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Da dicotomia entre Publicismo e Privatismo e a necessidade de adotar-se um

1. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

1.4. FATOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

1.5.1. Da dicotomia entre Publicismo e Privatismo e a necessidade de adotar-se um

Tentando superar a dicotomia entre publicismo e privatismo, Antonio do Passo Cabral desenvolveu tese acerca da possibilidade de convivência das convenções processuais através de um estudo das vertentes publicista e privatista158. Em sua obra, o autor realiza

análise histórica demonstrando como o publicismo se espalhou por todos os institutos processuais, sendo dele extraídas conclusões e consequências normativas que reforçam suas premissas, segundo as quais seria impossível a ocorrência das convenções processuais159.

Dentro desta acepção publicista do processo, merece destaque: a) a ideia de que o Estado almejaria implantar, pelo processo, escopos públicos que se sobrepõem aos interesses privados das partes e que levariam à aplicação imperativa da regra legislada, considerada a lei a única fonte da norma processual160; b) a já citada concepção de que as normas processuais

seriam todas de ordem pública, e, portanto, cogentes, estabelecidas no interesse público e inderrogáveis pela vontade das partes, o que é fundado na ideia subjacente de que a justiça seria apenas aquela do Estado em razão da distância que o julgador deve ter em relação aos interesses em disputa161; e c) a rejeição da ideia do processo como coisa das partes,

inflacionando os poderes oficiosos do juiz, inclusive e sobretudo na condução do procedimento162.

Esse cenário, como se vê, reflete ideia fortemente presente na metodologia que explica o processo enquanto instrumento de realização da atividade jurisdicional, sendo amplamente restritiva a disposição de poderes processuais pelo juiz, que é o agente estatal responsável pela condução do processo. A jurisdição gera estado de sujeição das partes, impondo-se independentemente de sua vontade, posto forma de poder que envolve a capacidade de decidir e impor decisões. A doutrina em questão assume uma perspectiva puramente técnica do direito processual civil, ressaltando os escopos sociais, políticos e

158 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

docência. São Paulo: USP, 2015.

159 O autor critica esse pensamento, o qual afirma ter gerado um hiperpublicismo, levado ao limite do exagero

(CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2015, p. 109).

160 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

docência. São Paulo: USP, 2015, 100.

161 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

docência. São Paulo: USP, 2015, p. 105.

162 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

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jurídicos que busca alcançar, respectivamente a paz social, a afirmação da autoridade estatal e liberdade dos cidadãos, e a concretização da vontade do direito. Tal pensamento fora de grande influência no direito processual nacional na segunda metade do século XX, principalmente a partir dos estudos de Liebman, desenvolvidos pelo próprio Candido Dinamarco Rangel e outros163.

Cabral relata uma virada na experiência europeia no fim do séc. XX, quando, nos tribunais franceses, os acordos processuais encontraram terreno fértil para prosperar. O autor cita uma série de protocolos firmados entre tribunais e órgãos representativos de classe (principalmente de advogados), os quais possuem natureza muito diversa, tratando desde aspectos da praxe processual, até o terreno das normas efetivamente de natureza processual164.

Assim seriam os chamados contrat de procédure individuais, firmados entre as partes em processo singular e utilizados como instrumento flexível e funcionalmente direcionados à gestão eficaz do processo165. Do mesmo modo, revelou a doutrina italiana, na metade do

século XX, a prática dos protocolli de procedura, instrumentos assinados entre o presidente de uma corte e o presidente de ordem de classe dos advogados, tendo como objeto questões relativas ao tratamento entre os profissionais e também o conteúdo de atos processuais, além de inovarem em deveres processuais até mesmo no campo do direito material166. O autor

embasa a possibilidade das convenções processuais pelo princípio dispositivo, segundo o qual cabe aos litigantes iniciar o processo, dando conformidade ao objeto do processo e limitando a própria cognição jurisdicional167.

163 Assim, DINAMARCO, Cândido Rangel. A A instrumentalidade do processo. 15. ed., rev. e atual. São Paulo:

Malheiros, 2013; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 6. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012; SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. A atuação do juiz no direito processual civil moderno. São Paulo: Atlas, 2008; PUOLI, José Carlos Baptista. Os poderes do juiz e as reformas do processo civil. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001. Registre-se que há autores, como Flávio Luiz Yarshell, que admitem os negócios jurídicos processuais permanecendo na perspectiva do processo como instrumento a serviço do Estado para atingir seus objetivos, posto equiparar o juiz estatal ao árbitro e não enxergar impedimentos para “que os sujeitos parciais declarem vontade dirigida à produção de efeitos jurídicos por ele queridos” (YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In. CABRAL, Antônio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique. (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 64 e 65)

164 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

docência. São Paulo: USP, 2015, p. 112.

165 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

docência. São Paulo: USP, 2015, p. 118.

