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3 As mudanças do cenário intelectual

3.4 Do determinismo para a incerteza

“Até ao começo deste século, o sistema de valores e de normas a que

chamamos ‘cultura ocidental’ havia actuado como um travão que impedia as atitudes extremas. A cultura representava um reportório de instâncias últimas a que era possível recorrer com a confiança de que essas instâncias impunham a sua autoridade sobre as almas. Por exemplo: o homem ocidental tinha fé na razão, o que fazia desta, uma instância suprema à qual devia submeter as contendas e as discrepâncias.” Ortega y Gasset382

No seu livro The Consequences of Modernity383

, o sociólogo norte- americano Anthony Giddens aborda os aspectos terminológicos relativos à passagem da modernidade para a pós-modernidade. Mais especificamente, o autor aprofunda o argumento da confiança do sujeito considerado como o comportamento cognitivo que remete para alguém ou alguma coisa a veracidade ou a qualidade de algo. Apesar de existirem diferenças no que respeita ao enquadramento terminológico, o conceito de confiança está intimamente ligado com o de risco e de perigo. Segundo Giddens, o grau de risco envolvido numa acção que visa determinar um futuro, como é o projecto, é mensurável de forma directamente proporcional ao conhecimento da realidade, enquanto o grau de perigo deriva dos elementos alheios ao conhecimento do sujeito, como são, por exemplo, os que dependem da aleatoriedade da natureza. Logo, arriscar pressupõe algum conhecimento, pois, diferentemente, o perigo existe nos casos em que, por alguma razão, não existem controlo ou conhecimento possíveis sobre a realidade presente e futura. Nesta óptica, ainda segundo o mesmo autor, na época moderna, a noção de risco substitui a de perigo, presente na pré-moderna. O risco substitui a sorte e o sujeito confia no conhecimento como instrumento intelectual para estruturar e legitimar as suas acções futuras. Assim, a confiança é o estado intelectual do homem moderno, uma vez que este se encontra relacionado com um

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ORTEGA Y GASSET, J. 1982. “Apuntes sobre una educación para el futuro”. In Mission de la

Universidad. Madrid: Alianza Editorial, S.A. (p. 225-238) (Trabalho original publicado em 1961),

traduzido por Olga Pombo em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo. 383

conjunto de sistemas abstractos384, numa condição de abstracção espacio-temporal

(em relação à verdadeira natureza e complexidade da acção em causa) que as instituições modernas oferecem. Todavia, a confiança parte do pressuposto de que existe uma verdade, um conhecimento sobre o qual pode construir-se um projecto. E, além disso, que este conhecimento seja de natureza unívoca e inquestionável. Tanto é assim que o mesmo Giddens fala de confiança em sistemas abstractos quando refere a necessidade, face à impossibilidade de adquirir um conhecimento universal, de o sujeito ter de acreditar em algo cuja complexidade e ordem de grandeza não consegue, de facto, alcançar.

A partir do momento em que “a reflexividade da vida social moderna

consiste no facto de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de novos dados adquiridos no seio destas mesmas práticas, alterando assim o seu carácter de forma substancial”385, ou seja, a partir do

momento em que não existe uma solidificação nem das rotinas intelectuais nem dos valores nelas envolvidos, o sujeito encontra-se num estado de incerteza face aos próprios sistemas. Como afirma Edgar Morin, “se conservamos e

descobrimos novos arquipélagos de certezas, também sabemos que navegamos num oceano de incerteza”386. Uma navegação que obriga o sujeito, para

sobreviver, a confiar em algum sistema que lhe forneça, mesmo que pontualmente e temporariamente, uma verdade ou, pelo menos, uma referência para se conseguir orientar.

Verifica-se, assim, a passagem de uma cultura determinista e, como tal, da certeza, da modernidade, para uma cultura da incerteza387. Passagem esta que se

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Um sistema abstracto é, por exemplo, a Medicina, ou o sistema que regula as rotas dos aviões comerciais, ou ainda os sistemas digitais. O sujeito, excluindo raríssimas excepções, não consegue conhecer a totalidade do sistema e do seu funcionamento sendo, contudo, obrigado a confiar nele ou num seu representante.

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GIDDENS, Anthony (1990). Le conseguenze della modernità. Bologna: Il Mulino, 2003, p 46 – tradução livre.

386

MORIN, Edgar (1999). La testa ben fatta. Riforma dell’insegnamento e riforma del pensiero. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2000, p. 59 – tradução livre.

