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Da teoria contratual clássica ou liberal

No documento A INTERVENÇÃO DO JUIZ NOS CONTRATOS (páginas 49-61)

3 O DIREITO DOS CONTRATOS

3.1 Da teoria contratual clássica ou liberal

O pensamento liberal predominante nos séculos XVIII e XIX, a época posterior à Revolução Francesa, era contrário a qualquer intervenção do Estado na economia. O positivismo - como sistema fechado – ganhou força nesse período, juntamente com o surgimento das grandes codificações, sendo a primeira delas o Código de Napoleão121. Tratou-se da época do surgimento do Estado Moderno e do nascimento do Judiciário como órgão estatal, e do juiz – que devia julgar de acordo com as normas reconhecidas pelo Estado – como funcionário deste122.

120 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A função... cit., p. 107.

121 Conforme já mencionado no item 2.2 supra, a sistematização e codificação do Direito

não podem ser atribuídas às “intenções” da burguesia durante o período da Revolução Francesa. Trata-se de uma evolução complexa, datada da época dos comentaristas medievais, no primeiro fenômeno de recepção do Direito Romano.

122 Conforme entendimento consagrado pela escola da exegese (TOSTA, Jorge. Os

É desse contexto o resgate da teoria contratual clássica - já vigente ao tempo do Império Romano123, fundada no princípio básico que é o da autonomia da vontade, apenas limitado pela ordem pública e pela lei.

Conforme ensinamentos de Jean Carbonnier124:

“Há de advertirse en todo caso que la autonomia de la

voluntad no há implicado nunca un supuesto jurídico- legal de valor absoluto, pues inclusive el aserto filosofico vertido en 1804 solo se incorporó al Código Civil después de haberse atenuado restrictivamente”.

Não se trata, no entanto, de posição unânime. Artur Marques da Silva Filho125 assinala que a partir do século XVIII a autonomia absoluta da

123 Nos dizeres de Caio Mario da Silva Pereira: “O Direito Romano, resumindo talvez

milênios de evolução da idéia contratual, já enunciara a regra, como caráter absoluto e irrefragável, de um postulado da sua vida social e política, fundada no mais extremado individualismo. O seu Código Decenviral proclamava com toda a rigidez que se tornava em direito aquilo que a língua exprimisse: “Cum nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit ita ius esto”. Perdendo embora aquele sentido próprio do direito quiritário, a regra subsiste, não tão absoluta, mas verdadeira. O contrato obriga os contratantes. Lícito não lhes é arrependerem-se, lícito não é revogá-lo senão por consentimento mútuo, lícito não é ao juiz alterá-lo ainda que a pretexto de tornar as condições mais humanas para os contraentes (...) Foram as partes que acolheram os termos de sua vinculação, e assumiram todos os riscos. A elas não cabe reclamar, e ao juiz não é dado preocupar-se com a severidade das cláusulas aceitas, que não podem ser atacadas sob a invocação de princípio de eqüidade, salvo a intercorrência de causa adiante minudenciada”,... (PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 4ª ed. vol. III. São Paulo: Forense 1978, p. 15-16.). Deve-se mencionar, no entanto, que este entendimento não é pacífico. Otavio Luiz Rodrigues Junior aponta indícios de que o Direito Romano aceitava a alteração das cláusulas pactuadas desde que tivesse havido alteração na situação existente por ocasião da contratação (teoria da imprevisão). Conclui-se, pois, que esta posição, adotada por Caio Mario da Silva Pereira e também por outros doutrinadores, tais como Paulo Carneiro Maia, Arnoldo Medeiros da Fonseca e Eduardo Espínola, fundada na suposta pobreza da expressão “rebus sic stantibus” é insustentável, (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos -

Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2006, p. 35-36). E mais:

Cristiano Heineck Schmitt sustenta que a teoria da autonomia da vontade é proveniente do direito canônico, não do Romano (SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas

nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 40).

124 “Há de se advertir, em todo o caso, que a autonomia da vontade nunca consistiu em um

pressuposto jurídico-legal de valor absoluto, pois, inclusive, a premissa filosófica de 1804 somente foi incorporada ao Código Civil depois de haver se atenuado restritivamente”: (tradução livre) (CARBONNIER, Jean. Derecho Civil- Tomo II - El

derecho de las obligaciones y la situación contractual. Tradução da primeira edição

francesa com notas sobre o direito espanhol de RUIZ, Manuel M. Zorrilla. Barcelona: Casa Editorial, 1960, p. 127).