166 CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre docência

na USP. São Paulo, 2015, p. 120. É possível ver, ainda, que as convenções processuais são aceitas em países como nos Estados Unidos da América (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2015, p. 123).

167 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

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Pedro Henrique Nogueira também faz análise histórica do instituto do negócio jurídico processual, desde a doutrina alemã no final do século XIX, especialmente na obra de Adolf Wach, como também na doutrina italiana de Chiovenda168.

Érico Andrade, por sua vez, trata da contextualização do processo a partir das ideias de atuação eficiente e econômica na busca do interesse público, que fez surgir, no início do Século XXI, no direito inglês e no francês (inserindo-se no italiano) o case management, forma de gerenciamento do processo pelo juiz através da flexibilização procedimental, seguida da possibilidade de “contratualização” procedimental e da “calendarização” do processo169.

A virada histórica do instrumentalismo para o chamado processo cooperativo, tendo como marco teórico o formalismo-valorativo, é fundamental para que se compreenda o atual ambiente do processo civil brasileiro. A estrutura do processo deve reagir ao tipo de organização política adotada na sociedade, bem como à teoria do direito que alimenta as soluções jurídicas. O processo encerra um formalismo cuja estruturação responde a valores, notadamente, aos valores consagrados na Constituição Federal. Dentre esses valores, a democracia participativa sugere a caracterização do processo como um espaço privilegiado de exercício direto de poder pelo povo170. Há uma submissão do próprio Estado ao Direito e ao

enaltecimento da participação social em sua gestão, caracterizando o Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana e com o objetivo de construir uma sociedade justa, livre e solidária171.

O protagonismo do magistrado, a falta de diálogo, a redução da atividade jurisdicional a poucos atos, são características de um sistema processual que subtrai a importância do próprio processo no Estado Democrático de Direito, pois ele não é visto como efetivo, ou seja, como forma democrática de participação de todos os jurisdicionados na concretização dos direitos fundamentais172. Uma das mais marcantes tendências do direito

público atual é a penetração da consensualidade, em contraponto aos atos de autoridade,

168 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Sobre os acordos de procedimento no Processo Civil Brasileiro. In. CABRAL,

Antônio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique. (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 81 e 82.

169 ANDRADE, Érico. As novas perspectivas do gerenciamento e da “contratualização” do processo. Revista de

Processo. São Paulo: RT, n. 193, p. 167-200, mar./ 2011, p. 187 e 188, p. 167.

170 MITIDIERO, Daniel. Bases para Construção de um Processo Civil. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRS,

2007, p. 31.

171 MITIDIERO, Daniel. Bases para Construção de um Processo Civil. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRS,

2007, p. 53.

172 NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: Horizontes para a democratização processual

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permitindo-se a participação do cidadão nos atos administrativos, tornando a Administração mais democrática, tendência essa que se reflete no processo173.

O modelo de processo cooperativo sugere, assim, que a posição do juiz seja isonômica na condução do processo e assimétrica na decisão das questões processuais e materiais da causa174. O modelo cooperativo de processo leva a uma diferente estruturação do

formalismo processual. Renovam-se os estudos de lógica jurídica, relativizando-se o sentido problemático do direito e reabilitando o seu caráter argumentativo175. Há uma nova

distribuição das posições jurídicas das partes e do juízo no processo e reforço do direito fundamental ao contraditório como possibilidade também de influenciar o juízo.

Pode-se dizer que, hoje, o Estado Constitucional brasileiro possui as premissas de um modelo de processo cooperativo, ressaltado pelos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, do contraditório e da igualdade, demandando o efetivo envolvimento dos atores sociais no processo, como forma democrática de participação na elaboração normativa. Nesse sentido, Hermes Zaneti Jr. defende que os espaços democráticos devam ser plurais, havendo permissivo constitucional que torne o Poder Judiciário, no Brasil, território privilegiado da democracia participativa176. No processo, reflete-se de maneira acentuada uma

releitura nos poderes do juiz, que ainda é o responsável pela condução do processo, porém

173 ANDRADE, Érico. As novas perspectivas do gerenciamento e da “contratualização” do processo. Revista de

Processo. São Paulo: RT, n. 193, p. 167-200, mar./ 2011, p. 187 e 188, p. 187.

174 “A isonomia está em que, embora dirija processual e materialmente o processo, agindo ativamente, fá-lo de

maneira dialogal, colhendo a impressão das partes a respeito dos eventuais rumos a serem tomados no processo, possibilitando que essas dele participem, influenciando-o a espeito de suas possíveis decisões (de modo que o iudicium acabe sendo efetivamente um ato trium personarum, como se entendeu ao longo de toda praxe do direito comum). Toda condução do processo dá-se com a observância, inclusive com relação ao próprio juiz, do contraditório” (MITIDIERO, Daniel. Bases para Construção de um Processo Civil. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRS, 2007, p. 53 e 54).

