• Nenhum resultado encontrado

4 O ensino do projecto de Arquitectura face à pós-modernidade

4.1 Uma nova configuração social

“Che interesse può avere un giovane a volare con le proprie ali quando non

ha più niente da conquistare fuori dal nido?" Béatrice Copper-Royer468

Nos séculos de história que separam as actuais escolas das suas homólogas do Renascimento, tanto as alterações que ocorreram no interior da disciplina, sejam estas materiais ou intelectuais, como as que se deram fora delas, reconfiguraram as rotinas envolvidas na prática projectual. Fora do âmbito do ensino assistiu-se, no que respeita às condutas individuais do sujeito, a uma reconfiguração do cenário social e cultural no qual estas se desenrolam. Se, por um lado, os vários séculos de história desde a École de Beaux-Arts e os quase cem anos desde a Bauhaus não parecem ter afectado a essência e a didáctica do ensino do projecto de Arquitectura, que ainda se processa segundo modelos didácticos em muito iguais aos anteriores (ainda fortemente centrados no exercício de simulação projectual), eles tiveram repercussões em todos os âmbitos que, de forma mais ou menos directa, exercem sobre este uma forte influência. Mais especificamente, nas últimas três décadas do século XX, as alterações que ocorreram, e que se reúnem, de um ponto de vista histórico, sob o rótulo Maio de ’68, foram-se gradualmente juntando num conjunto de mudanças sociais que tiveram, no âmbito do ensino, um efeito amplificador dos traços característicos da contemporaneidade.

À libertação intelectual e à diluição das meta-narrativas da modernidade foi- se juntando uma diminuição etária da população estudantil onde alunos, cada vez mais novos, enfrentam tarefas cada vez mais complexas num cenário cada vez mais permissivo e, ao mesmo tempo, intelectualmente mais heterogéneo, poluído e contaminado. O próprio grupo familiar, que ainda representa o lugar de permanência e de abrigo para muitos jovens, parece demitir-se progressivamente das suas obrigações educacionais perante a sociedade, delegando muitas das

468

COPPER-ROYER, Béatrice, em Label France, la rivista N° 51 – Julho de 2003 artigo de Nelly Brunel http://www.diplomatie.gouv.fr/label_France/51/it/05.html em Agosto de 2006.

tarefas, que tradicional e historicamente lhe pertencem, para o sistema de ensino469. Desta forma o “eclipse da família”470, acerca do qual fala Savater, faz

que “quanto menos os pais querem ser pais, mais paternalista se exige que seja o

Estado”471. As instituições governamentais procuram colmatar as deficiências do

sistema familiar de educação – no sentido mais lato e abrangente do termo - através de panaceias políticas como são, por exemplo, o acesso à informação digital ou a transformação das instituições escolares em recreios onde os alunos possam ocupar o tempo que anteriormente passaram em casa ou na rua, para desenvolver “actividades lúdico/pedagógicas”. O resultado é uma educação onde

“os professores têm na sua frente jovens cada vez menos enquadrados pelas famílias ou pelos movimentos religiosos, mas cada vez mais informados”472; mas

onde, também, existe a falta crónica de uma estrutura educacional subjacente que possa, através das inúmeras formas possíveis, receber a informação e colocá-la numa matriz de relações ou, utilizando um termo um pouco polémico mas sempre estimulante, de valores. Como afirma Jean-Pierre Boutinet, “desde a infância,

sobretudo nas sociedades dominadas pela imagem televisiva, o jovem deve aprender a prestar atenção às coisas e às pessoas. A sucessão muito rápida de informações mediatizadas, o “zapping” tão frequente, prejudica de facto o processo de descoberta, que implica duração e aprofundamento da apreensão”473.

O crescimento processa-se, assim, de forma diferente em relação ao período

469

Segundo um estudo do EURISPES (Istituto di Studi Politici Economici e Sociali), a Espanha é o país europeu onde os filhos permanecem mais tempo nos lares maternos, o segundo lugar desta classificação é ocupado pela Itália onde, em 1995, 87% dos jovens entre 20 e 24 anos de idade permanece em casa assim como acontece com 56% dos jovens entre 25 e 29 anos de idade. Valores em tudo similares se registam também em Portugal e Grécia, com uma clara tendência no sentido de um gradual aumento. Noutros países como França, Alemanha e Suécia, a saída do lar coincide, em média, com os 20 anos de idade. Nos EUA, a idade desce para os 16-18 anos. - Fonte: www.gazzettino.it, consultado em 19 Julho 1999, para mais informações, consultar o documento Quality of life in Europe produzido pela European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities, 2004 - www.eurofound.eu.int.

