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2 Ensino do projecto de Arquitectura: do conceito ao projecto

2.4 Ensino do projecto e modernidade

“É necessário voltar a pensar com a mesma lógica clara que utilizaram os

construtores das épocas fecundas da história da arquitectura, ser tão sinceros com os materiais e os programas do presente como eles o foram com os da sua época. Só deste modo a arquitectura da modernidade poderá superar a estéril imitação dos estilos antigos, explorar as infinitas possibilidades que o progresso científico e técnico lhe oferece e criar um novo estilo, a arquitectura que expresse e impulsione este processo.”

Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc279

Ao longo da modernidade o ensino do projecto de Arquitectura processou- se segundo um paradigma de transmissão de um conhecimento universal e partilhado, tendo só tardiamente, com a experiência da Bauhaus, assistido a uma abertura para um conhecimento exclusivo, fruto da experiência e do carácter individual do sujeito. Todavia, tanto nas primeiras manifestações do século XV como no paradigma da École francesa ou da Bauhaus, a força ideológica da ideia de projecto fundava-se nas retóricas da ideia de progresso e destas recebia um poder legitimador que residia na base e no próprio funcionamento de um ensino fortemente ancorado no princípio positivista de acumulação e transmissão de conhecimento. Inserido neste contexto, o Movimento Moderno representou a manifestação extrema, no âmbito do projecto de Arquitectura, de uma atitude ideológica de matriz maioritariamente racionalista que, desde o século XV, representava ainda um conceito abstracto mas já fortemente influente nas condutas intelectuais do ocidente. Um conceito projectual residente no campo da Arquitectura e que acompanhou o seu percurso intelectual onde, segundo Montaner, “nos momentos culminantes da procura da utilidade, o racionalismo

na arquitectura coincide sempre com o funcionalismo, isto é, com a premissa de que a forma é um resultado da função: o programa, os materiais, o contexto” 280.

As soluções que a arquitectura da modernidade foi fornecendo à sociedade não possuíam, desta forma, uma interpretação individual e eram caracterizadas pela

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VIOLLET-LE-DUC, Eugène-Emmanuel, 1864. “Entretiens sur l’Architecture”. Em HEREU, Pere, Josep Maria Montaner e Jordi Oliveras. 1994. Textos de Arquitectura de la Modernidad. Madrid: Nerea, p. 139 – tradução livre.

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pouca negociação contextual. As últimas experiências do pós-guerra europeu, apesar de terem sido justamente criticadas e, como já foi afirmado, representarem o conjunto de contrapontos negativos a uma sucessiva abertura crítica, continham o empenho disciplinar e ideológico que pode ser observado unicamente através de uma crítica historicizada. Os grandes planos de habitação colectiva que, por exemplo, foram projectados nos anos 60 e 70 à luz dos critérios mais extremos produzidos no seguimento dos princípios do Movimento Moderno, e que hoje não só são fortemente criticados como, em alguns casos, demolidos, eram, na altura, uma resposta sinceramente genuína para um problema de proporções nunca enfrentadas281

. Quando muito poderá apontar-se à modernidade o facto de ter demasiado frequentemente alterado, de forma artificial e abusiva, os termos do problema do habitar humano para poder dar uma resposta que, muitas vezes, tinha a força de um manifesto, o produto de uma vanguarda. Mas também se terá que registar que estes exemplos, fracassados ou não, foram, de facto, a oportunidade que o Movimento Moderno teve de concretizar uma ideia de cidade, de habitação e, em suma, de Arquitectura. Por paradoxal que possa parecer, foi mesmo no momento em que se manifestou em grande escala, que foi de facto única devido às destruições de dois conflitos, que o Movimento Moderno mostrou toda a duplicidade existente na ideia de modernidade e, sobretudo, que abriu o flanco a uma crítica. Uma crítica cerrada que, mais tarde, irá decretar a sua morte mesmo alegando o excessivo idealismo que residia na base destes seus últimos actos282.

Esta visão, fortemente ideológica, do projecto de Arquitectura transferiu-se para o ensino, onde as condições simulatórias facilitavam uma sua aplicação e implementação por parte dos alunos. O ensino era, assim, um ensino de episteme, de um discurso estável e fundado através de um método maioritariamente positivista que podia ser transmitido e acumulado. Um episteme construído através da aplicação de um método científico objectivo, verificável e

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Ver nota no capítulo 1.2 - Primeira abordagem ao argumento, acerca do conjunto habitacional Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri.

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transmissível, a todos os campos disciplinares, incluíndo o da Arquitectura. O princípio da evidência, como princípio de conformidade com um modelo referencial, esteve na base do ensino de projecto que, desde o século XV, ficou marcado por uma certa inibição ontológica da ligação que une o habitar ao projecto e que se manifestou através das várias tentativas de axiomatização as quais procuraram instaurar um modelo de correspondência unívoca entre condição habitacional e proposta projectual283. Neste âmbito, a axiomatização manifestava

um evidente protagonismo da ideia de progresso em relação à de projecto, uma vez que estava subjacente uma ligação directa entre a aplicação da regra e um resultado qualitativamente positivo. As referências mecanicistas, os edifícios industriais, as “máquinas para habitar” de Le Corbusier eram claras linhas de pensamento onde a acção projectual era subjugada à ideia de progresso, e se encontrava fortemente centrada numa ideologia tecnocrática. “Um axioma do

projecto do iluminismo, por exemplo, afirmava que para cada pergunta podia existir unicamente uma resposta.”284 E isto significava que, para se controlar o

mundo, tinha que se descrevê-lo de forma correcta através de uma representação certa. Descobrir esta forma de observar e descrever o mundo significava ganhar o poder de controlá-lo.