175 “A constitucionalização do direito, a consolidação da ideia de que princípio é norma, a adoção da técnica

legislativa de uso de termos indeterminados e de cláusulas gerais contribuíram para importância da linguagem e da argumentação na metodologia do direito, consolidando a necessidade de se aumentar o debate para a construção da regra adequada à solução da controvérsia” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 45)

176 ZANETI JR., Hermes. Democracia e Judiciário na (re)politização do direito: notas para o papel dos juízes e

do Judiciário em um modelo deliberativo-procedimental de democracia (parte I). In: MEDINA, José Miguel Garcia el al. (coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais. 2. tir. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2008, p. 201. O autor ressalta que a democracia participativa no processo se dá tanto na admissibilidade da discussão, como no mérito discutido, havendo, aí, uma adequada distribuição dos poderes, deveres, ônus e faculdades das partes e do juiz.

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deve fazê-lo de maneira isonômica com as partes, prestando o dever de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio para com os litigantes177.

O próprio Código de Processo Civil de 2015 adota um modelo cooperativo de processo, com valorização da vontade das partes e equilíbrio nas funções dos sujeitos processuais178. Prevê o diploma legislativo – em seu Livro inaugural, Capítulo Único,

dedicado às normas fundamentais do processo civil (artigos 1º ao 12) –, uma série de direitos fundamentais e princípios norteadores do processo, muitos dos quais já presentes na Carta Magna.

Esses princípios reforçam o caráter cooperativo do processo, principalmente através da norma extraída no artigo 6º, que assim estabelece: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” 179. O sistema processual adota um modelo cooperativo e é nesse modelo que

inegavelmente se insere a figura dos negócios jurídicos processuais180.

Dessa forma, CPC de 2015 estabelece, em seu artigo 190, uma cláusula geral convencional, permitindo-se que no processo (ou fora dele) possam ser celebrados negócios jurídicos processuais atípicos, para além daqueles expressamente previstos na legislação. Essa disposição normativa supera, inclusive, a discussão acerca de o art. 158 do CPC de 1973 prever ou não uma cláusula geral convencional181. Existem, portanto, negócios jurídicos

processuais tipicamente previstos na legislação processual, tanto no atual Código de Processo

177 Fala-se, até, no surgimento do princípio da cooperação. Nesse sentido, CUNHA, Leonardo Carneiro da.

Negócios jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 45.

178 Nesse sentido, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro.

In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 49.

179 Como observou Sérgio Torres Teixeira, em entrevista concedida à TV do Tribunal Superior do Trabalho, as

mudanças propostas pelo novo Código de Processo Civil de 2015 partem da premissa de um alto padrão ético, o qual não reflete a atual realidade dos foros brasileiros. Para ele, as partes devem presar pela vitória no processo, mas pela luta: “ganhar lutando e não brigando”. Esse é um dos grandes desafios da aplicação da sistemática do novo Código de Processo Civil para o século XXI.

180 “Já existem, na legislação positiva brasileira, exemplos suficientes de negócios processuais típicos que são

admissíveis, válidos e que vinculam as partes e o juiz em torno de suas disposições. Esses tantos exemplos, mesmo em ramos do direito processual onde existem grandes inserções publicistas, mostram que a natureza pública do processo, e seus objetivos dentro do quadro das funções do Estado, não são infensos a previsões normativas que autorizem as partes a modificar os atos do procedimento com sua vontade negocial” (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2015, p. 165).

181 A respeito da discussão, vide PASSOS, J. J. Calmon de. Esboço de uma teoria de nulidades aplicada às

nulidades processuais. Forense: Rio de Janeiro, 2005, p. 69. Entendendo que há, ali, uma cláusula geral para os negócios jurídicos processuais atípicos, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 44.

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Civil – como são os casos da eleição negocial e foro (art. 63), da escolha consensual de mediador, conciliador ou câmara privada de mediação ou conciliação (art. 168), renúncia de prazo (art. 225), adiamento negociado da audiência (art. 362, inciso I), dentre tantos outros182

– como também na legislação esparsa, a exemplo do no inciso IV do art. 58 da Lei 8245/91 (Lei de Locações de Imóveis Urbanos), que permite a negociação da forma de citação, intimação ou notificação no processo183.

O negócio jurídico, de modo geral, é inegavelmente tido como uma fonte normativa, permitida por lei. Não se pode negar a mesma característica ao negócio jurídico processual, posto o expresso permissivo legal sobre o autorregramento das partes.

Assente a existência dos negócios jurídicos processuais, necessário destacar um elemento característico do negócio que o distingue, inclusive, dos atos jurídicos stricto sensu: o autorregramento da vontade, tema que será tratado no tópico seguinte.