470

SAVATER, Fernando. 2006. O valor de educar. Lisboa: Dom Quixote, p. 63. 471

Idem, p. 70. 472

DELORS, Jacques (1996). Educação, um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da

Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Paris: UNESCO. Versão electrónica

consultada de: http://unesdoc.unesco.org/ulis/ em Junho de 2006, p. 27. 473

anterior aos anos 50-60 que “se empenhava no aparecimento de um ser adulto

interiorizado no sentido de ter interiorizado as normas dominantes do grupo a que pertence, passamos com os anos 60 para um adulto que se constrói projectando para o exterior”474. Um adulto apto para adoptar, de forma muitas

vezes alternada, uma das inúmeras personalidades fictícias e efémeras que se encontram à sua disposição num cenário social instável e efémero.

Para ter uma noção das mudanças que se deram no último século no âmbito da população estudantil do ensino universitário, poderá citar-se uma carta que Lyonel Feininger, um dos primeiros colaboradores de Gropius na Bauhaus, enviou à mulher. Feininger relatava que os alunos eram altamente responsáveis, isto porque muitos deles já tinham combatido na guerra475. A guerra era, na altura, uma

experiência extremamente violenta mas incontestavelmente formativa; os jovens que, desde muito cedo, tinham sido chamados para os campos de batalha, desenvolviam um elevadíssimo sentido de responsabilidade, uma vez que nestes contextos o que está em causa é a vida humana, o valor mais elevado do homem. As experiências desta intensidade e responsabilidade são algo que, felizmente, os jovens da actualidade desconhecem por completo; os que tiveram parentes que participaram em algum conflito receberam uma imagem por interposta pessoa que nunca poderá ter a força da vivência directa. Evidentemente, a participação numa guerra representa um dos casos mais extremos e menos desejáveis na formação de um homem, todavia é paradigmática para compreender quanto, desde então, mudou nas camadas mais jovens da população e, nomeadamente, nos grupos estudantis que, cada ano, ingressam no sistema do ensino.

Inserido neste contexto, o sistema de ensino universitário não só requer do indivíduo uma auto-responsabilização acrescida na escolha do próprio percurso escolar, como é o caso do Processo de Bolonha, como lhe pede, antes disso, que

474

BOUTINET, Jean-Pierre. s/d. A imaturidade da vida adulta. Porto: Rés Editora, p. 49. 475

decida, desde muito cedo, um caminho para o seu futuro profissional476. Neste

sentido, o ensino secundário representa uma “plataforma giratória de toda uma

vida”477 na qual as decisões tomadas irão ter repercussões ao longo do resto da

vida do sujeito.

Com a progressiva diluição do tempo de aprendizagem necessário e suficiente para garantir o ingresso na vida profissional activa, e com o adiamento dos processos de autonomização do sujeito, o ensino universitário sofreu, nas últimas décadas, o efeito de duas tensões aparentemente opostas: por um lado, a necessidade de uma especialização que procure delimitar e aperfeiçoar o âmbito de competências do aluno, na tentativa de uma feliz colocação no mercado do trabalho; por outro, a obrigatoriedade em lidar com sujeitos cujo perfil humano está ainda em formação, necessitando, muitas vezes, de uma componente disciplinar acrescida às meramente pedagógicas ou didácticas.

A escala do problema torna-se rapidamente visível quando se considera que, por exemplo, “as projecções efectuadas pelo Banco Mundial mostram que, em

especial nos países de baixo rendimento as crianças com menos de cinco anos constituirão ainda em 2025 o grupo mais numeroso da pirâmide etária”478, ou que

o número absoluto de jovens com menos de quinze anos aumentou, passando de 700 milhões em 1950 para 1,7 biliões em 1990. Disto resulta uma pressão sem precedentes sobre os sistemas educativos à escala mundial, solicitados até ao extremo limite das suas capacidades e, por vezes, bem além dessas mesmas. O esforço feito na tentativa de acompanhar estes fenómenos existe: hoje em dia mais de um bilião de jovens no mundo são escolarizados, isto é, perto de um quinto da população mundial; quando, em 1953, eram apenas cerca de 300 milhões, numa população de 2 681 biliões479. Mesmo com a diminuição de natalidade registada

476

BOUTINET, Jean-Pierre (1990). Antropologia do projecto. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 19.