O ensino da modernidade enquadrava-se, assim, num “programa

tecnológico”285

geral. Toda e qualquer profissão era considerada como um agente do programa tecnológico onde tinha que ser mantida e implementada uma disciplina teórica e epistemológica rígida, através de um sistema de ensino igualmente rígido, veículo para a aplicação de um conhecimento científico acumulável. As últimas experiências de ensino, como foram as da Bauhaus e a de Ulm, procuraram renovar um interesse crítico num “saber fazer” de cariz medieval em detrimento de um mecanicismo iluminista; todavia o substrato teórico subjacente a estas escolas encontrava-se demasiado forte e espesso para

283

Ver capítulo 3.7 - A reacção disciplinar da arquitectura. 284

HARVEY, David (1989). La crisi della modernità. Riflessioni sulle origini del presente. Milano: Il Saggiatore, 2002, p. 43 – tradução livre.

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SCHÖN, Donald. (1983). Il professionista riflessivo. Per una nuova epistemologia della

que se desse ouvidos maioritariamente à experiência subjectiva. Para dar conta de grandes ideais era necessário, antes disso, que a prática respeitasse as grandes ideias.

O processo projectual ligado à ideia de modernidade assumiu, assim, ao longo das primeiras décadas do século XX, as formas do modernismo. Este, enquanto movimento intelectual de natureza ideológica e estética, forneceu os paradigmas formais que desenvolveu no seio das vanguardas286. A sua consciência

nasceu principalmente de um sentimento de ruptura com o passado, um impulso para a criação, fractura declarada com todas as ideologias e teorias da imitação, cuja base é a referência ao antigo e a tendência para o academismo287. Boudelaire,

que lançou o termo no seu escrito de 1860, Le peintre de la vie moderne, defende uma modernidade que ganha relevância e pertinência pelo facto de ser, simplesmente, presente. Partindo deste princípio, a cada época corresponde uma “moda”, um “olhar” e um “gesto”. São esta moda, este olhar e este gesto que a Arquitectura, envolvida pelas dinâmicas artísticas suas coetâneas, procura na sua pesquisa formal. Uma pesquisa que se revela e se encontra destilada nas obras do Movimento Moderno mas também, em geral, em todas as correntes que aglutinaram as propostas projectuais da Arquitectura nas primeiras décadas do século XX. Mas também que serviram de alimento para os processos pedagógicos que naqueles anos desenvolviam a própria actividade.

Todavia, as mesmas alterações que transformaram “o mundo da

representação e do conhecimento”288, surtiram, nos finais do século XX, os seus

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HARVEY, David (1989). La crisi della modernità. Riflessioni sulle origini del presente. Milano: Il Saggiatore, 2002.

287

LE GOFF, Jacques. 1984. Entrada “Antigo/Moderno” em Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Organizado por Ruggiero Romano (ed. italiana) e Fernando Gil. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

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David Harvey coloca 1848 como uma data de charneira na qual o projecto iluminista (baseado no axioma de que a cada pergunta correspondia uma única resposta) começa a fragilizar-se. Nas palavras do autor, “a solidez categórica do pensamento iluminista era contestada com cada vez

mais frequência e acabou por ser substituída por sistemas de representação divergentes. Em Paris, escritores como Baudelaire e Flaubert e pintores como Manet começaram a explorar a possibilidade de utilizar diferentes formas de representação seguindo métodos que lembravam a

efeitos, com máxima intensidade, provocando uma progressiva diminuição no pensamento iluminista e, em geral, numa ideia de progresso fundada unicamente nos avanços e na pesquisa científica ou tecnológica minando as bases do pensamento ocidental de forma irreversível. Um novo cenário intelectual foi-se desenvolvendo à volta de um ensino do projecto de Arquitectura contaminando-o nas suas rotinas cognitivas e ideológicas mais profundas e afectando, como será abordado nos capítulos seguintes, tanto a ideia de projecto como as suas rotinas processuais e o seu enquadramento filosófico e epistemológico.

descoberta das geometrias não euclidianas, descoberta que pulverizou a suposta unidade da linguagem matemática do século XIX. (...) um período que viu também uma extraordinária vitalidade nas artes (Matisse, Picasso, Brancusi, Duchamp, Braque, Klee, de Chirico, Kandinskij, presentes com muitas das próprias obras no famoso Armory Show em Nova York em 1913, exposição visitada por mais de 10 000 pessoas por dia), para não falar das fundamentais mudanças na linguística (o estruturalismo de Saussure, segundo o qual o significado das palavras é dado pela relação destas com outras palavras e não pela sua relação com os objectos, é de 1911) e na física (após a teoria geral da relatividade de Einstein com a ligação material das geometrias não euclidianas). Outro tanto importante, como se verá, é a publicação dos ‘Princípios de organização científica do trabalho’ de F. W. Taylor em 1911, dois anos entes da primeira introdução da cadeia de montagem, por parte de Henry Ford, no estabelecimento de Deaborn no Michigan”. Em HARVEY, David (1989). La crisi della modernità. Riflessioni sulle origini del presente. Milano: Il Saggiatore, 2002, p. 44 – tradução livre.