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3 As mudanças do cenário intelectual

3.6 Projecto e novas possibilidades

“De facto, não há decisão que se possa tomar acerca de coisas impossíveis.

E caso alguém diga que coisas impossíveis podem ser decididas, é parvo.”

Aristóteles410

Não é unicamente a alteração e diferenciação da ideia de progresso que provocou uma profunda alteração no projecto e, por consequência, no ensino do projecto de Arquitectura. Da ligação com a ideia de futuro, o projecto recebe, também, um dos seus traços marcantes, o qual se encontra na sua estrita ligação com o domínio das possibilidades. Segundo Calvo, o projecto é “algo que,

relativamente ao futuro, pode ser qualificado como possível”411, defendendo que

não existe projecto diante da impossibilidade ou, de forma geral, da falta de condições para a sua realização.

De um ponto de vista teórico, o projecto de Arquitectura encontra a sua plenitude no domínio do possível só quando a obra se encontra realizada412

. Pois

“não há projecto senão através de uma materialização da intenção, a qual, no acto da sua realização, cessa de existir como tal”413. Ao longo do processo

projectual, que visa antecipar todas as alterações necessárias à realização da obra, e no compasso de tempo que o separa da finalização desta, existe um número virtualmente infinito de negociações que são ocasionadas por factores que, desde as intenções primárias até às últimas decisões, tomadas já no âmbito e no cenário da construção, determinam a exequibilidade do projecto. Neste sentido, poderá

410

ARISTÓTELES. 2004. Ética a Nicómaco. Lisboa: Quetzal Editores p. 64. 411

CALVO, Francesco. 1992. Entrada “Projecto”, em Enciclopédia Einaudi. Vol. 25. Organizado por Ruggiero Romano (ed. italiana) e Fernando Gil. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 59.

412

Poderá contudo afirmar-se que a relação entre um tempo processual do projecto (curto) e um tempo histórico (longo), no qual se encontra inserido, depende da própria natureza do projecto. No caso do projecto urbano, por exemplo, existe uma clara sobreposição e contaminação mútua entre um tempo longo e o curto, uma vez que é muito difícil determinar definitivamente quando a actividade projectual acaba. Nestes casos o tempo projectual depende profundamente de um tempo histórico e das mudanças que nele se processam ao longo dos anos.

413

BOUTINET, Jean-Pierre (1990). Antropologia do projecto. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 23.

afirmar-se que o projecto se encontra num estado de instabilidade desde os seus primeiros momentos até à realização da obra, momento em que, por definição, deixa de existir414. Por outras palavras, o projecto propriamente dito possui um

tempo de vida que acaba no instante da sua finalização.

Isto significa, desde já, que a linha que conduz a conduta projectual é visível só a posteriori e nunca a priori ou ao longo do processo. Mais especificamente, no âmbito da Arquitectura, o projecto é fruto de uma negociação entre um conjunto de intenções de carácter formal, tecnológico ou económico (mas também político, social, etc.) que conduzem para uma sua aplicabilidade ou exequibilidade no domínio do real. Todo o processo projectual representa um percurso que, desde uma condição desconhecida, vai em direcção a uma condição conhecida e determinada. Ao longo desse processo, com o aumento do conhecimento, aumenta proporcionalmente o grau de realizabilidade do projecto uma vez que a sucessão de adaptações, que aproximam a conduta intelectual do sujeito do âmbito do possível, e do realizável, representa um vector de força cuja força de impulso resulta ser directamente proporcional ao seu conhecimento. O carácter comprovativo refere-se, no âmbito do projecto de Arquitectura, à necessidade de manter o processo exploratório e de natureza heurística no domínio da possibilidade. Neste sentido, o comportamento oscilatório da pesquisa projectual é determinado pela sucessão de aceitações e de recusas que o acompanham diferenciando-se profundamente da acção técnica uma vez que, como afirma Fernando Lisboa, esta última é caracterizada por uma “finalidade pré-

determinada por um modelo ou um objectivo que lhe é anterior”415. Uma acção

técnica que não necessita, portanto, de legitimação e, tão-pouco, de validação no âmbito do possível.

O desfasamento que separa o domínio do possível do impossível ou do irrealizável é aquele que separa o projecto da utopia416. Todavia o pensamento

414

Ver capítulo 5.1 - Projecto de Arquitectura e indefinição. 415

LISBOA, Fernando. 2005. A Ideia de Projecto em Charles S. Peirce - ou da teoria do projecto

considerada como uma semiótica. Porto: FAUPpublicações, p. 41.

