente pela Constituição Federal197.

193 TURCZYN, Sidnei. O sistema financeiro nacional e a regulação bancária. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2005, p. 255.

194 FEDERIGHI, Suzana Maria Pimenta Catta Preta. A publicidade... cit., p. 108.

195 REALE, Miguel. A função social dos contratos. Disponível em:

<http://www.miguelreale.com.br>. Acesso em Mai 2007.

196 TARTUCE, Flavio, A função... cit., p. 200. 197 TARTUCE, Flavio, A função... cit., p. 206.

Parece-nos, inclusive, que foram estes raciocínios que levaram os professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery198 a afirmar que a aferição da função social do contrato deverá ser feita com “base em valores jurídicos, sociais, econômicos e morais” e que , sob o prisma do Estado social,

“o contrato estará em conformidade com a sua função social quando as partes se pautarem pelos valores da solidariedade (CF, 3º, I) e da justiça social (CF 170, caput), da livre iniciativa, for respeitada a dignidade da pessoa humana (CF 1º III), não se ferirem valores ambientais (CDC, 51, XIV), etc... Haverá desatendimento à função social quando: a) a prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional, extrapolando a álea normal do contrato, b) quando houver vantagem exagerada para uma das partes, c) quando quebra-se a base objetiva ou subjetiva do contrato, etc...”199.

Especificamente com relação aos valores sociais (igualdade entre as partes), o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, José Luciano de Castilho Pereira200, salienta que tais valores devem ser adaptados às circunstâncias de cada região do Brasil. Aduz ele, acertadamente , que não se pode dar o mesmo tratamento a dois contratos idênticos, um firmado na Avenida Paulista, em São Paulo, e outro no interior de Minas Gerais, em uma região extremamente pobre.

Arnoldo Wald201, por sua vez, tece considerações a respeito dos valores econômicos, salientando que, por vezes, “a função social do contrato consiste em manter íntegras as prestações das partes, mesmo quando são onerosas, para evitar que a vantagem de alguns seja a causa do prejuízo da maioria” ou que as decisões causem impacto em direito de terceiros, que não são parte no contrato. Como exemplo, cita os casos de seguros em

198 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código... cit., p. 336. 199 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código... cit., p. 336.

200 PEREIRA, José Luciano Castilho. Liberdade de contratar. Limites impostos pela função

social do contrato. Disponível em <http//www.tst.gov.br/artigos>. Acesso em 20 Mar

2007, p 5.

grupo e de previdência, para, enfim, concluir que “o grande desafio do nosso tempo certamente é o de conciliar o econômico e o social, submetendo ambos ao direito”.

A relação da função social do contrato com o princípio da dignidade humana foi, magistralmente, reconhecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em decisão monocrática proferida pelo Desembargador Adilson de Andrade no julgamento do agravo de instrumento 468.303.4/1 -00:

“Nessa ordem de idéias, inegável que a função social

dos contratos limita a liberdade contratual, através de normas de ordem pública e de prevalência dos direitos e interesses coletivos sobre os de natureza individual. Além disso, o § único do artigo 2035 do atual Código Civil ratifica a já assegurada função social do contrato, atrelada, como se disse, à limitação da liberdade contratual. A bem da verdade a questão vai além daquilo que previu o legislador ordinário, pois dentre os vários princípios que sustentam as bases constitucionais de proteção ao consumidor encontra-se o da dignidade”.

O entendimento de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, mencionado acima, de que a função social do contrato está relacionada à paridade de tratamento entre as partes e com a boa-fé é também adotado por Maria Helena Diniz202 e Luciano Rodrigues

Machado203, Cláudio Luiz Bueno de Godoy204, bem como por parte da

202 DINIZ, Maria Helena. Comentários ao código civil- Parte especial - Livro complementar.

São Paulo: Saraiva, 2003, p. 183.

203 MACHADO, Luciano Rodrigues. A função... cit., p. 332. 204 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A função... cit., p. 133.

jurisprudência205. Diga-se que Cláudio Luiz Bueno de Godoy206 vai além ao

afirmar que a operatividade da função social do contrato se dá como forma de interpretação dos contratos, de modo a prestigiar a sua manutenção (o que tem influência direta para o equilíbrio das partes), e também, em seu aspecto negativo, no exercício do controle dos contratos.

Entretanto, não se trata de um posicionamento pacífico. Segundo parte da doutrina207, a cláusula geral da função social do contrato se relaciona apenas aos efeitos do contrato perante a sociedade (âmbito externo do contrato). Neste contexto208, citam-se os seguintes exemplos de desvirtuamento da função social: o ajuste simulado do contrato para

205 1. EMBARGOS INFRINGENTES. SEGURO DE VIDA. RENOVAÇÃO ANUAL

AUTOMÁTICA. RECUSA DA SEGURADORA. CANCELAMENTO. ABUSIVIDADE. 1. É abusiva a conduta da seguradora que, em razão da redução de sua margem de lucro causada pelo envelhecimento de seu cliente, obsta a renovação do contrato do consumidor idoso, que certamente encontrará dificuldades insuperáveis para contratar um seguro similar com outra companhia. 2. A admissão da contratação em massa em nosso ordenamento está adstrita ao cumprimento integral do dever de boa-fé do fornecedor, que deverá garantir a continuidade da prestação dos serviços nas relações cativas de longa duração. 3. Caso em que a imposição da renovação do contrato não fere a liberdade de contratar, instituto delimitado pela função social do contrato. EMBARGOS ACOLHIDOS, POR MAIORIA. (TJ/ RS, 3º Grupo de Câm. Cíveis, Embargos Infringentes 70019207281, Rel. Des.: Paulo Sergio Scarparo, j. 04/05/2007); 2) COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - Rescisão - Aquisição de bem imóvel - Atraso no pagamento das prestações – Ajuizamento da ação após regular notificação - Oferta de contestação indicando problemas de ordem financeira – Realização de depósito dos valores devidos – Ausência de impugnação - Possibilidade de opção de cobrança ou rescisão assegurada somente à autora ferindo legislação consumerista vigente – Pagamento realizado a afastar prejuízo da autora e a assegurar o acesso a moradia em prol da ré – Função social do contrato atendida – Improcedência da ação – Sentença confirmada – Recurso improvido (TJ/SP, 7ª Câm. Dir. Privado, Apelação cível 450.057-4/1-00, Rel. Des.: Elcio Trujillo – j. 13.09.06), 3) Trecho do voto proferido em julgamento de Recurso Especial 691.738 de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi: “O artigo 1.488 do CC/02 consubstancia um dos exemplos de materialização do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está por trás dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa-fé, adquirem imóveis cuja construção – ou loteamento- fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária”. (STJ, 3ª Turma, Recurso Especial 691.738, Rel Min. Nacy Andrighi).

206 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A função... cit., p. p.159.

207 THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato... cit., p. XI. VELTEN, Paulo. Função... cit.,

p. 437. Para Fabio Ulhoa Coelho, a função social do contrato estaria relacionada aos “direitos difusos e coletivos” (COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil, vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 35-38). Não necessariamente estes direitos referem-se a efeitos externos. Um contrato de seguro que atinge um grande número de segurados pode ser tido como um direito coletivo, conforme se demonstrará no item 4.2.3.2 infra. E, neste caso, a função social estaria relacionada aos efeitos internos do contrato.

prejudicar terceiros, a divulgação de publicidade enganosa ou agressiva, a comercialização de viagens com o objetivo de explorar o turismo sexual ou a prostituição infantil, entre outros. Nestes casos, terceiros podem opor-se aos contratos. E, paralelamente, em razão desta cláusula geral, terceiros (aos quais Pedro Oliveira da Costa209 denomina de terceiros qualificados) estranhos ao contrato não podem mais se comportar como se este não existisse, em detrimento, por exemplo, dos interesses de um dos contratantes. Se o fizerem, poderão ser responsabilizados pelos danos decorrentes.

Neste sentido, no âmbito interno do contrato (entre os contratantes) não haveria como se falar em função social, mas em quebra da boa-fé objetiva.

Humberto Theodoro Junior210 afirma categoricamente que a própria expressão função social está em contradição com a relação interna dos contratantes, na medida em que função se refere a “papel a desempenhar” e social relaciona -se à sociedade.

Calixto Salomão Filho211 igualmente acolhe a tese de que a função

social se refere apenas aos efeitos externos do contrato. Entretanto, este autor traz um novo enfoque. De acordo com os seus ensinamentos, a função social é relacionada a efeitos institucionais212 do contrato, assim entendidos aqueles que: a) são de cada indivíduo e da sociedade, mas com utilidade distinta para cada indivíduo e para a sociedade, e; b) que são reconhecidos

209 “Por meio e em razão da função social, o contrato se impõe mesmo àqueles que dele

não fizeram parte, os quais, tendo conhecimento do vínculo, devem-lhe respeito, não podendo praticar atos que saibam prejudiciais ou comprometedores da satisfação do direito alheio, consubstanciado no contrato” (COSTA, Pedro Oliveira da.

Apontamentos... cit., p. 58.).

210 THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato... cit., p. 13.

211 SALOMÃO FILHO, Calixto. A função social do contrato. Primeiras anotações. Revista

de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, v. 132, 2003, p. 17-24.

212 Na realidade, o autor faz referência a interesses institucionais como expressão sinônima

de interesses difusos. Entretanto, critica a classificação de direitos difusos utilizada no Brasil com base no Código de Defesa do Consumidor sobre a qual faremos referências no item 4.2.3.2 infra, salientando que esta classificação tem como base os sujeitos da relação jurídica (visão processual), quando na realidade, o mais aconselhável, seria que ela tomasse como base o objeto dos direitos. O que ele acaba por concluir é que os direitos difusos e coletivos não se distinguem entre si.

como direitos, pelo menos, pela Constituição. Em razão disso, conclui ele que a previsão da função social do contrato no Código Civil veio complementar o sentido dos interesses processuais de controle difuso e social (como, por exemplo, ação coletiva).

Ruy Rosado de Aguiar Junior213, por sua vez, não menciona expressamente nem a possibilidade, nem a impossibilidade de a função social se referir aos efeitos internos do contrato. Segundo este doutrinador:

“Houve completa alteração do eixo interpretativo do

contrato214. Em vez de considerar-se a intenção das

partes e a satisfação de seus interesses, o contrato deve ser visto como um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade, onde encontra a sua razão de ser e de onde extrai a sua força - pois o contrato pressupõe a ordem estatal para lhe dar eficácia (...) Devo concluir que somente se enquadra na sua função social o contrato que, sendo útil, é também justo. A realização da função social do contrato, portanto, agora prevista expressamente no Projeto, exige que, para a sua compreensão e interpretação, atenda-se ao valor da “Justiça”.

Parece-nos, contudo, inegável que a orientação deste jurista é a de incluir o equilíbrio contratual como uma das características da função social do contrato. Esta conclusão é confirmada pelo Enunciado 22, elaborado na jornada de direito privado sob sua coordenação científica: “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo CC, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.

Entendemos ser correta a posição de que a função social diz respeito a toda a sociedade. Entretanto, considerando que os standards de um contrato podem servir de paradigmas para outros casos, que o desequilíbrio em um contrato pode trazer conseqüências a terceiros e, principalmente, o fato de que o contrato é tido como forma de se alcançar o desenvolvimento

213 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Projeto... cit., p. 19.

214 A utilização da função social do contrato como elemento para interpretação deste é

também anotada por Luciano Rodrigues Machado (MACHADO, Luciano Rodrigues. A

social, com o objetivo de constituir uma sociedade “justa e solidária”, parece- nos que não há como excluir a paridade das partes do conceito de função social do contrato. Renzo Gama Soares215 compartilha deste entendimento

ao afirmar que um contrato que preveja condições desproporcionais para ambas as partes não é socialmente interessante, podendo concorrer, inclusive, para o aumento da desigualdade social. É o caso, por exemplo, de um aumento abusivo nas mensalidades dos planos de saúde, ainda que em conformidade com o reajuste previsto contratualmente.

Aliás, conforme afirmam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, a cláusula geral da boa-fé objetiva pode ser vista como uma das vertentes do princípio da função social do contrato.

O contrato, portanto, deve ser entendido como instrumento de convívio social e de preservação de interesses da coletividade. A relativização dos efeitos do contrato ganha, nesse contexto, uma nova ótica. O contrato passa a interferir em toda a sociedade. Em outras palavras, o contrato deixa de ser visto apenas como “res inter alios”.

Apesar da amplitude que o conceito de função social do contrato216

confere ao aplicador do direito, infelizmente, parece-nos que a temida resistência à nova visão contratual já está se impondo.

De acordo com o enunciado 23 da Jornada de Direito Civil:

“A função social do contrato, prevista no artigo 421 do NCC, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua os seus ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses meta individuais ou interesse relativo à dignidade da pessoa humana”.

215 SOARES, Renzo Gama. Breves... cit., p. 454.

216 Importante mencionar que a função social do contrato já foi referida em outras épocas,

com sentido diverso do hoje estudado. Caio Mario da Silva Pereira, afirma que a função social do contrato seria a de obrigar as partes a cumprirem o avençado, de modo a propiciar o sentimento de segurança (“pacta sunt servanda”) (PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições... cit., p. 15-16). Fernando Noronha também assevera que toda lei tem sempre uma função social. É necessário apenas que se identifique qual é essa função em determinada época (NORONHA, Fernando. O direito... cit., p. 83). Neste mesmo sentido, DONINI, Rogério Ferraz. A Constituição... cit., p. 74.

O professor Nelson Nery Junior217, com quem concordamos, critica

essa conclusão, afirmando que ela disse menos do que deveria. Segundo ele, “o processo interpretativo é complexo. É fora de dúvida de que a função social tem magnitude constitucional e não apenas civilística”. A conclusão da jornada de direito civil, neste sentido, procurou limitar a função social do contrato e hipóteses não previstas pelo legislador. Não deveria tê-lo feito.

Estas críticas, contudo, não são uníssonas. Otávio Luiz Rodrigues Junior218 vê nestes enunciados uma forma de melhor interpretar o artigo 421

do Código Civil.

A tendência de restringir a função social dos contratos, que é por nós criticada, igualmente se faz sentir em alguns julgados. A título de ilustração, podemos citar o acórdão proferido em julgamento de Recurso Especial 691738/SC, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi219, que assimdecidiu:

“(...) Naturalmente, como toda a criação humana, o sistema é passível de falhas. (...) Assim também ocorrerá com o princípio da função social dos contratos. Para que essa evolução possa se verificar, todavia, é necessário que esse princípio seja, reiteradamente, submetido ao duro teste da realidade. Somente a prática demonstrará quais os limites em que o magistrado transitará em sua aplicação. Por isso, é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir essa inovação em nosso sistema jurídico e, especificamente, para cada caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se

há uma situação de fragilidade de uma das partes,

e se dado a tudo isso, a aplicação do princípio se justifica”.

217 NERY JUNIOR, Nelson. Contratos… cit., p. 421.

No documento A INTERVENÇÃO DO JUIZ NOS CONTRATOS (páginas 70-80)