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2 Ensino do projecto de Arquitectura: do conceito ao projecto

2.3 Da educação ao ensino do projecto de Arquitectura

“A arte de ensinar e aprender é a arte de formar fábricas e não armazéns.” Fernando Savater208

É possível afirmar que a actual condição humana, tanto de um ponto de vista material como intelectual ou, ainda, biológico209, é, em muito boa parte, fruto dos

procedimentos de transmissão de conhecimento que, desde a Antiguidade, garantiram a continuidade cultural e que, de uma forma geral, podem ser inscritos sob o conceito genérico de educação. Educar é, numa acepção mais ampla, corresponder à necessidade humana de aquisição, selecção, actualização e transmissão do conhecimento210, compreendendo, segundo Edgar Morin, a

responsabilidade de prosseguir aquele processo que “conserva, memoriza,

integra, ritualiza uma herança cultural de saberes, ideias, valores; regenera-a enquanto a reexamina, actualiza-a, transmite-a; gera saber, ideias, valores que voltarão para a herança”211.

Para Olivier Reboul, “a educação é o conjunto dos processos e dos

procedimentos que permitem a qualquer criança aceder progressivamente à cultura, pois o acesso à cultura é o que distingue o homem do animal”212 entendo-

se, com Morin, por cultura “um sistema generativo de alta complexidade, sem o

qual essa alta complexidade ruiria para dar lugar a um nível organizacional mais

208

SAVATER, Fernando. 2006. O valor de educar. Lisboa: Dom Quixote, p. 56.

209

“Biologically and physiologically man was naked and not specifically suited to his environment (…). Beginning with the family unit and the primitive tribe, concentrating on vital material tasks, he progressively acquired knowledge and experience, learned how to know and express his desires and aspirations and so defined and fashioned his intellectual faculties. In pointing to man's biological, physiological and instinctive needs, scientific evidence shows the role which this evolution— necessarily implying forms of education— played in the survival of the species. It has contributed to the destiny of societies in all phases of their development.” FAURE, Edgar. 1972. Learning to be. The world of education today and tomorrow. Paris: Unesco. p. 4.

210

JAEGER, Werner. 2001. Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. DELORS, Jacques. 1996. Educação um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. UNESCO. FAURE, Edgar. 1972.

Learning to be. The world of education today and tomorrow. Paris: Unesco.

211

MORIN, Edgar (1999). La testa ben fatta. Riforma dell’insegnamento e riforma del pensiero. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2000, p. 83 – tradução livre.

212

baixo”213. Assim, se a educação é uma instituição humana responsável pela

transmissão e acumulação de conhecimento, também o é dos comportamentos sociais, das atitudes morais e ideológicas, das matrizes culturais, e, em geral, de tudo o que caracteriza e reúne um determinado conjunto de seres humanos. Neste sentido, não parece possível definir, de forma definitiva e precisa, as suas fronteiras e limites operacionais, uma vez que a educação envolve todos os processos que, de alguma forma, procuram tornar, como afirma Reboul, um ser humano num ser social.

O ensinar é, juntamente, ao criar, ao formar e ao instruir, uma das manifestações possíveis da educação. Nomeadamente, criar é próprio de um contexto familiar; tal como uma mãe, de forma espontânea, cria um filho desde o primeiro ano de vida. De modo diferente, formar limita-se a conotar a preparação intelectual e material de um indivíduo para uma determinada função, seja ela de natureza técnica, militar, ou profissional214. Instruir, pelo contrário, significa

transmitir uma estrutura rígida e pré-constituida de pensamento215. Neste sentido,

um instrutor é quem, por exemplo, instrui um aluno na condução de veículos através da transmissão das normas práticas e teóricas que este acto envolve e às quais obriga. Finalmente, quanto ao ensinar, ele representa, segundo Reboul,

“uma educação intencional; é uma actividade que se exerce numa instituição, cujos fins são explícitos, os métodos mais ou menos codificados, e que é assegurada por profissionais”216, considerando uma instituição como “uma

realidade social, relativamente autónoma, estável ou regular, constrangedora

213

MORIN, Edgar (1973). O Paradigma Perdido. Lisboa: Publicações Europa-America, 2000, p. 74.

214

REBOUL, Olivier. (1989). A Filosofia da educação. Lisboa. Edições 70, 2000, p. 18. 215

Neste contexto um caso paradigmático é a mudança que se deu em Portugal em 1936, sob o Governo de António de Oliveira Salazar do Ministério da Instrução Pública para o Ministério da Educação Nacional. (ver Diário do Governo de 11 de Abril de 1936, I série, número 84. Lei nº 1- 941) O governo salazarista não se limitava a instruir os seus jovens querendo educá-los, sob uma bandeira nacional, de forma a servi-lo melhor. Por outras palavras o governo não queria que fossem as famílias, tradicionalmente encarregadas da educação dos seus filhos, a inculcar neles os valores subjacentes à educação, querendo assumir esta responsabilidade como mais uma forma de controlo intelectual sobre a população.

216

segundo regras, e que se específica pela sua própria função social”217.

O ensino é historicamente fruto de uma vontade dos laicos em ingressar num mundo cultural tradicionalmente reservado aos eclesiásticos e aos monges; uma vontade que permitiu uma progressiva vulgarização e definitiva estruturação do ensino como fenómeno socialmente institucionalizado218. Mais

especificamente, no âmbito do ensino das artes, uma mudança nos métodos de transmissão de conhecimento, baseada no fim do monopólio da experiência pragmática das “oficinas”, exigiu novos paradigmas que encontraram uma nova implementação: numa primeira fase, nas “escolas” e, sucessivamente, nas incipientes estruturas universitárias. Uma vontade que teve início nos princípios do século XI, com a abertura das primeiras universidades de (por ordem cronológica) Bolonha, Paris, Oxford, Pádua, Montpellier e Salamanca, e que encontrou a sua estabilização definitiva a partir do século XIX, mais especificamente, através dos princípios da reforma levada a cabo pelo intelectual e ministro prussiano von Humbold tem 1810219.

Sem querer de forma alguma menosprezar, por razões de pertinência intelectual, todo o conjunto de formas de transmissão de conhecimento no âmbito da Arquitectura que, de alguma forma, antecederam o século XIV220

, é possível afirmar que, como já foi apontado, as primeiras manifestações de ensino de Arquitectura ainda se desenvolveram num registo algo híbrido entre o ensino

217

Idem, p. 25. 218

CASTAGNARO, Alessandro. 2003. La formazione dell’architetto. Botteghe Accademie

Facoltà Esperienze Architettoniche. Napoli: Liguori Editore, p. 18.

219

“O novo modelo universitário alemão foi inspirado e promovido por, pelo menos, quatro obras; ou seja pelas ideias e pelos escritos publicados: por Schelling, em 1803, com o título «Lições sobre o método do estudo académico»; por Fichte, em 1807, com o titulo «Plano para erigir em Berlim um instituto de ensino superior que esteja em conexão apropriada com a academia das ciências»; por Schleiermacher, em 1808, com o titulo «Reflexões ocasionais sobre as universidade de matriz alemã» e, finalmente, e sobretudo, por Wilhelm von Humboldt, em 1810, com o titulo «Sobre a organização interna e externa dos institutos científicos superiores em Berlim». Extracto de uma entrevista a Ernesto Mayz-Vallenilla em Enciclopedia multimediale delle scienze filosofiche: http://www.emsf.rai.it/ retirado em novembre de 2006. Ernesto Mayz-

Vallenilla é um filósofo venezuelano e responsável pela cadeira de Filosofia da UNESCO. 220

CUNNINGHAM, Allen. 1979. The Genesis of Architectural Education. Em Studies in Heigher

propriamente dito e a colaboração profissional. Nas “oficinas” renascentistas o aprendiz ia ganhando competência através de um processo de osmose, porque raramente tornado explícito e intencional, permitido pela proximidade com o mestre. A formação, tradicionalmente extensa e abrangente, apontava para uma multidisciplinaridade onde o aprendiz ia aprendendo as artes dos artesãos, juntamente com o desenho, a escultura, o latim, o grego e a filosofia. Isto permitia, também, um estrito contacto dos principiantes com os clientes e, sobretudo, com os artesãos do estaleiro, envolvendo-os nos processos de tomada de decisão e de construção, não como espectadores mas como verdadeiros protagonistas221

. Num contexto histórico ao longo do qual as obras podiam demorar mais do que a vida de um homem, o aluno tinha todo o tempo de sedimentar e assimilar os conteúdos necessários à prática profissional.

Quando educado nas oficinas, o arquitecto tinha que representar o homem completo através da sua formação renascimental. Gian Vincenzo Scamozzi, pai de Vincenzo, escreveu, na introdução à publicação dos Sette Libri de Serlio, em 1618, que o arquitecto tinha que possuir seis qualidades fundamentais: conhecer a Literatura para poder estudar a teoria, saber desenhar para poder reproduzir os melhores exemplos de Arquitectura Antiga, conhecer a Matemática que é suporte da Geometria e do Cálculo, dominar as regras da Perspectiva para poder representar os seus projectos, ter habilidade em construir modelos e, finalmente, possuir alguma noção de Filosofia. Com o desenvolvimento intelectual da sociedade do Renascimento, a preparação intelectual do sujeito foi ganhando relevância em detrimento de uma aprendizagem meramente manual222. Já

221

Todavia o sistema conservava, também, fraquezas e abusos; nem sempre a vida profissional de um arquitecto lhe permitia preocupar-se com o ensino dos seus aprendizes deixando-os entregues a uma mera rotina operativa. Além disso, e como acontece ainda hoje, nem todos pagavam aos próprios aprendizes (a Architectural Association Grã-Bretanha nasceu porque, em 1847, um grupo de pupilos ingleses se juntou para reivindicar os próprios direitos). Com o nascer das escolas e o consequente reconhecimento profissional, mesmo os melhores pupilos que primavam na preparação em relação aos alunos regulares, tiveram dificuldade em conseguir uma legitimação das próprias capacidades ficando, muitas vezes, relegado a um segundo plano na cena profissional. - BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. New York: Reinhold.

222

A importância da aprendizagem do âmbito da edificação era de tal ordem que, em 1459, o “Statut des tailleurs de pierre de Strasbourg” citava: “nenhum mestre, vice-mestre ou operário tem

Leonardo da Vinci tinha afirmado que: "Studia prima la scienza e poi seguita la

pratica nata da essa scienza" 223 e ainda: “la pittura é cosa mentale”. Inseridos

nesse cenário, os mestres não se limitavam à formação de aprendizes, mas procuravam transmitir os princípios teóricos de uma arte em constante aumento de complexidade e, sobretudo, de pertinência científica, consequentemente, de axiomatização224.

Não foi por acaso que, mesmo a partir do século XIV, começam a florescer um conjunto de escolas de Arquitectura225. Estas instituições procuravam, antes de

mais, dar resposta à crescente necessidade de consolidação e crescimento dos estados europeus onde os governantes perceberam a utilidade da arte como ferramenta social necessária à contínua necessidade de manifestação do seu próprio poder e importância226. Desta forma, as matrizes pedagógicas e didácticas

das escolas estavam fortemente determinadas pela relação que cada instituição mantinha com o poder. Em França e na Alemanha, por exemplo, as escolas gozavam de uma forte consideração política, de natureza laica, e estavam suportadas por fundos governamentais227. Diferentemente, em Itália, a Igreja

continuava a representar o referente de legitimação, tanto estético como político e social, e o ensino nas oficinas manteve-se um processo paralelo ao ensino institucional ao longo de muitos anos228

. Em Inglaterra, um país que também neste contexto conserva características exclusivas, o ensino processava-se de forma privada, com uma fortíssima vertente ligada à pupilagem229.

o direito de ensinar a alguém os usos e as práticas da arte sem controlar se o aprendiz seguiu uma aprendizagem conforme às tradições (art. 13). Cada director de obra ou pedreiro não deve aceitar dinheiro de um operário para instruí-lo ou para aconselhá-lo sobre a actividade do trabalho da pedra (art. 14)” Em CASTAGNARO, Alessandro. 2003. La formazione dell’architetto. Botteghe Accademie Facoltà Esperienze Architettoniche. Napoli: Liguori Editore,

p. 12 – tradução livre. 223

DA VINCI, Leonardo, Trattato, cap. VII. 224

CASTAGNARO, Alessandro. 2003. La formazione dell’architetto. Botteghe Accademie

Facoltà Esperienze Architettoniche. Napoli: Liguori Editore.

225

Veja-se o capítulo 1.3 - Ensino e profissão: uma união de facto. 226

GOMBRICH, Ernst Hans (1950). A história da arte. Lisboa: Edições Público, 2005. 227

Idem, p. 91. 228

CASTAGNARO, Alessandro. 2003. La formazione dell’architetto. Botteghe Accademie

Facoltà Esperienze Architettoniche. Napoli: Liguori Editore, p. 99.

229

BANNISTER, Turpin. 1954. The Architect at Mid-Century. Evolution and Achievement. New York: Reinhold.

A relação com o poder resultou profundamente determinante no que respeita à relação com o conhecimento. Como afirma Alessandro Castagnaro, “O século

XVIII é caracterizado, na Europa, pela profunda recusa pelo despotismo real e pela aliança entre o trono e o altar; recusa, essa, que permitiu a afirmação de um novo racionalismo com o objectivo de dissipar as sobras da ignorância e da superstição com as luzes da razão e da experiência científica. Assim, traduziram- se num ulterior desenvolvimento das tendências racionalistas e empiristas do século anterior e numa recusa das exasperações barrocas e na procura da ‘utilidade’ considerada como valor absoluto para construir uma sociedade fundada sobre os direitos naturais (inatos) do homem”230

. O relacionamento com o conhecimento, que cada manifestação de ensino de Arquitecta mantinha, determinou, a partir do século XVIII, uma clivagem que separou duas linhas de matriz pedagógica e epistemológica. Desta forma, até aos últimos anos do século XIX, o ensino passou a processar-se alternadamente em linhas de tradição artística, com base no modelo Beaux-Arts, ou de especialização técnica, que viu nos politécnicos a sua implementação231. De acordo com Antoine Picon232, a

distinção que foi surgindo entre as duas abordagens, que determinam também a definitiva diferenciação entre a figura profissional do arquitecto e a do engenheiro, foi fruto de empenhos teóricos como o de Jean-Baptiste Colbert233 ou

de François Blondel234. A vontade em estabelecer um corpo de doutrina oficial

230

CASTAGNARO, Alessandro. 2003. La formazione dell’architetto. Botteghe Accademie

Facoltà Esperienze Architettoniche. Napoli: Liguori Editore, p. 99 – tradução livre.

231

PORTAS, Nuno. 2005. Arquitecturas: história e crítica, ensino e profissão. Porto: FAUP Edições, p. 354.

232

PICON, Antoine. 1988. Architectes et ingenieurs au siècle des lumières. Marseille: Parenthèses.

233

Jean-Baptiste Colbert (1619-1683). Politico e economista francês. Conseguiu levar a cabo profundas reformas no que respeita à organização do governo e ao sistema financeiro do estado. Além disso, ficou conhecido pelas suas políticas económicas mercantilistas que permitiram à França um rápido enriquecimento. Teve uma fortíssima influência na organização da academia. Fundou, em 1653, a Academia de Pintura e Escultura, em Paris e, em 1671, a de Arquitectura. Desta forma conseguiu criar uma ligação de directa dependência das artes com a política real. Colbert, era o único intermediário entre os arquitectos ao serviço do rei e o único juiz da qualidade das obras destes. Era responsável pelos pagamentos e tinha um enorme poder tanto sobre os projectos produzidos como sobre o progresso das obras em construção.

234

Jacques François Blondel (1705-1774). Arquitecto e teórico francês, tinha uma rica cultura clássica (obtidas pelas várias viagens à Itália, à Grécia e ao Egipto), e foi-lhe dado o encargo de

para a disciplina, incluindo os seus aspectos teóricos, produtivos e as suas formas de instrução, separou definitivamente o ensino de Arquitectura do ensino de Engenharia com o qual tinha, até então, mantido uma união de facto. François Blondel, primeiro director da Academia de Arquitectura (aberta em 1671), militar, diplomata, engenheiro e matemático, escreveu, entre 1675 e 1683 o seu Cours

d’architecture que será o primeiro texto teórico de Arquitectura adoptado pela

academia francesa235. No tratado, uma profunda ligação teórica com Vitrúvio

reside na base de uma sistematização disciplinar que, de facto, representa uma clara vontade de entregar à Arquitectura um território epistemológico autónomo236

.

A determinação em formular um campo teórico independente foi o factor determinante para a manutenção, no ensino de Arquitectura, de um desejo na busca de racionalização. A procura de cientificidade da disciplina, tanto no que respeita as suas vertentes teórica, técnica, mas também geométrica e representativas estava presente, antes das experiências francesas, nos tratados do Alberti, de Francesco di Giorgio Martini ou de Piero della Francesca. O conhecimento arquitectónico procurava, desta forma, uma autonomia intelectual e disciplinar que, através de uma formulação teórica, procurava atribuir à Arquitectura um corpus de conhecimento fundado em concepções intelectuais237

. Em suma, foi-se assistindo a um processo de busca e de estabilização de uma verdade axiomática que pudesse sustentar o discurso disciplinar da Arquitectura.