125 SILVA FILHO, Arthur Marques da. Revisão judicial dos contratos. In BITTAR, Carlos

Alberto (Coord.). Contornos atuais da teoria dos contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 123.

vontade passa a ser preponderante, sendo que tão somente em fins do século XIX é que surgiram teorias contra o individualismo exagerado. Seja de uma ou de outra forma, a verdade é que se existiam limites à autonomia da vontade, quando das codificações individualistas, estas limitações eram extremamente tímidas e raras.

Antonio Menezes Cordeiro126 chega a afirmar que os dois grandes

pilares do Código de Napoleão foram os seus artigos 544 e 1134/1; o primeiro relativo à propriedade, e o segundo que dispõe que: “as convenções legalmente formadas valem como lei para aqueles que a fizeram...”. Esse doutrinador explica, ainda, que essas duas regras apenas proclamaram com clareza o que já era bem conhecido no direito anterior.

Além da autonomia da vontade127, foram também identificados outros princípios tidos como corolários a este, a saber128:

a) a liberdade contratual – que englobaria tanto a liberdade de contratar, consistente na faculdade de celebrar determinado contrato, como também na liberdade contratual em sentido estrito, ou seja, a liberdade de se

126 CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Introdução... cit., p.LXXXIX.

127 Sobre a utilização da denominação autonomia da vontade e autonomia privada, convém

ressalvar que alguns doutrinadores preferem diferenciá-las, conforme se demonstrará mais adiante, no item 3.3.1.1. Entretanto, esta diferenciação não é uníssona, sendo que as expressões são, muitas vezes, utilizadas como sinônimas.

128 Os “princípios” acima mencionados são, na realidade, características dos contratos

segundo a teoria contratual clássica. A adoção da denominação de todas ou algumas dessas características como princípios é divergente entre os doutrinadores. Apenas para exemplificar (sem criar polêmicas a respeito do assunto, que não constitui o objeto principal do presente trabalho): Segundo Fernando Noronha, “os dois princípios verdadeiramente essenciais, nata concepção, eram os da liberdade contratual e da viculatividade do acordado” (NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus

princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé e justiça contratual) São Paulo:

Saraiva, 1994, p. 43). Para Eduardo Messias Gonçalves de Lyra Junior, a teoria da autonomia da vontade conduz a três princípios: a liberdade contratual, a força obrigatória do contrato e o efeito relativo do contrato (LYRA JUNIOR, Eduardo Messias Gonçalves. Os princípios do direito contratual. Revista de Direito Privado, v. 12. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.138). Ademais, seguindo a conceituação de Nelson Nery Junior exposta mais adiante no sentido de que as normas positivadas não constituem em princípios, o consensualismo não poderia ser visto como tal, na medida em que há norma expressa no sentido de que os atos jurídicos serão válidos se atenderam à forma prevista ou não defesa em lei.

estabelecer o conteúdo do contrato129. Nas palavras de Fernando

Noronha130, a liberdade contratual

“seria um somatório das várias liberdades”: a

liberdade de contratar ou de deixar de contratar, a de eleger as pessoas com quem se contratar, a de determinar o contrato a ser celebrado, típico ou atípico, a de negociar o seu conteúdo e, por último, a de adotar a forma, verbal ou escrita, tida por mais conveniente e o da obrigatoriedade ou vinculatividade do contrato”.

O ensinamento de Pedro Luiz Nigro Kurbhi131 é também neste sentido. Esse autor salienta ainda, que com a massificação da sociedade, não apenas a liberdade contratual foi restringida, como também a liberdade de contratar, em alguns casos, como, por exemplo, a que se refere aos serviços públicos;

b) a obrigatoriedade do contrato, ou seja, a vinculação das partes ao estipulado. Deste princípio surgiu a máxima “pacta sunt servanda”, ou seja, o contrato faz lei entre as partes. Conforme ensinamentos de Otávio Luiz Rodrigues Junior132, a autonomia da vontade tem como alvo o momento da estipulação. O princípio da obrigatoriedade consiste: i) no dever recíproco de observância do contrato pelas partes e sucessores; ii) na intangibilidade e irretratabilidade do acordado, salvo mediante comum acordo e a impossibilidade de intervenção judicial, e; iii) na impossibilidade de o juiz rever o contrato, nos casos excepcionais de

129 Paulo Nalin ensina que liberdade de contratar, qualquer pessoa tem, desde que seja

capaz. A liberdade contratual é a liberdade para definir as cláusulas do contrato (NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro código civil brasileiro. In NERY JUNIOR, Nelson; NERY Rosa Maria de Andrade (Coord.). Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 12, 2002, p. 57.).

130 NORONHA, Fernando. O direito... cit., p. 43.

131 KURBHI, Pedro Luiz Nigri. A intervenção... cit., p. 126. 132 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...cit., p. 22.

nulidade, resolução ou rescisão133, hipóteses em que lhe caberia tão

somente declarar tais fatos.

c) o efeito relativo dos contratos, segundo o qual os contratos firmados entre as partes não podem prejudicar ou beneficiar terceiros, e;

d) o consensualismo, que consiste na idéia de que a vinculação das partes ao acordado dispensa qualquer formalidade.

É certo, contudo, que a teoria contratual clássica, nos moldes acima referidos, foi logo influenciada pela necessidade cada vez mais crescente da interferência do Estado, tendo, conseqüentemente, passado por algumas adaptações.

O período pós-guerra culminou na crise do pensamento liberal e no nascimento do estado social. Ademais, o desenvolvimento da sociedade, o aumento populacional e a massificação das relações sociais fizeram com que, paulatinamente, se percebesse a necessidade cada vez maior de relativização da autonomia da vontade, por meio da ampliação do conceito de ordem pública134.

A intervenção do Estado – seja por meio do legislativo, seja por meio do judiciário – era uma necessidade inquestionável, principalmente nos casos que envolviam partes em desigualdade de condições ou contratos não negociados.

Por meio do legislativo, o Estado passou a intervir criando normas para determinados tipos de contratos, como é o caso dos contratos de locação e dos contratos de trabalho, tendência essa denominada de dirigismo estatal (ou dirigismo contratual) tendo resultado na identificação de

133 Assim entendida como: 1) Extinção normal: execução do acordado; 2) Extinção anormal:

prestações não podem ou não devem ser satisfeitas por força de: a) fatos anteriores ou concomitantes a sua conclusão: nulidade ou anulabilidade: ausência de forma, agente capaz, objeto lícito ou vícios de consentimento e sociais, b) fatos posteriores: b.1) resolução - por inadimplemento. Se dá por declaração judicial e é inerente aos contratos bilaterais e comutativos. Pode ser culposa. É facultado à parte pedir a execução voluntária, b.2) Inexecução involuntária: caso fortuito ou força maior - sem responsabilidades, salvo nos casos de teoria do risco. Teorias: adimplemento defeituoso e inadimplemento substancial, c) resilição: distrato (bilateral) ou denúncia (unilateral).

134 Neste sentido, WALD, Arnoldo. Um direito para a nova economia: a evolução dos

contratos e o código civil. In WALD, Arnaldo; et al. Direito e internet. São Paulo: Revista

um novo princípio básico dos contratos, qual seja, o princípio da supremacia da ordem pública. Assim, o princípio da autonomia da vontade acabou por ser parcialmente afetado.

Nas palavras de Caio Mario da Silva Pereira135:

“Esse princípio (da autonomia da vontade) não é

absoluto e nem reflete a realidade social na sua plenitude. Por isso, dois aspectos da sua incidência devem ser encarados seriamente: um diz respeito às restrições trazidas pela sobrevalência da ordem pública e o outro vai dar no dirigismo contratual, que é a intervenção do Estado na economia do contrato”.

Os ensinamentos de Maria Helena Diniz136 tampouco divergem. Segundo esta doutrinadora, a autonomia da vontade, entendida pelo reconhecimento de que a capacidade do indivíduo lhe confere a faculdade de agir conforme a sua vontade está entre os princípios basilares de todo o ordenamento, juntamente com o da solidariedade social, que objetiva conciliar os interesses individuais e coletivos. Esta doutrinadora cita, também, as inúmeras normas que surgiram após 1916, derrogando em parte o “pacta sunt servanda”.

135 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições... cit., p. 22-23. 136 DINIZ, Maria Helena. Curso… cit., p. 45.

Sob essa linha de pensamento, muitos juristas137 passaram a

distinguir os princípios da autonomia privada e da autonomia da vontade: a autonomia privada seria a faculdade de o particular manifestar a sua vontade, desde que nos limites da lei. Teria, portanto, uma característica objetiva. A autono mia da vontade, por sua vez, mais subjetiva, consistiria na possibilidade de contratar a vontade, livre de vícios.

A partir desta distinção e com base nas considerações acima, pode- se concluir que com o declínio do Estado Liberal, o princípio basilar do direito dos contratos não seria o da autonomia da vontade, mas sim o da autonomia privada, embora em um primeiro momento, o princípio da autonomia privada tivesse características muito mais amplas do que tem atualmente, conforme se demonstrará a seguir.

Novamente nos reportando aos ensinamentos de Otavio Luiz Rodrigues Junior138, a autonomia privada, na sua função mais ortodoxa, seria fundada nos seguintes princípios: a) a supremacia do interesse e ordem públicos sobre os particulares; b) a colocação do negócio jurídico como espécie normativa, porém, em caráter subalterno (ao contrário do que

137 De acordo com Luigi Ferri “Igualmente criticable me parece la opinión que prefiere

hablar de autonomia de la voluntad mejor que de autonomia privada. Las expresiones podrián parecer a primera vista sinônimas, pero no lo son. Quienes hablan de autonomia de la voluntad em realidad desconocen el problema mismo de la autonomia privada (problema que visto desde el ângulo subjetivo, se indentifica, como veremos em seguida, com la busqueda del fundamento de poder reconocido a los particulares de crear normas jurídicas) y dan relieve a la voluntad real o psicológica de los sujetos que, según esta oponion, es la raiz o la causa de los efectos jurídicos, en oposicion a quienes, por ele contrario, vem más bien en la declaracion o em la manifestacion de voluntad, como hecho objetivo, o em la ley, la fuente de los efectos jurídicos” (FERRI, Luigi. La autonomia privada. MENDIZABÁ, Luiz Sancho (Trad.). Madri: Editorial Revista de Derecho Madrid, 1969, p. 5-6.). Igualmente criticável parece-me a opinião dos que preferem a expressão autonomia da vontade à autonomia privada. As expressões não são sinônimas, embora aparentem ser, a primeira vista. Aqueles que falam em autonomia da vontade desconhecem o problema da autonomia privada (problema que visto do ângulo subjetivo, se identifica, como veremos, com a busca do fundamento do poder conferido aos particulares de criar normas jurídicas) e dão relevo à vontade real ou psicológica dos sujeitos que, segundo esta opinião, é a raiz ou a causa dos efeitos jurídicos, em oposição àqueles que, pelo contrário, vêem melhor a declaração ou a manifestação da vontade como feito objetivo, e na lei, a fonte dos efeitos jurídicos – tradução livre). Fernando Noronha (NORONHA, Fernando. O direito... cit., p.111-112) e Paulo Velten apontam no mesmo sentido. Este posicionamento, no entanto, não é pacífico (VELTEN, Paulo. Função... cit., p.416.), já tratando do Direito dos Contratos no Novo Código Civil e, em especial, de sua função social, insiste em apontar a autonomia da vontade como um de seus princípios basilares.

ocorria com a autonomia da vontade que via o negócio jurídico como lei privada); c) a limitação da autonomia privada pela lei, e; d) a autonomia privada vista como um poder outorgado pelo Estado aos indivíduos.

Noberto Bobbio, em sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”139, datada de 1982, já falava da autonomia privada, mesmo reconhecendo que os limites impostos pela lei à vontade de contratar eram, àquela época, bastante reduzidos. Ao tratar da hierarquia existente no ordenamento jurídico e dos limites formais e materiais estabelecidos entre as diversas normas, este jurista afirma que na passagem da lei ordinária para o negócio jurídico, ou seja, para a esfera da autonomia privada, predominavam os limites formais sobre os materiais. Isto é: no tocante à autonomia privada o legislador preocupa-se muito mais em regular a forma do que o conteúdo dos contratos. Apenas em algumas situações excepcionais (como por exemplo ao tratar do testamento) é que o legislador se preocupou com o conteúdo.

Com isso se conclui que o princípio do consensualismo foi também de certo modo relativizado. Como forma de ordenar certas regras de segurança, alguns contratos passaram a exigir determinadas formalidades para a sua concretização (como é o caso da venda e compra de imóveis que somente pode ser formalizada mediante escritura pública ou do próprio testamento). São os limites formais, mencionados por Bobbio.