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manifestou, segundo Boutinet, nos finais dos anos 60 do século XX, nas primeiras interrogações sobre o crescimento da sociedade; no fim da “sociedade de pleno

emprego”; numa recusa a proibir; numa cultura hedonista de 68 que provocou

uma derrota, que se revelou, sem dúvida, provisória, do moralismo e das suas diferentes variantes388. Uma condição que, segundo Baudrillard, não representa

uma nova configuração mas uma constante histórica da humanidade cuja visibilidade aumentou devido a uma sua progressiva compreensão. Segundo o filósofo francês, “jamais houve uma economia - uma organização do valor que

tenha uma coerência estável, um destino universal, um sentido? No absoluto: não. Terá mesmo jamais havido um 'real'? Nesse abismo da incerteza, o real, o valor, a lei são excepções, fenómenos excepcionais. A ilusão é a regra fundamental”389.

Uma incerteza que se tornou mais visível, uma vez que, como já afirmado, a capa protectora da modernidade não resistiu aos ataques da realidade do século XX, mostrando a verdadeira dialéctica existente por detrás das complexas retóricas que, de alguma forma, conseguiram conduzir a humanidade ao longo de mais de cinco séculos. Uma dialéctica cuja existência, segundo Eric Hobsbawm, continua destorcida por uma sistemática “destruição do passado” onde se assiste a uma

“destruição dos mecanismos sociais que associam a experiência contemporânea com a das gerações anteriores”390. Uma destruição que, ainda segundo o

histórico, implica uma vivência num “presente permanente”, sem nenhum tipo de relação organiza entre um tempo histórico e um presente. Uma destruição, a de Hobsbawm, necessária à ilusão de Baudrillard, num processo de esquecimento colectivo e selectivo só pontualmente pautado por acontecimentos que, de alguma forma, atiram intelectualmente a sociedade para o seu passado e, por vezes, para as suas culpas391. Como afirmou, em 1984, o histórico Jacques Le Goff,

388 Idem. 389

BAUDRILLARD, Jean (1976). A troca simbólica e a morte. Lisboa: Edições 70, 1996. 390

HOBSBAWM, Eric (1994). Il secolo breve 1914/1991. Milano: Rizzoli. 1995. p. 13 - tradução livre.

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No dia 20 de Outubro de 2008, numa sentença sem precedentes, um Supremo Tribunal italiano condenou o estado alemão pelas mortes que ocorreram, no dia 29 de Junho de 1944, quando os nazis, por retaliação junto da população de Civitella, executaram (com particular crueldade e frieza) 203 pessoas.

“sobretudo desde há cinquenta anos, se impunha a ideia de que não só o progresso moral não tinha seguido o progresso técnico, mas que tinha também efeitos deletérios sobre a moralidade individual e colectiva”392. Os

acontecimentos que marcaram o século XX demonstraram que “o homem não

mata só nas noites, no escuro das suas paixões; mas também nos dias, à luz da sua racionalidade”393. Assim, a compreensão de que a acção humana conduzida

por um progresso tecnológico e científico não representa, à partida, um desenvolvimento social e, em geral, humano, é relativamente recente394.

A incerteza, estritamente ligada à fluidez da construção de significado presente nos jogos linguísticos de Wittgenstein, substitui o determinismo que estava na base da atitude prescritiva da modernidade. Até no domínio da técnica, tradicionalmente considerado como unívoco, “o seu prodigioso avanço deu lugar

a inventos nos quais o homem, pela primeira vez, fica aterrado com a sua própria criação. Em nada como aqui aparece clara a situação actual do homem: é como se tivesse chegado à fronteira de si mesmo. A técnica que foi criando e cultivando para resolver os problemas – sobretudo materiais – da sua vida, converteu-se, ela mesma, prontamente, num angustioso problema para o homem”395. Mesmo “nas

fundações mais íntimas das ciências fundamentais – Física, Matemática e Lógica – que são como barras de ouro que garantiam o crédito da nossa cultura, descobriremos sintomas de alguma maneira parecidos com os mais visíveis e grandiosos que acabo de recordar. Neste caso – e é mais uma prova do carácter exemplar destas ciências – esses sintomas estranhos não procedem de uma

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LE GOFF, Jacques. 1984. Entrada Progresso/reacção em Enciclopédia Einaudi. Nº 1 Memória- História. 1984 Organizado por Ruggiero Romano (ed. italiana) e Fernando Gil. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. p. 338.

