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4 O ensino do projecto de Arquitectura face à pós-modernidade

4.2 Massificação e medianidade

“Os professores devem lembrar sempre, ainda que os outros esqueçam, que

as escolas servem para formar gente sensata, e não santos. Não vá dar-se o caso de, por querermos tornar os jovens bons de mais, não os ensinemos a sê-lo o suficiente.” Fernando Savater 483

Desde o século XVIII, certamente com maior intensidade no espaço europeu, assistiu-se a um processo de massificação e de democratização da educação. A educação tornou-se um direito socialmente consagrado e abrangido por um devido enquadramento legal484. No cenário do pós-guerra, este empenho

colectivo teve um ulterior incremento ganhando novo vigor. Além disso, num momento de euforia económica, à escala mundial, criaram-se as condições para que o processo de reconstrução exigisse um grande esforço profissional por parte da Arquitectura. As últimas décadas do século XX coincidiram com a reconstrução das cidades castigadas pelos conflitos, passando pelas grandes e médias infra-estruturas até à urgência na necessidade de habitação colectiva, tendo também coincidido com a fase inicial de um processo de massificação do ensino que, em muitos países, ainda se encontra em fase de crescimento.

Estas dinâmicas não deixaram isento o ensino de Arquitectura que, face à urgência e abrangência do pedido, encontrou-se frequentemente dividido entre uma necessidade de apostar num modelo de elevada qualidade e uma outra, estrutural, ideológica e funcionalmente diferente, de acompanhar um processo de massificação na tentativa de produzir uma elevada quantidade de profissionais (mesmo que isto fosse em claro detrimento da preparação de cada um). Por um lado, a necessidade de proporcionar à sociedade recursos humanos com um elevado nível de competências e capacidades profissionais, admitindo a possibilidade de levar a cabo um ensino exclusivo se não mesmo elitista; por outro lado, a urgência em tentar moldar o conjunto de sujeitos medianos que se

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SAVATER, Fernando. 2006. O valor de educar. Lisboa: Dom Quixote, p. 91. 484

CONDORCET, Marquês de Marie Jean Antoine Nicolas Caritat (1792). Ecrits sur l'Instruction

publique, tome II, "Rapport sur l'Instruction publique". Paris: 1792. Edilig, p. 81-87. Versão

tornarão naturalmente responsáveis pela esmagadora maioria dos projectos realizados.

Com a massificação do ensino de Arquitectura e o consequente aumento dos profissionais formados, aumentou naturalmente o número de arquitectos com competências medianas para o exercício da profissão485. Desta forma, o

património construído passou a ser fruto das acções de profissionais cuja formação e capacidades estão muito aquém daquela excelência patente, por exemplo, nas revistas do sector, e que se mantém relegada para episódios esporádicos, não representando, infelizmente, nenhum tipo de constante na profissão. O aumento progressivo de soluções formais e tecnológicas e a sua facilidade de representação e aplicação aumentaram este fenómeno onde todos os profissionais podem ter acesso às tecnologias mais sofisticadas e às formas mais arrojadas, diferentemente do passado em que a escassez das tecnologias construtivas, juntamente a um paradigma formal partilhado, funcionavam como garantias de um certo grau de uniformidade estética que pode ser frequentemente evocada como razão da beleza das cidades mais antigas.

Face a este cenário, o ensino de Arquitectura manifestou uma série de contínuas tentativas em manter ou em criar uma selecção de natureza meritocrática486, etária487 ou ainda baseada num suposto perfil intelectual do

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Existe uma possível linha crítica que surge a partir desta constatação e que, por razões de pertinência, não será objecto de ulterior aprofundamento neste trabalho. Todavia, por razões de honestidade intelectual, parece oportuno citar um célebre artigo de Giovanni Fava, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Bolonha e da State University of New York at Buffalo: FAVA, Giovanni. 2005. The Cult of Mediocrity. Editorial da revista Psychotherapy and

Psychosomatics 2005; 74 1-2. Neste artigo, Fava defende que o actual sistema de financiamento

das universidades e, em geral, da pesquisa científica, parte do princípio de que o talento e a excelência resultam destabilizadores dos equilíbrios académicos. Por esta razão o que é geralmente preferido pelas administrações é perseguir uma cultura da mediocridade que, ainda segundo o autor, está na base de uma migração de cérebros da Europa para os Estados Unidos (aonde, contudo, o culto da mediocridade já chegou). A mediocridade não pode ser considerada, todavia, sinónimo de medianidade.

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KECHIKIAN, Anita. 1993. Os Filósofos e a educação. Lisboa: Edições Colibri. 487

“Los alumnos que enpiezan arquitectura deben poseer el título de bachelor (educación general)

y haber puesto un cierto énfasis en algún área concreta de la ciência. La madurez y la intención de ser arquitecto será más clara y acusada en alumnos que a los veintitrés, veinticuatro o veintinco años deciden hacer el curso de graduados en arquitectura. ello implicará una dedicación intensa a la disciplina puesto que se habrán superando ya materias como física y matemáticas. Los temas, por tanto, estarán relacionados casi exclusivamente con la

aluno488 de Arquitectura, na tentativa de controlar ou reduzir os efeitos negativos

do processo de massificação. Alguma desta selecção, segundo Jerry Stevens, faz parte da própria natureza social do campo da Arquitectura489. Este autor,

adoptando o conceito de “campo” desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bordieu e aplicando-o ao âmbito da Arquitectura, ao longo de cinco séculos de história, reconhece um conjunto de tendências que provocam, de forma implícita ou explícita, a manutenção de um certo grau de elitismo profissional. A sua posição encontra-se validada por um recente estudo português que revela a existência de uma clara tendência para um certo grau de hereditariedade profissional que conserva, de alguma forma, um cenário profissional exclusivo490

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Diante desta dupla tarefa que, paradoxalmente, tanto procura apoiar um natural processo de massificação como conservar um processo paralelo de selecção, o ensino de Arquitectura desenvolveu um debate interno, onde as tendências gerais do ensino sofrem uma compatibilização com uma tipologia pedagógica e didáctica própria e exclusiva, sobretudo no que se refere ao ensino do projecto de Arquitectura. A actividade projectual é, de facto, o espaço didáctico que, mais do que todos os outros, requer a manutenção de uma relação entre docente e aluno que não se encontre demasiadamente diluída nos ratio da massificação, uma vez que, como será abordado mais adiante, esta relação pode ser considerada como central aos processos de ensino/aprendizagem do projecto de Arquitectura.

Neste debate, a posição de Nuno Portas é particularmente clara ao afirmar que o ensino de Arquitectura é, antes de mais, um fenómeno de escala e

arquitectutra.” (Jorge Silvetti, Universidad de Harvard. Massachusetts. Cuestiones de dogma y

pluralismo en la educación arquitectónica en América. Em L’ensenyment de l’Arquitectura. Lluís Bravo i Farré – José Garcia Navas (selecção de textos e materiais). Colegio Oficial d’Arquitectes de Catalunya. 1980.

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Otto Wagner, em 1912, declara que a admissão aos cursos de arquitectura deve ser feita através de uma selecção próxima da darwiniana “ability for this profession”. Wagner dizia aos seus alunos: “duas coisas devem estar inatas em você:, gosto e imaginação” (Moravánszky, 1997), seguindo os princípios que já Vitrúvio tinha estabelecido para a formação intelectual do Arquitecto.

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STEVENS, Garry. (1998). O círculo privilegiado. Fundamentos sociais da distinção

arquitectónica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003.

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CABRAL, Manuel Villaverde, coord. 2006. Relatório Profissão: Arquitecto/a. Lisboa: Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais.

pertinência social onde “a aprendizagem escolar não visa seleccionar génios,

mas melhorar a prestação social profissionalizante da maioria dos alunos normalmente dotados”491. Se, por um lado, os defensores da qualidade apelam

para a necessidade de conservar uma camada social de elevado nível intelectual em detrimento da homogeneização e da vulgarização do ensino, por outro, os adeptos da quantidade, mas nem por isso da mediocridade, como é o caso de Portas, procuram um modelo de ensino que aponte para a criação de um poder decisional e produtivo distribuído, com o fim de proporcionar um melhoramento da condição colectiva. Os indivíduos geniais, excelentes, apesar de representarem uma constante necessidade no que respeita à produção artística e cultural em geral, além de serem fruto de condicionantes e de cenários sociais e culturais contingentes, quando reconhecidos terão sempre a oportunidade de se destacar pela positiva acima da média492. Trata-se, portanto “(...) sobretudo de um trabalho

que contrariasse os excessos de individualismo criativo e levasse a reabilitar a função do aluno ‘não-brilhante’ (...) elevar o nível médio de conhecimentos da maioria dos alunos e a maioria dos alunos não são excepcionais, não são futuras vedetas”493. Um trabalho que saiba lidar com a massificação, contra o elitismo, em

favor de uma política educativa baseada na democratização, naturalmente meritocrática enquanto institucionalizada, que procure elevar o nível social médio através da integração de recursos humanos competentes no interior do cenário intelectual. Já em 1981, E. N. Rogers afirmava que “uma escola democrática deve

poder dirigir-se também aos menos dotados e encontrar a maneira de elevar cada um, de forma que todos acabem os estudos com os próprios talentos valorizados. (...) seja qual for o nível que cada um terá conseguido atingir, todos terão a certeza de que poderão ser úteis”494, formulando um claro alerta acerca da atenção

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PORTAS, Nuno. 2001. Ensino: os projectos dos Arquitectos. Em JA nº 201 Maio/Junho 2001 p. 26-35 e PORTAS, Nuno. 2005. Arquitecturas: história e crítica, ensino e profissão. Porto: FAUPpublicações.

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ELIAS, Norbert (1991). Mozart, sociologia di un genio. Bologna: Il Mulino Edizioni, 2005. 493

PORTAS, Nuno. 1979. Arquitectura. Crítica. Leitura da História. Formação. Profissão. Entrevista por José M. Fernandes e José Lamas. Em Arquitectura. Ano 1. 4ª série, nº 135 (Out. 1979), p. 56-67.

que a escola tem que reservar a todo o aluno, uma vez que todos contribuem, mesmo que através de diferentes formas e intensidades, no processo de desenvolvimento humano.

A importância que foi ganhando a “zona cinzenta” da população estudantil, considerada como núcleo qualitativo central e mais numeroso, obriga o ensino a uma atitude de modéstia que, mesmo ao apontar para a excelência, não perca de vista a medianidade como sua condição existencial. Desafio cada vez mais complexo quando inserido na sociedade contemporânea que pouco tolera o conceito de medianidade ou de massificação e onde o crescente espírito individualista não permite ao sujeito considerar-se um elemento integrante de um grupo mais alargado e homogéneo, levando-o, sempre, a considerar-se como único e, em muitos casos, acima dos outros495. Uma visão egocêntrica distribuída,

a partir da qual o sujeito observa a sociedade, juntamente com o fim dos paradigmas produtivos que garantiam, de alguma forma, a presença de um mínimo grau necessário de competência, parece, sobretudo no âmbito das artes, atribuir a todos e qualquer um, o direito a uma expressão livre que é frequentemente lida e traduzida como garantia de qualidade social, artística e intelectual. Raramente o sujeito se encontra em condições de honestidade intelectual para poder admitir que “lê-se o que se gosta de ler, mas não se escreve

o que se queria escrever, mas o que se consegue escrever”496.

Face a isto, o ensino encontra-se a ter que enfrentar mais uma tarefa: a de transmitir uma humildade e honestidade intelectual ao sujeito que, livre de constrangimentos normativos, terá que compatibilizar o sujeito e a sua unicidade com muitas outras unicidades, com o fim de descobrir uma plataforma social partilhada sobre a qual desenvolverá as próprias acções. Abordar o ensino enquanto instituição necessária para um crescimento colectivo em detrimento da

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ROGERS, Ernesto Nathan. 1981. Gli elementi del fenomeno architettonico. Napoli: Guida, p. 39 – tradução livre.

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CAMPS, Victoria (1993). Paradoxos do individualismo. Lisboa: Relógio d’Água Edições, 1996.

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BORGES, Jorge Luis (2000). L’invenzione della poesia – Le lezioni americane. Milano: Mondadori, 2004, p. 97 – tradução livre.

emancipação individual não significa menosprezar a excelência; significa, unicamente, aceitar a medianidade como condição de partida para os processos de ensino-aprendizagem, não unicamente considerados como percurso individual mas como fenómeno colectivo de amplitude social. Os caminhos que levam à exortação individual não se colocam, assim, num plano antagónico ou de contraposição em relação aos caminhos massificadores, pois ambos podem coexistir num regime de complementaridade. Deve existir o estabelecimento de objectivos, de funções do ensino sem que, forçosamente, sejam envolvidas alterações metodológicas. O pastor conduz o rebanho sem perder de vista as ovelhas mais adiantadas ou as mais atrasadas; mas quando o lobo ataca nunca descuida o grupo na tentativa de salvar os elementos isolados, porque a sua riqueza é o grupo e não o singular.