416

O termo utopia deriva do grego ou (não) e tópos (lugar), significando lugar que não existe, não- lugar. Este termo foi utilizado, pela primeira vez, por Thomas More na sua obra homónima, em

utópico não anula, por si só, o projecto, dado que este encontra, justamente, na impossibilidade a sua carga projectual417. A impossibilidade do projecto utópico é

fruto de um posicionamento intelectual418 do sujeito e não duma sua

incompetência (que raramente se demonstrou impeditiva do que quer que seja) ou de um conjunto de factores contingentes. O projecto utópico não procura estruturar soluções mas sim indicar direcções419, possíveis vectores projectuais na

perfeita consciência de que não é possível (e muitas vezes nem desejável) uma directa aplicação das suas intenções. É mesmo devido a esta carga ideológica, possivelmente meramente teórica do projecto utópico que Tafuri declara, na introdução do seu ensaio Projecto e Utopia, de 1973, que o desenvolvimento capitalista retirou à Arquitectura e às suas prefigurações ideológicas a possibilidade de participar numa construção ideológica mais complexa e articulada. Nas palavras do autor, “deste ponto de vista é-se conduzido quase

automaticamente à descoberta daquilo que pode parecer igualmente o «drama» da arquitectura, hoje: o de ver-se obrigada a voltar a uma ‘arquitectura pura’, exemplo de forma privada da utopia, nos melhores dos casos, sublime inutilidade”420.

As alterações ocorridas tanto nas rotinas de produção projectual como nas rotinas de consumo dos produtos projectuais provocaram, nas últimas décadas, uma mudança no que respeita aos critérios tradicionalmente adoptados para

1516, para indicar um lugar socialmente perfeito. Resulta interessante registar como, mais recentemente, o termo “não-lugar” tem sido ressuscitado pelo antropólogo francês Marc Augé para indicar lugares urbanos e não urbanos, em contraposição com o conceito de lugar antropológico. Não-lugares como lugares que, segundo o autor, não possuem história, identidades ou relações; que servem unicamente de passagem, de ligação para outros lugares. A mesma expressão, após quinhentos anos de utilização, ganhou um significado diametralmente oposto. AUGÉ, Marc. (1992). Non luoghi. Introduzione a una antropologia della supermodernità. Milano: Eléuthera, 2005.

417

GREGOTTI, Vittorio (1966). Il territorio dell’architettura. Milano: Feltrinelli Editore, 1993. p. 19.

418

Tomás Maldonado define a utopia como um “projectar sem fazer” em contraposição ao jogo que, segundo o autor, é um “fazer sem projecto”. MALDONADO, Tomás. 1970. La speranza

progettuale. Torino: Einaudi.

419

GREGOTTI, Vittorio (1966). Il territorio dell’architettura. Milano: Feltrinelli Editore, 1993, p. 19.

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determinar o grau de possibilidade projectual. Ao alterar o domínio da possibilidade alteram-se, naturalmente, o domínio dos que tradicionalmente se encontram numa relação fronteiriça de contiguidade com esta: a impossibilidade. Mas, e sobretudo, foram renegociados os limites que separam o projecto de Arquitectura da utopia uma vez que os limites da impossibilidade se foram gradualmente atenuando. A sociedade pós-industrial, que já não funda as suas dinâmicas de produção, veiculação e de legitimação na produção dos objectos materiais, atribui à imagem um valor de consumo que já não está em estrita ligação com o elemento representado421

. Esta nova configuração que, por exemplo, encontra nas imagens produzidas, com o auxílio das tecnologias digitais, uma ferramenta de implementação extremamente poderosa, atribui ao projecto um novo âmbito de possibilidade que já não se encontra limitado e confinado pela possibilidade construtiva concreta como no caso específico da obra de Arquitectura. Além disso, o próprio valor projectual, considerado como valor qualitativo de cada solução arquitectónica, resulta ser fortemente afectado e contaminado pelas formas e pelos meios através dos quais a própria proposta é apresentada, transmitida e veiculada422.

Apesar de ainda existir um elevado grau de materialidade que caracteriza necessariamente a Arquitectura e que, em última análise, a remete para uma necessária racionalidade e pragmaticidade, os avanços tecnológicos que pautam, com uma crescente frequência, o conhecimento tecnológico da disciplina abrem contínuos novos horizontes de possibilidade423. Se é verdade, como afirma Josep

Montaner, que “a Arquitectura, entre todas as formas artísticas, é a que menos se

421

BAUDRILLARD, Jean (1981). Simulacro e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. 422

Para seguir ulteriormente esta linha de pensamento, ver o conceito de commodification exposto no próximo capítulo.

423

Para compreender as aberturas teóricas e tecnológicas que ocorreram, poderá citar-se Sigfried Giedion que, num ensaio de 1928, afirmava perentoriamente que “O conceito de arquitectura está

ligado ao material pedra. Gravidade e monumentalidade residem na essência deste material, assim como a clara distinção entre partes estruturais e não”. Em: GIEDON, Sigfried (1928).

Bauen in Frankreich. Eisen, Eisenbeton. Em Rassegna - Sigfried Giedion: un progetto storico. 25/1 Março de 1986.

presta a excluir a ideia de racionalidade, e a mais condicionada pela utilidade e pela necessidade”424, é também verdade que, como afirma Ezio Manzini ao

referir-se ao âmbito do design industrial com termos e conceitos que resultam facilmente transportáveis para o da Arquitectura, existem dois aspectos que alteram profundamente o registo da possibilidade projectual: o das crescentes possibilidades no que respeita à manipulação do próprio âmbito disciplinar, como sejam os novos materiais, novas formas de cálculo e de produção, etc., e o da abertura de novos canais de comunicação entre domínios disciplinares diferentes425

. Em suma, se, por um lado, é certamente verdade que a Arquitectura,

“pela sua própria natureza não mente. Não pode mentir”426

, por outro lado, a construção do seu discurso e das suas verdades projectuais é feita cada vez mais recorrendo a campos disciplinares que, quando explorados, renovam e rectificam os processos de legitimação projectual e, sobretudo, os critérios que definem os seus próprios graus de possibilidade.

Considerando o projecto de Arquitectura como manifestação processual que pousa sobre uma plataforma de síntese entre diferentes âmbitos de conhecimento, esta plataforma torna-se o lugar de legitimação como processo intra-disciplinar de contornos e fronteiras epistemológicas incertas caracterizadas por uma geometria variável. Uma plataforma onde o atávico elo entre tecnologias construtivas e solução formal se foi progressivamente dissolvendo em favor de um aumento de liberdade intelectual, expressiva, construtiva e, em geral, projectual. Uma plataforma onde as tecnologias e todos os âmbitos que nele concorrem ao processo projectual já não representam, como era anteriormente, elementos de uniformização formal, mas sim de diferenciação.

Esta plataforma, cuja pertinência e limites disciplinares parecem ser cada vez mais permeáveis, quando mergulhada no líquido das dinâmicas

424

MONTANER, Josep Maria. 2001. A modernidade superada. Barcelona: Gustavo Gili, p. 61. 425

MANZINI, Ezio. 1993. A Matéria da Invenção. Lisboa: Centro Português de Design. 426

SEVERINO, Emanuele. 2003. Tecnica e architettura. Milano: Raffaello Cortina Editore, p. 15 – tradução livre.

implementadas por tecnologias digitais, proporciona um ulterior afastamento entre o pensável, o imaginável e o possível. Não só mudaram os métodos de produção e de representação como, e sobretudo, foram alteradas as formas e as rotinas de validação. Como já foi afirmado, a arquitectura hipertexto que subjaz à validação de uma rede de conhecimento virtualmente homogénea e ilimitada, alterou os critérios de visibilidade e publicidade (e com isso de veracidade) do próprio conhecimento e, com este, do projecto de Arquitectura.

No cenário moderno, a possibilidade era categoria existencial reservada às experiências projectuais construídas sobre um embasamento determinado por uma tradição tecnológica e formal e, em geral, por uma limitação disciplinar. Como será aprofundado no capítulo seguinte, com a pós-modernidade este embasamento não só aumentou substancialmente as suas dimensões como ganhou elasticidade sem, por isso, manifestar fragilidade. A uma franca abertura disciplinar correspondeu uma diversificação no que respeita às tipologias de discurso que passaram a acompanhar as experiências projectuais mantendo, desta forma, um elevado grau de coerência interna e externa (e com esta de credibilidade) para soluções profundamente diferentes ou, até, intelectualmente antagónicas.