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MORIN, Edgar (1973). O Paradigma Perdido. Lisboa: Publicações Europa-America, 2000, p. 53.

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Neste âmbito, Reboul regista uma mudança terminológica sintomática ao dizer: “Já não se fala

em progresso, mas de ‘desenvolvimento’ das ciências e das técnicas.” Reboul em KECHIKIAN,

Anita. 1993. Os Filósofos e a educação. Lisboa: Edições Colibri. p. 49. 395

ORTEGA Y GASSET, J. 1982. “Apuntes sobre una educación para el futuro”. In Mission de la

Universidad. Madrid: Alianza Editorial, S.A. (p. 225-238) (Trabalho original publicado em 1961)

decadência das disciplinas citadas ou de que sejam cultivadas defeituosamente, antes pelo contrário. Foi precisamente o glorioso progresso que essas ciências produziram nos últimos tempos que produziram o fenómeno que, talvez inadequadamente, se costuma chamar ‘crise dos princípios’ na Física, Matemática e Lógica.” 396

A multiplicidade e ubiquidade do conhecimento criaram, assim, um panorama intelectual onde o sujeito se encontrou tanto na possibilidade como na obrigação de duvidar. Verdades diferentes, às vezes opostas, encontram-se hoje igualmente legitimadas e homologadas, tornando cada vez mais pertinente o problema da escolha de uma tomada de posição que permita ao indivíduo avançar e de não ficar retido pela indecisão entre soluções igualmente válidas, assim como aconteceu ao asno de Jean Buridan. Diante de um conhecimento que se torna fragmentado pela ausência de meta-narrativas universais de legitimação em pedaços equivalentes e/ou contraditórios, o ensino vê-se na obrigação de alterar os pressupostos da sua acção, sob pena de se transformar numa instituição conservadora baseada num dogmatismo reaccionário.

A nova configuração intelectual levanta problemas tanto no que respeita à transmissão de conhecimento como na sua validação por parte de docentes e alunos. A incerteza, como nova condição cognitiva, caracteriza os processos de tomada de decisão envolvidos no exercício projectual, uma vez que o actual panorama arquitectónico e, mais geralmente, artístico, não se limita a uma ou poucas linhas orientadoras dominantes, encontrando-se, pelo contrário, assente num extenso e complexo conjunto de linhas de pensamento, de produção e de crítica, oriundas dos quadrantes mais longínquos e suportadas por rotinas de legitimação locais mas nem por isso menos válidas.

A incerteza é, portanto, uma condição intelectual da actualidade. É a incerteza de Morin397 segundo o qual conhecer e pensar nunca significa chegar a

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ORTEGA Y GASSET, J. 1982. “Apuntes sobre una educación para el futuro”. In Mission de la

Universidad. Madrid: Alianza Editorial, S.A. (p. 225-238) (Trabalho original publicado em 1961)

traduzido por Olga Pombo em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo. 397

MORIN, Edgar (2000). I sette saperi necessari all’educazione del futuro. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2001.

encontrar verdades absolutas398, sendo antes dialogar num processo de contínua

negociação. Torna-se imperativo, no âmbito do ensino, uma educação para a incerteza, para a escolha e, muitas vezes, para a própria frustração. Neste sentido, ensinar na incerteza não deve significar, necessariamente, ensinar na insegurança, na precariedade ou na fragilidade; significa, em vez disso, habituar o aluno a percorrer terrenos movediços, a transformar a vertigem num novo equilíbrio dinâmico para poder pensar em sistemas complexos mas flexíveis com renovada agilidade.

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Segundo Morin, existem duas grandes incertezas: a cognitiva e a histórica. A cognitiva possui três tipos: cerebral (o conhecimento nunca é um reflexo do real, mas sempre tradução e reconstrução, ou seja, possui riscos de erro); física (o conhecimento dos factos fica sempre a dever à interpretação); epistemológica (deriva da crise dos fundamentos de certezas da filosofia – a partir de Nietzsche – e depois da ciência – a partir de Bachelard e Popper). Conhecer e pensar nunca é chegar a verdades absolutas, é antes dialogar com a incerteza. A incerteza histórica é estritamente ligada ao carácter caótico da história humana. Existem demasiados factores que alteram o percurso histórico do homem.