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1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

1.5. Da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas

O tópico em comento trata da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também conhecida como Drittwirkung, eficácia nas relações privadas, ou eficácia privada ou externa, e tem aplicação direta às relações de consumos, cujos integrantes são os consumidores e os fornecedores.

Cunha Júnior conceitua-a como a incidência e a aplicação dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, entre indivíduo e indivíduo.89

Thiago Luís Santos Sombra explica a origem da eficácia horizontal dos direitos fundamentais:

A teoria da eficácia dos direitos fundamentais entre particulares ou Drittwirkung – como conhecida na Alemanha – surgiu em meados dos anos 50, com o fito de erigir à posição de sujeito passivo da indispensável observância dos direitos fundamentais os particulares.90

Sombra explica que as expressões eficácia externa e eficácia privada devem ser descartadas por serem muito amplas e vagas, além de não constituírem o cerne da problemática. Também critica o termo eficácia horizontal, uma vez que nem sempre os particulares se encontram em condições semelhantes de igualdade para estabelecer suas relações jurídicas.91

Tal crítica é pertinente, mormente no campo do direito do consumidor, que tem como característica principal a vulnerabilidade do consumidor, seja ela técnica, jurídica ou econômica, diante do fornecedor.

Nesse sentido comenta Leonardo de Medeiros Garcia:

A primeira vista, a relação particular entre consumidor e fornecedor em nada interessa à sociedade. Ocorre que, quando o fornecedor comete abusos frente ao consumidor, como, por exemplo, quando deixa de consertar o produto vendido com defeito, e não sofre qualquer sanção pela prática abusiva, amanhã, outros consumidores estarão sofrendo os mesmos abusos. Não bastasse, outros fornecedores provavelmente praticarão as

89

CUNHA JUNIOR, p. 612.

90

SOMBRA, Thiago Luís Santos. .A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. São Paulo: Atlas, 2011, p. 55.

mesmas condutas abusivas, uma vez que, consertar produtos defeituosos (como o exemplo citado) ou, em um sentido amplo, respeitar os direitos dos consumidores, gera custos. O pensamento seria: e a empresa “A” faz e não acontece nada, também vou fazer porque é mais lucrativo.92

Como acima narrado, inicialmente, os direitos fundamentais foram conhecidos como direitos de defesa contra a opressão do Estado, mas com a complexidade das relações sociais agravada pela crescente desigualdade entre os homens, a doutrina passa a perceber que a opressão também se dá entre os próprios homens.

A partir daí surge a necessidade de estender a eficácia desses direitos às relações privadas, surgindo três teorias sobre a possibilidade de aplicação: as teorias negativas que rejeitam a tese, a teoria da eficácia indireta e mediata e a teoria da eficácia direta e imediata.93

As teorias negativas criaram a doutrina do state action nos Estados Unidos que pregavam a intangibilidade da autonomia privada. Todavia, esta passou a ser mitigada na década de 40 pela Suprema Corte Americana pela teoria da função pública, que pregava a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais quando estes agirem no exercício de funções públicas.94

A teoria da eficácia indireta ou mediata, dominante na Alemanha, defende a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas desde que haja prévia atuação do legislador infraconstitucional ou, em segundo plano, atividade judicial.

Explica Flávia Moreira Guimarães Pessoa:

[...] verifica-se que, para a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais não incidem nas relações entre particulares como direitos subjetivos constitucionais, mas como normas objetivas de princípio ou como sistema de valores ou ordem objetiva de valores. Dessa, maneira, possuem uma eficácia “modulada” legislativamente ou segundo parâmetros dogmáticos interpretativos e aplicativos específicos do direito privado.95

A eficácia mediata peca ao exigir a necessidade de intervenção do legislador ou do judiciário para incidir os direitos fundamentais às relações privadas porque acaba negando aplicabilidade direta destes.

92

GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: 4. ed. Niterói, RJ, Impetus, 2008, p. 10.

93

CUNHA JUNIOR, p. 612 e seguintes.

94

Idem.

95

PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Curso de Direito Constitucional do Trabalho: uma abordagem a luz dos direitos fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 52.

Sombra considera tal teoria um verdadeiro retrocesso à conquista da humanidade do sistema de direitos e garantias fundamentais.96

Daí surge a teoria da eficácia direta ou imediata, originada na Alemanha, que prevê aplicabilidade dos direitos fundamentais independentemente de prévia atividade legislativa.

No contexto da Constituição Brasileira de 1988, a aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais é defendida por Sarlet, uma vez que entende o autor que o texto da lei fundamental em nenhum momento restringe a vinculação direta dos direitos fundamentais apenas ao Estado.97

De fato, informa Cunha Junior que, no Brasil, a tendência da doutrina e da jurisprudência é de adotar a teoria eficácia horizontal imediata, de acordo com aplicação do parágrafo primeiro do art. 5º da Constituição de 1988 que determina a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais, vinculando na mesma medida os particulares e poder público.98

Importante transcrever trecho do paradigmático acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 201819-8, cujo relator para o acórdão foi o Ministro Gilmar Mendes, que reconheceu a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas:

Os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas poderes públicos, pois também estão direcionados à proteção dos particulares em face dos poderes privados. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Sendo assim, o espaço de autonomia privada conferido às associações está limitado pela observância aos princípios e direitos fundamentais inscritos na Constituição. (STF). Recurso Extraordinário nº 201.819/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça: 27.10.2006.99

Todavia, o argumento mais relevante para a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais às relações privadas reside no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que consiste no centro da gravidade daqueles e constitui o fundamento do próprio Estado brasileiro:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[..] 96 SOMBRA, p. 77. 97 SARLET, p. 259 e seguintes. 98 CUNHA JUNIOR, 613-614.

99 RE 201819/RJ. Relator: Min. Gilmar Mendes. 11/10/2005, 2ª T., DJ 27/10/2006, p. 64. Disponível

III - a dignidade da pessoa humana;100

Ora, se os direitos fundamentais são as expressões do princípio da dignidade da pessoa humana, é imperiosa a sua observância, inclusive no âmbito das relações privadas, sob pena de inviabilizar a concretização desses direitos e da própria dignidade humana.

Soares aduz que o princípio ético-jurídico da dignidade humana consiste no reconhecimento e tutela de um espaço de integridade físico-moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua existência no mundo.101

Ressalte-se que o princípio da dignidade humana, que se relaciona tanto com a manutenção de condições materiais de existência, quanto com a preservação dos valores espirituais das pessoas, converteu-se em verdadeira fórmula de justiça substancial, a qual pode ser convocada concretamente no pós-positivismo, graças à sua conversão em normatividade constitucional, no dispositivo supracitado.

A incidência dos direitos fundamentais, todavia, necessita ser harmonizada com a autonomia privada inerente às relações entre particulares.

Tal harmonização, dentro das relações de consumo, é empreendida através da ponderação dos princípios da proteção ao consumidor com a liberdade de comércio, tema este que será tratado mais à frente, mas que, antecipando a ideia, guia-se pela ideia de equilibrar as relações, através de legislações infraconstitucionais, políticas públicas, ações fiscalizatórias e intervenções estatais fomentadoras da igualdade fática ou material, que nivelem a desigualdade fática entre as partes.

Em outras palavras, quanto maior a vulnerabilidade do consumidor, mais interferência a autonomia privada sofre, de modo a incidir imediatamente o direito fundamental de proteção ao consumidor, com o preterimento do princípio da livre iniciativa, assegurando a dignidade da pessoa humana do hipossuficiente, que neste caso é o consumidor.

100

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 27 jan.2013

2. O MOVIMENTO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO,