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3 As mudanças do cenário intelectual

3.5 O enfraquecimento da ideia de progresso

“Embora hoje furacões e filibusteiros nos arrastem para a indesejada Egina,

continuamos a confiar em que amanhã conseguiremos arribar pelos nossos próprios meios à ansiada ilha do tesouro.” Fernando Savater399

No seguimento da abertura interpretativa e ontológica que surgiu com o enfraquecimento da ideia de modernidade, a ideia de progresso tradicionalmente ligada, nas suas manifestações processuais, à de projecto, deixou de ter um significado unívoco e forçosamente positivo. Como já foi afirmado no capítulo anterior, esta duplicidade, esta dupla face do progresso sempre esteve presente, mas encontrou no contexto da pós-modernidade um clima apto para se tornar definitivamente visível e dando vida com uma gradual tomada de consciência colectiva400, uma problematização das condutas que, desde os princípios da

modernidade, tinham acompanhado o processo de progresso e de emancipação humana.

A ideia de progresso surge, de um ponto de vista histórico, associada à de um crescimento orgânico. Segundo Aristóteles, o facto de apontar para um objectivo representava uma causa de desenvolvimento e, de um ponto de vista biológico, o próprio crescimento era uma manifestação de um objectivo401. Em

suma, a idea de progresso resultava estritamente ligada à de uma acção ao serviço de um fim. Com base nesse princípio, por exemplo, na tragédia grega “uma vez

resolvido o problema de como servir o fim da tragédia com os meios mais económicos e apropriados, não é necessário procurar mais. Existe um único modelo perfeito, sob o qual podem orientar-se todos os que pretendem atingir o

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SAVATER, Fernando. 2004. A coragem de escolher. Lisboa: Dom Quixote, p. 49. 400

É de lembrar, por exemplo, que a participação dos países asiáticos no debate sobre a sustentabilidade é posterior a este período. Em 1997 o Protocolo de Kyoto juntou 160 países, excepto os EUA e a Austrália. O presidente George W. Bush, logo no princípio do seu mandato, em 2001, retirou a adesão dos EUA ao protocolo, manifestando um posicionamento claramente reaccionário em relação aos restantes. Posicionamento, este, agravado pelo facto de que os EUA são responsáveis por mais do 36% das emissões poluentes mundiais.

401

mesmo objectivo”402.

Todo o Renascimento se alimenta deste silogismo. Uma vez estabelecidos os modelos de referência, o progresso é garantido pela sua imitação através da

mimesis. O ensino de Arquitectura constrói uma teoria arquitectónica, compositiva

e projectual à volta deste princípio sobre o qual, além de mais, solidifica o academismo. Todavia, o facto de existir um modelo significa, implicitamente, que só existem dois percursos possíveis: o que segue o modelo e que, de facto, leva para o progresso, e o que, ao não seguir o modelo, leva para a decadência. No limiar entre estes dois percursos, nessa fronteira que define os dois campos, jogou-se todo o debate teórico do classicismo. Não é por acaso que, ainda em 1755, Winckelmann sente a necessidade de publicar o seu manifesto História da

Arte Antiga, onde procura resgatar o classicismo das denúncias que, no entanto,

iam surgindo sobretudo pelo romantismo francês e alemão. Um romantismo que, de facto, não aceita esta bifurcação teórica em favor de uma maior abertura e liberdade criativa e interpretativa da obra de arte.

No século XIX a ideia de progresso resulta “já há muito tempo transferida

do campo da técnica pelo âmbito político”403, mas foi mesmo do campo político e

social que recebeu as suas mais fortes contaminações negativas. A ideia de progresso associada ao classicismo começará a receber as primeiras critícas quando, em finais de século XVIII, escritores como Jean-Jacques Rousseau denunciaram os seus excessos e armadilhas. Quando o meio se confunde com o fim, todo o pensamento se redobra num contínuo virtuosismo retórico fechado nele próprio. A ideia de progresso deixa de estar associada à de crescimento humano e político e é corrompida pela contínua busca de uma perfeição que em nada coincide com a realidade. Um ideal inútil porque nunca aplicável.

A partir do momento em que todo o ideal de progresso não resulta estar ligado de forma unívoca a uma linguagem ou a uma expressão artística específica,

402

Idem, p. 18 – tradução livre. 403

abre-se o campo para uma nova configuração entre arte e progresso onde o papel do artísta já não é o de apontar para um ideal absoluto mas sim de aumentar o conhecinto do sujeito através de uma nova forma para observar a realidade.

Nesta nova configuração, a ideia de progresso autonomiza-se, dissocia-se da arte e começa a distribuir-se pelos vários âmbitos de pensamento e de acção humana. O projecto de Arquitectura, enquanto forma de arte, sofre deste esvaziamento político mas ainda se encontra, sobretudo até aos princípios do século XX, fortificado sobre o pensamento técnico. A euforia tecnológica que invadiu Europa e Estados Unidos no século XIX enfatizou o carácter antecipatório do projecto e consagrou-o como instrumento de progresso.

Todavia, como já foi afirmado, o conúbio entre tecnologia e progresso denunciou, ao longo de todo o século XX, a sua dupla face. Com o esboroamento deste binómio, o projecto de Arquitectura, num contexto cultural fortemente determinado pelo pensamento tecnicista, ficou profundamente contaminado. A noção de progresso associada à de melhoramento foi posta em causa e, com ela, a de projecto. Sobretudo na segunda metade do século, “o projecto, numa cultura

tecnológica de crise, a partir de 1975, abandona a sua vertente optimista e a sua visão societal de carácter um pouco profético”404

e as suas capacidades antecipatórias revelam-se limitadas a um curto hiato de tempo. Uma ideia de progresso assumidamente limitada por um contexto onde, como afirmou R. Buckminster Fuller, “(...) é possível fazer uma previsão bastante razoável da

ordem dos vinte e cinco anos, período esse que parece corresponder aproximadamente a uma geração de reciclagem industrial“405.

Apesar disso, paradoxalmente, as atitudes antecipadoras continuam a fazer cada vez mais, de forma compulsiva, parte dos comportamentos intelectuais do sujeito. São elaborados projectos para tudo; projectos que provocam, diariamente,

404

BOUTINET, Jean-Pierre (1990). Antropologia do projecto. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 305.

405

FULLER, R. Buckminster (1969). Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra. Porto: Via Óptima, 1998, p. 4.

desilusões e frustrações. O discurso político está repleto de projectos. Mas a vontade de dominar o contínuo encadear dos prazos, que pautam a vida de todos, das alterações e mutações, torna o processo projectual efémero. Um zapping permanente entre projectos, intenções e programas para o futuro. Se, por um lado, como afirma Boutinet, “vivemos num cemitério de projectos”406, por outro lado,

este cemitério é populado por um contínuo “baby boom” de projectos.

A tirania do tempo instantâneo, descontínuo, discreto, sobre o tempo contínuo, ao contrapor à ideia de projecto uma contínua flexibilidade, instantaneidade, adaptabilidade, onde tudo pode acontecer, parece esvaziá-lo dos seus eixos dominantes: o da previsão, da antecipação e o do controlo407. A

alteração da escala temporal que tinha acompanhado a modernidade industrializada e que se caracterizava pela acumulação, orientação linear e monocromática, para uma escala onde se torna cada vez mais difícil reconhecer linhas de continuidade e, sobretudo, direcções, manifesta-se nos cada vez mais curtos ciclos de vida dos seus produtos408. A efemeridade, a reconversão,

chegando à destruição, fazem parte de um recente vocabulário projectual onde linhas projectuais assincrónicas se sobrepõem e se cruzam de forma contingente, pondo em causa uma ideia de progresso linear, contínua e unitária.

Para o aluno de projecto de Arquitectura, este estado onde se misturam entusiasmos projectuais, incertezas ontológicas e imposições sociais de inovação juntamente com uma bipolaridade no que respeita ao alcance dos limites da acção individual, cria um cenário onde o pensamento projectual perde progressivamente os seus traços originais para passar a ser visto sob a dupla lente da trivialidade e, contemporaneamente, da excelência. As tensões intelectuais exercem sobre o sujeito forças opostas: por um lado, pedem-lhe inovação a todo o custo, rapidez e eficácia de resposta; por outro lado, questiona-se ou desacredita-se a noção de

406

BOUTINET, Jean-Pierre (1990). Antropologia do projecto. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 134.

407

Ver capítulo 2.1- Os traços dominantes do projecto. 408

progresso esvaziando o projecto. Inúmeras tensões, oriundas dos mais variados quadrantes de uma sociedade de consumo, alimentam pedidos que se manifestam de forma estroboscópica e que o aluno dificilmente consegue decifrar. Com o fim das meta-narrativas acabaram os “grandes pedidos” que representavam as linhas guia para o projecto. O cenário actual, salpicado, demasiadas vezes promissor, algumas vezes ameaçador, mas sempre intermitente, não permite ao sujeito a calma e serenidade necessárias ao processo intelectual do projecto; sobretudo no que respeita a uma sua contemporaneidade com os ciclos de aprendizagem presentes no âmbito do ensino de Arquitectura.

Neste cenário, a ideia de progresso desmultiplica-se numa miríade de sub- significados que, muitas vezes, convivem num registo de conflito ou de recíproca exclusão. Como ressalta David Harvey, “recusando a ideia de progresso, o pós-

modernismo abandona cada sentido de continuidade e cada memória histórica, enquanto, ao mesmo tempo, desenvolve uma capacidade inacreditável em saquear a história e em absorver, como aspecto do presente, qualquer coisa que encontre”409. O progresso que a tecnologia persegue não é o mesmo progresso que

é perseguido pela ecologia ou pela economia. Cada campo disciplinar desenvolveu uma própria e exclusiva ideia de progresso que corresponde a uma determinada e também exclusiva configuração epistemológica. Por isso, cada modelo possui rotinas de legitimação próprias criando, no âmbito do pensamento projectual, um dédalo de heurísticas intelectuais muitas vezes labirínticas ou em colisão. A Arquitectura assiste a um contínuo misturar-se de elementos heterogéneos, vindos do passado ou fruto das correntes estéticas mais inovadoras ou revolucionárias. Juntamente com a ideia de progresso, a ideia de projecto sofre das alterações ontológicas do presente e estas manifestam-se, muitas vezes, de forma amplificada, no âmbito do ensino. Ensinar alguma coisa que se mantenha válida no arco de tempo de dez anos é, de facto, um dos maiores desafios do sistema educativo. Procurar as linhas de continuidade sem permitir que tudo e

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HARVEY, David (1989). La crisi della modernità. Riflessioni sulle origini del presente. Milano: Il Saggiatore, 2002, p. 75-76 – tradução livre.

todos sejam postos compulsivamente em causa é, contudo, uma das suas obrigações.