477

DELORS, Jacques (1996). Educação, um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da

Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Paris: UNESCO. Versão electrónica

retirada de: http://unesdoc.unesco.org/ulis/ em Junho de 2006, p. 134. 478

Idem, p. 178. 479

sobretudo nos países mais desenvolvidos, o acesso à educação tem, felizmente, uma tendência natural para aumentar.

Neste cenário resultam alteradas não unicamente as condições das capacidades decisórias do aluno mas, também, a sua relação com o docente que, diante da imaturidade dos jovens discentes, terá duas opções: “procurará reforçar

a sua identidade de adulto, a distender a separação, a fazer-se demasiadamente amadurecido, ou então a ceder à tentação da imaturidade. Num ou noutro caso, ele adultera-se, força a sua própria identidade, será um adulto inventado para a situação“480

; pois, como afirma Boutinet, “o adulto, porque socialmente inserido e

pragmaticamente eficaz nos papéis que desempenha, é a única referência possível para as outras categorias etárias (...) por outro lado, procura afastar-se voluntariamente desta impressão de estabilidade que se entende impor-lhe, porque lhe parece demasiado envolvente; os actuais testemunhos de adultos evidenciam a sua preocupação de se manter jovens o máximo tempo possível, até mesmo adolescentes, nunca deixarem de crescer, mantendo-se neoténicos, sempre em busca de realizações a completar, de acções a recomeçar com a preocupação de conservar uma réstia de juventude, um gosto permanente do inédito”481. O

autor chega à conclusão de que “é erróneo o postulado segundo o qual o homem

deveria ser determinado, quer dizer, firme nos seus conceitos, categórico nas suas declarações, claro nas suas ideologias, apaixonado nos seus gostos, responsável nas suas palavras e nos seus actos, preciso e cristalino na sua maneira de ser ... O nosso elemento é a eterna imaturidade”482.

O que se verificou foi, em suma, um progressivo adiamento no que respeita ao crescimento intelectual do sujeito. Sem querer entrar no mérito de um possível atraso no desenvolvimento cognitivo, assunto tanto ambíguo como polémico, poderá afirmar-se que a nova configuração etária, presente no âmbito do ensino do

480

CARVALHO, Joana de, na exposição preliminar do livro: BOUTINET, Jean-Pierre. s/d. A

imaturidade da vida adulta. Porto: Rés Editora p. 6.

481

BOUTINET, Jean-Pierre. s/d. A imaturidade da vida adulta. Porto: Rés Editora, p. 19. 482

Witold Gombrowicz, em Mémoires de maturation (1933), citado por BOUTINET, Jean-Pierre. s/d. A imaturidade da vida adulta. Porto: Rés Editora, p. 6.

projecto, afecta as suas rotinas didácticas uma vez que a acção projectual se alimenta da experiência, tanto no que respeita às necessárias tomadas de decisão como no que se refere ao conhecimento necessário para as práticas intelectuais de natureza sintética e crítica. Uma evidente consequência, ou causa, deste fenómeno pode ser registada pelo próprio sistema educativo que está, progressivamente, a diluir a carga intelectual sobre o aluno e, paralelamente, a aumentar o tempo de permanência deste nas suas instituições. O tempo de “incubação” profissional sofreu, desta forma, um claro aumento que se reflecte numa sociedade adulta profundamente diferente da sua homóloga da geração anterior. A “eterna

imaturidade” de Boutinet parece assim representar um limbo cognitivo que retira

parcialmente aquela carga de responsabilidade social e, consequentemente ética, que esteve, e ainda está, associada ao projecto de Arquitectura desde sempre.

A esta nova configuração etária poderá juntar-se a incerteza no que respeita ao conhecimento, à sua complexidade, mas, também, à sua fluidez e rapidez de construção e alteração. Estes aspectos, sem dúvida não exclusivos do ensino do projecto de Arquitectura, representam alguns dos traços dominantes da condição contemporânea passando a fazer parte de um algoritmo cada vez mais longo e de difícil resolução. A imaturidade de Boutinet não é, claramente, uma imaturidade cognitiva; não é, por outras palavras, estupidez. É, isto sim, uma certa incapacidade ou inaptidão para assumir a real complexidade e abrangência das próprias acções aceitando, também, as consequências destas. Provavelmente, envolver o ensino do projecto de Arquitectura por uma gaze filosófica ligeira não seria totalmente despropositado. Elucidar os alunos sobre a importância e o funcionamento dos processos de tomada de decisão, por exemplo, ou sobre os seus contornos éticos, epistemológicos ou meramente processuais, permitiria a solidificação de uma base intelectual e reflexiva que lhes irá servir, não unicamente enquanto profissionais mas, também, e sobretudo, enquanto seres humanos.