“director geral das obras da cidade de Paris” e de director da Academia de Arquitectura. As suas aulas foram publicadas, entre 1675 e 1683 no Cours d’architecture enseigné dans l’Académie

Royale d’Architecture.

235

MALLGRAVE, Harry Francis. 2005. Architectural Theory. Volume I. An anthology from

Vitruvius to 1870. Malden MA, Oxford, Victoria: Blackwell Publishing.

236

Blondel procura, como declara na dedicatória ao rei no seu Cours d’architecture, “ensinar

publicamente as regras desta arte retirada da doutrina dos grandes mestres e dos exemplos dos edifícios mais bonitos da Antiguidade”. – tradução livre.

237

Também o desenho sofreu, naturalmente, das contaminações epistemológicas provocadas pela busca de verdade no âmbito da Arquitectura. Ensinar e aprender o desenho já não era uma operação de natureza empírica, era aprender a ciência, as regras da geometria e da matemática que subjazem à representação. A perspectiva, teorizada no Trattato della Pintura (1436) por Leon Battista Alberti, representou, na altura, um conjunto de regras de natureza científica passíveis tanto de ser ensinadas pelo mestre como de ser apreendidas pelo aluno de forma autónoma. A perspectiva passou de natural para artificial e o pensamento científico moderno afectou profundamente tanto os processos intelectuais no seio da actividade profissional como as rotinas de ensino/aprendizagem.

A versão do Tratado de Vitrúvio de Claude Perrault, de 1673, por exemplo, foi claramente elaborada com o propósito de apelar para uma normativa teórica universal para a Arquitectura. Com o surgir e o desenvolver de um conjunto de processos exclusivos de transmissão de conhecimento, o campo da Arquitectura encontrava-se numa condição que o obrigava a encontrar, através de uma investigação teórica, os processos e os elementos de legitimação do seu conhecimento238. O ensino, considerado como meio de emancipação do sujeito e

da sociedade, necessitava de verdades partilhadas ou partilháveis que permitissem à Arquitectura ganhar a autonomia e a consistência disciplinar necessárias para que o seu campo não perdesse legitimidade e, com esta, poder político. Se, por um lado, o modelo politécnico gozava da forte ligação que conservava com as ciências que se encontravam, de forma explícita, na origem das disciplinas ligadas às engenharias, além de poder adoptar um currículo epistemologicamente ordenado e cuja legitimidade era remetida por cada âmbito envolvido, por outro lado, o modelo Beaux-Arts, era fruto de uma visão piramidal da disciplina. A organização do conhecimento era feita através de uma hierarquização onde, a partir dos princípios teóricos que, no caso de Blondel, remetiam para a Arquitectura clássica, era extrapolado um conjunto de inferências aplicáveis aos vários casos abordados.

Nesse sentido, o paradigma da École francesa do século XVIII avança com o processo de estruturação e consolidação, tanto do enquadramento epistemológico da Arquitectura como das rotinas de ensino, de aprendizagem e de legitimação de conhecimento. Para compreender a escala do fenómeno regista-se que ao longo do século XVIII surgem, em França, várias escolas: a École des Arts, de Blondel (1743); a École des Ponts et Chaussées, organizada por Luís XV (1747)239; a École des Ingénieurs, em Mézières, para militares (1748)240; e a École

238

MONTANER, Josep Maria. 1999. Arquitectura y crítica. Barcelona: Gustavo Gili. 239

Segundo Ulrich Pfammatter a figura do engenheiro moderno é inventada pela École des Ponts

et Chaussées. Pois essa instituição é o resultado directo da necessidade de um modelo educativo

técnico que respondesse, com conhecimento técnico fortemente especializado, ao forte incremento que se registou, sobretudo a partir do século XVIII, no contexto industrial europeu. Em PFAMMATTER, Ulrich. 2000. The making of the modern architect and engineer. Basel: Birkhäuser.

Polytechnique (1794) cujo primeiro propósito era o de: “recrutar pessoas para os serviços reais para satisfazer o crescimento do poder até finais do século XVIII”241.

A escola, ao tentar dar resposta a uma, ainda incipiente, ideologia de matriz democrática através de uma procura de igualdade entre sujeitos, tinha ao mesmo tempo que servir de instrumento político para poder acompanhar as necessidades representativas vindas do desenvolvimento do regime. Tanta era a força empregue nestes propósitos, à escala europeia, que também na Prússia, em 1790, Heinitz, o ministro de Frederico II, reorganizou a Academia de Artes e Ciências Mecânicas, para produzir técnicos capazes de servir o poder242.