O princípio da obrigatoriedade do contrato sofreu, igualmente, algumas restrições em decorrência de pressões da realidade econômica e social, pressões essas que resultaram na aceitação da teoria da imprevisão

e da resolução por onerosidade excessiva140.

Mais uma vez, reportando-nos ao ensinamento de Caio Mario da Silva Pereira141, percebemos que a referida teoria da imprevisão consistiu em uma

evolução da cláusula rebus sic stantibus, adotada na Idade Média142 e que, em razão do individualismo exacerbado dos séculos XVIII e XIX, perdeu prestígio, tendo sido resgatada após a Primeira Grande Guerra, que “trouxe um completo desequilíbrio para todos os contratos a longo prazo”, embora com grande resistência, seja da jurisprudência, seja dos doutrinadores.

Otavio Luiz Rodrigues Junior143 cita um julgado de 30 de março de 1916 (Compagnie Genereale d’Eclariage de Bordeaux X Ville de Bordeaux) como marco do renascimento da cláusula “rebus sic stantibus” e menciona a Lei Faillot, uma lei emergencial e transitória, editada durante a 1ª Guerra, que previa a possibilidade de rescisão unilateral do contrato por qualquer

140 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições... cit., p. 137-140, “Passada a fase do

esplendor individualista, que foi o século XIX, convenceu-se o jurista de que a economia do contrato não pode ser confiada ao puro jogo das competições particulares. Deixando de lado outros aspectos, e encarando o negócio contratual sob o de sua execução, verifica-se que, vinculadas as partes aos termos da avença, são muitas vezes levadas, pela força incoercível das circunstâncias externas, a situações de extrema injustiça, conduzindo o rigoroso cumprimento do obrigado ao enriquecimento de um e ao sacrifício de outro. Todo o contrato é previsão, e em todo o contrato há margem de oscilação do ganho e da perda, em termos que permitem o lucro ou o prejuízo. Ao direito não podem afetar essas vicissitudes, desde que constritas na margem do lícito. Mas, quando é ultrapassado um grau de razoabilidade, que o jogo da concorrência livre tolera, e é atingido o plano do desequilíbrio, não pode omitir-se o homem do direito, e deixar que em nome da ordem jurídica e por amor ao princípio da obrigatoriedade do contrato, um contratante leve o outro à ruína completa e extraia para si o máximo de benefício. Sentindo que este desequilíbrio na economia do contrato afeta o próprio conteúdo de juridicidade, entendeu que não deveria permitir a execução rija do tipo ajuste, quando a força das circunstâncias ambiente s viesse a criar um estado contrário ao princípio de justiça no contrato. E acordou de seu sono milenar um velho instituto que a desenvoltura individualista havia relegado ao abandono, elaborando então a tese da resolução do contrato por onerosidade excessiva da prestação”.

141 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições... cit., p. 137-140.

142 Conforme mencionado anteriormente, Otavio Luiz Rodrigues Junior aponta indícios da

existência desta cláusula no Direito Romano (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz.

Revisão... cit., p. 33.). Ademais, Carlos Alberto Bittar Filho defendem que a revisão do

contrato teve suas raízes no Código de Hamurabi: “Se alguém tem débitos a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta d’água não cresce o trigo no campo, ele não deverá, neste ano, dar o trigo ao credor, deverá modificar a sua tábua de contrato e não pagar juros por este ano” (BITTAR, Carlos Alberto. A teoria da imprevisão: evolução e contornos atuais. In BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Contornos

atuais da teoria dos contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 95.).

uma das partes ou a sua suspensão pelo juiz, como o primeiro marco normativo francês (a Itália, antes disto, já havia expedido o Decreto Real nº 739/15) a possibilitar tal rescisão.

No Brasil, o primeiro julgado a adotar essa teoria144 - que até então não possuía nenhum respaldo legal e era criticada por parte substancial da doutrina - data de 1930, quando o magistrado Nelson Hungria reconheceu e admitiu a intervenção no contrato por motivo superveniente em caso no qual se discutia a pretensão de um promissário comprador a obrigar um

No documento A INTERVENÇÃO DO JUIZ NOS CONTRATOS (páginas 49-61)