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O juiz e o negócio jurídico processual

1. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

1.4. FATOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

1.5.4. O juiz e o negócio jurídico processual

Até o presente momento, tratou-se de sujeitos dos negócios jurídicos processuais de maneira indistinta, sem qualquer menção expressa às partes processuais, a terceiros ou ao juiz. Aceitando-se os negócios jurídicos processuais, é inconteste a possibilidade de que as partes do processo realizem negócios. Também a participação de terceiros se entende como

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possível, até mesmo porque se admitem negócios antes do processo ou mesmo fora do procedimento. A participação do juiz, contudo, é questão mais sensível.

Pedro Henrique Nogueira, por exemplo, enxerga a possibilidade de negócios processuais judicias, chegando inclusive, a tratar a decisão enquanto negócio processual226.

Leonardo Carneiro da Cunha não enfrenta diretamente a questão, porém defende que o juiz possa ser parte de negócio jurídico processual, afirmando, contudo, que sua participação nem sempre seja necessária227.

Jaldemiro Ataíde Júnior observa que muitos negócios jurídicos processuais interferirão na esfera jurídica do juiz, exigindo sua participação, como também outros negócios exigirão expressamente sua participação como condição de eficácia, ou seja, através de ato integrativo228.

Para Antônio do Passo Cabral, por outro lado, o juiz somente atua nas convenções através de duas funções: no incentivo e fomento ao uso de instrumentos autocompositivos, através dos deveres de diálogo, esclarecimento, consulta e prevenção; e no controle e fiscalização, sendo esta segunda a principal tarefa do magistrado no que tange aos negócios processuais, pois deve analisar sua validade, controlando a extensão em que a vontade das partes pode modificar o procedimento estatal229.

Em sentido próximo, Flávio Luiz Yarshell acredita que o juiz participe, de maneira limitada, apenas do calendário processual, que considera negócio jurídico, não sendo, contudo, propriamente parte230.

Para Dinamarco, que sequer admite os negócios jurídicos processuais, os atos do juiz não teriam o efeito da livre autorregulação, já que ele não dispõe para si, nem pratica atos

226 NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: Juspodivm, 2016.

227 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL,

Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 57.

228 ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Negócios jurídicos materiais e processuais. Revista de Processo.

São Paulo: RT, v. 40, n. 244, p. 393–423, jun., 2015, p. 412.

229 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre

docência. São Paulo: USP, 2015, p. 242.

230 “Diferentemente do árbitro, o juiz estatal tem sob sua presidência outros processos (frequentemente em

número significativo) e não parece desejável ou sequer factível que o juízo estabeleça regras diferenciadas que, inclusive, poderiam comprometer o respeito à ordem cronológica que a própria lei cuidou de estabelecer (art. 12)”. YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In. CABRAL, Antônio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique. (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 79.

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no processo com fundamento na autonomia da vontade, mas no poder estatal de que é investido231.

Também é possível advogar por uma interpretação restritiva do art. 190 do CPC, afastando a possibilidade de o juiz participar de determinada convenção, uma vez que o dispositivo estabelece a realização de negócios pelas “partes” do processo.

Entende-se, contudo, pela possibilidade de participação do juiz em determinados negócios jurídicos processuais.

É inegável que o tema das convenções processuais esteja intimamente ligado à discussão sobre a divisão do trabalho entre os sujeitos do processo e sobre os poderes do juiz. Ademais, a equação da extensão e amplitude dos poderes do juiz no processo é questão puramente de política legislativa232. Estabelecida a metodologia atual do processo civil

brasileiro no modelo cooperativo, a partir da leitura do formalismo-valorativo, conclui-se que os poderes do juiz não são somente de conduzir o processo em prol das funções estatais.

O autorregramento da vontade é elemento integrante do núcleo do suporte fático do negócio jurídico. É preciso que a vontade se configure como exercício do poder do autorregramento da vontade, possibilitando a escolha pelo agente da categoria jurídica ou das situações jurídicas que configurarão a sua eficácia233. Também, o poder de autorregramento

da vontade não é exclusivamente privado, embora no direito civil, em particular, se manifeste em maior intensidade234.

O juiz, como todos os outros participantes do processo, é sujeito de direito. Possui poderes e deveres; atua com responsabilidade; é capaz de praticar atos, de modo geral, lícitos ou ilícitos. Tem, assim, a faculdade de disposição e escolha de determinadas categorias e

231 Dinamarco considera que os efeitos dos negócios jurídicos sejam exata e precisamente aqueles que as partes

querem, o que não acontece no processo, no qual os efeitos estão todos estabelecidos em lei (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. 2. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 484).

232 Nesse sentido, AMENDOEIRA JR., Sidnei. Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização racional dos

poderes do juiz como forma de obtenção da tutela jurisdicional efetiva, justa e tempestiva. São Paulo: Atlas, 2006, para quem os limites estão diretamente relacionados com os princípios constitucionais relativos ao direito processual civil, especialmente os princípios da igualdade, do contraditório, da imparcialidade, dispositivo, da legalidade, da inércia e da demanda. Também, Hermes Zaneti Jr., para quem o desempenho dos poderes do juiz descreve a opção democrática efetuada pelo próprio Estado (ZANETI JR., Hermes. Democracia e Judiciário na (re)politização do direito: notas para o papel dos juízes e do Judiciário em um modelo deliberativo- procedimental de democracia (parte I). In: MEDINA, José Miguel Garcia el al. (coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais. 2. tir. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2008, p. 211).

233NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 179.

234Nesse sentido, NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p.

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determinadas situações jurídicas processuais, vontade que se exerce pela eleição da conduta dentre aquelas que lhe são juridicamente válidas.

Não se pode restringir a atuação do juiz sob o argumento de que exerce função pública, enquanto a celebração de negócio demandaria ato privado, portanto incompatível com o seu exercício. O negócio jurídico processual é ato de autonomia privada no sentido de que as partes celebrantes possuem liberdade para impor condições e termos para a produção de efeitos, bem como podem escolher (ou criar, se assim admitido pelo sistema) os efeitos próprios decorrentes do ato, dentre aqueles permitidos pelo ordenamento jurídico235.

O juiz também regra sua vontade, mas de maneira bem diversa do que fazem os particulares quando estão submetidos ao processo, desde que o juiz esteja em posição de exercício da jurisdição, bem como submetido ao princípio da legalidade, da motivação, da fundamentação de suas decisões, da imparcialidade, etc. Seus poderes devem ser conjugados com as prerrogativas das partes, com equilíbrio, equivalência e coordenação, não numa ultrapassada relação de hierarquia e supremacia236.

Como assevera Pedro Henrique Nogueira, é outorgada pelo sistema ao juiz a faculdade de escolha de determinadas categorias e determinadas situações jurídicas processuais. Existe um dever imposto à autoridade em praticar o ato que, contudo, não integra a estrutura do ato jurídico. Completa o autor:

“No direito privado, também se encontram negócios jurídicos vinculados a um prévio dever e nem por isso a respectiva natureza negocial fica afastada (nos pré-contratos de compra e venda, v.g., o contratante é obrigado a celebrar um contrato e nem por isso a celebração do contrato principal, que adimple o dever jurídico anterior, advindo do pré-contrato, deixa de ser um negócio jurídico).237.

235A autonomia privada, por sua vez, é, em regra, identificada como autordeterminação, autorregulação,

autovinculação e, até mesmo, autarquia, sendo definida como poder criador ou fonte de direito ou, pelo menos, de produção de efeitos que incidam sobre situações jurídicas” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil Brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios Processuais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 29). Ressalte-se, apenas, que não se entende a autonomia privada como fonte de efeitos, melhor seria dizer “fonte reguladora de efeitos”, uma vez que os efeitos jurídicos decorrem todos dos fatos jurídicos.

236CABRAL, Antonio do Passo. Convenções Processuais: entre publicismo e privatismo. Tese de livre docência.

São Paulo: USP, 2015, p. 136. O aumento dos poderes de gerenciamento do juiz, por sua vez, não se confunde com o aumento dos seus poderes instrutórios, mas sim de direção formal do processo, com vistas à economia e à melhoria da gestão processual. Assim, ANDRADE, Érico. As novas perspectivas do gerenciamento e da “contratualização” do processo. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 193, p. 167-200, mar./ 2011, p. 187 e 188, p. 179 e 180.

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O autor defende que alguns atos processuais praticados pelo juiz constituam, além do exercício do poder jurisdicional, em poder de autorregramento da vontade238. Trazendo o

exemplo da cláusula geral de meios executórios, afirma:

“Ainda que não se queira, por uma questão semântica, falar em discricionariedade judicial em tais situações, não se pode ignorar que o juiz verdadeiramente constitui e traça, unilateralmente, os contornos das situações jurídicas processuais resultantes de seu provimento, obedecendo, naturalmente, a limites pré-fixados na própria norma que lhe outorga o poder correspondente. Há, portanto, autorregramento da vontade e o ato que implica o seu exercício se encaixa na categoria do negócio jurídico processual”239.

A participação do juiz nos negócios jurídicos, portanto, estaria delineada por essa “discricionariedade judicial”, a qual deve obedecer aos limites pré-fixados na norma. Quanto menores esses limites, maior o ônus argumentativo na fundamentação do ato.

A presença do vocábulo “partes” na redação do art. 190 do CPC não pode ser tomada de maneira restritiva, negando-se ao juiz enquanto sujeito do processo a participação nos negócios jurídicos processuais. Primeiramente porque não se pode negar o poder de gerência processual do próprio órgão jurisdicional, o que deve ser feito em conjunto com as partes. Também o inciso VI do art. 139 dá ao juiz o poder de dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito, o que, claramente, pode ser objeto de negócio jurídico processual.

Não se enxerga qualquer caráter limitador da participação do juiz enquanto sujeito do negócio jurídico processual. Certamente que a lei pode estabelecer como condição de eficácia do negócio a homologação judicial, contudo não há confusão dessa condição com a hipótese de o juiz efetivamente participar da convenção processual, manifestando sua vontade e fundamentando sua decisão, sendo, portanto, elemento integrante do suporte fático.

Admitindo-se a participação do juiz nos negócios jurídicos processuais, é preciso estabelecer quais os limites de sua participação. Estabelecer esses limites, contudo, de maneira apriorística, não é tarefa fácil.

Primeiramente, deve-se considerar que há negócios em que a participação do juiz é necessária e outros em que não é. Por exemplo, no caso de as partes negociarem, durante o processo, após a contestação, acerca dos poderes de instrução do juiz, visando a que somente

238NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 211. 239NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 221-222.

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determinados meios de prova fossem admitidos, vê-se necessidade de participação do juiz. Por outro lado, a vontade do juiz não pode integrar o núcleo do suporte fático de determinados negócios, como na cláusula de eleição de foro celebrado antes do procedimento, cuja disposição é exclusiva das partes e não envolve o juiz, que somente irá exercer o controle de validade e poderá negar eficácia em casos específicos.

Seria necessário, também, a partir da divisão legal entre negócios jurídicos processuais típicos e atípicos, tratar de cada um dos casos e estabelecer em quais deles a presença do juiz seria necessária, o que demandaria um trabalho exaustivo frente às inúmeras possibilidades de negócios jurídicos processuais atípicos.

Da mesma forma, se for necessária a participação do juiz e este se recursar a realizar o negócio, diversas serão as hipóteses a se analisar sobre as possibilidades de impugnação e/ou cabimento de recurso específico, considerando-se também o momento processual em que seja realizado o negócio.

Diversas variáveis podem ser lançadas para o estudo da participação do juiz no negócio jurídico processual, o que expandiria sobremaneira o escopo do estudo, que no momento se limita a fincar as premissas do instituto para análise do caso do saneamento e organização consensual.

O problema é de difícil solução. Para tanto, decidiu-se estabelecer, em primeiro momento, a possibilidade de participação do juiz nos negócios jurídicos processuais e fincar a premissa de que sua participação, em determinados casos, será requisito de validade do negócio. Nos casos em que sua participação não seja necessária, a sua homologação somente será precisa nos casos em que houver explícita indicação legal para tal, apenas como condição de eficácia, mas valendo-se a todo o momento do poder de controle da validade do ato, nos termos do parágrafo único do art. 190 do Código de Processo Civil. Nos demais casos, o negócio jurídico será eficaz no processo desde o momento que trazido pelas partes, posto os efeitos jurídicos nascerem do fato (negócio jurídico) e serem regulados pela vontade das partes, dentro dos limites e amplitude permitidos em lei.

Ademais, estabelece-se que se participar o juiz do negócio e julgar contra os seus termos, ou não observar o negócio celebrado pelas partes, serão casos de error in procedendo,

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ou seja, casos em que o juiz desatende o comando legal regulador da sua atuação à frente do processo240.