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2. O MOVIMENTO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO,

2.1. Origem da constitucionalização do direito

O termo Constitucionalismo surgiu recentemente no vocabulário político e jurídico, pois remonta um pouco mais de duzentos anos, sendo visto como filho dos

processos revolucionários francês e americano, mas que desde a antiguidade clássica já se desenha sua trajetória.

Em poucas palavras, no séc. XVIII, o constitucionalismo começaria a delinear a base da democracia, mas o fato é que o movimento teve sua marcha no século XIX e seu triunfo no século XX.103

É incontroverso, contudo, o fato de que o constitucionalismo moderno é, assim como ocorrido na trajetória dos direitos fundamentais, produto do iluminismo e do jusnaturalismo racionalista, pois foi reflexo da modificação da qualidade da relação entre indivíduo e o poder, com o reconhecimento de direitos fundamentais intrínsecos à condição humana.

Para Luís Roberto Barroso, o processo de constitucionalização do Direito tem marcos históricos, filosóficos e teóricos.104

Sobre o marco histórico, imputa-se a sua delimitação à Europa continental com o pós-guerra, especialmente na Alemanha e na Itália, e, no Brasil, através da redemocratização pós-ditadura que teve na Constituição Federal 1988 seu maior símbolo.

Houve, em poucas palavras, uma reconstitucionalização do Direito na Europa, logo após a 2ª. Grande Guerra, que redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições.

Flávia Piovesan disserta, sob o prisma histórico, que coloca a primazia jurídica do valor da dignidade humana como resposta à profunda crise sofrida pelo positivismo jurídico, associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha:

[...] É justamente sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos que é possível compreender, no Pós-Guerra, de um lado, a emergência do chamado Direito Constitucional ocidental, em resposta ao impacto das atrocidades então cometidas. No âmbito do Direito Constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições europeias do Pós-Guerra. Observe-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana

103 SOUZA, Déborah Barreto. O Movimento de Constitucionalização do Direito Infraconstitucional na

CF/88. In: COELHO NETO, Ubirajara et al. Temas de Direito Constitucional: estudos em homenagem ao Prof.º Osório de Araújo Ramos Filho. 1. ed. Aracaju: Edição do Autor, 2012, p.170.

104

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 9, mar/maio, 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 20 set. 2012. Disponível em:<http://jus.com.br/revista/texto/7547>. (d).

demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política. Basta atentar à Constituição brasileira de 1988, em particular à previsão inédita de princípios fundamentais, entre eles o princípio da dignidade humana.105

Daí decorre a confluência entre constitucionalismo e democracia com o desígnio de constituir uma nova forma de organização política que atendesse o Estado democrático de direito e resgatasse a dignidade humana nos tempos do pós- guerra.

Impende mencionar, como marcos históricos do movimento de constitucionalização do Direito, a Lei Fundamental de Bonn de 1949, a Constituição Alemã, a criação do Tribunal Constitucional Federal, instalado em 1951 neste mesmo país, que seria o grande divulgador da promoção do direito constitucional no mundo ocidental, e a Constituição da Itália de 1947, com sua Corte Constitucional criada em 1956.

No decorrer da segunda metade do século XX, relevante acrescentar a redemocratização de Portugal com a Constituição de 1976 e da Espanha em 1978.

No Brasil, como relatado acima por Piovesan, a Constituição de 1988 representou essa passagem, como ocorrido na Europa, para um Estado democrático de direito, trazendo o direito constitucional ao apogeu, como antes nunca se havia visto no País.

O marco filosófico do movimento de constitucionalização, por seu turno, é o pós-positivismo, sem esquecer, como acima já delineado, a influência do jusnaturalismo moderno para todo este processo, vez que esta corrente contextualizada a partir do século XVI, ao trazer a razão para o estudo e aplicação da Lei, acabou por se tornar a filosofia natural do Direito.

Todavia, apesar de o jusnaturalismo ter sido a bandeira das revoluções liberais que culminou com as Constituições escritas e as codificações, ele passou a ser desconsiderado com o aparecimento do positivismo jurídico, no final do século XIX, pois se almejava objetividade científica.

Com o positivismo, o Direito encontrava significado apenas na lei, saindo do campo da filosofia e afastando o problema da legitimidade e da justiça nas discussões jurídicas, isso até a primeira metade do século XX.

105

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 27-28.

Ocorre que com a derrota do nazi-fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, o positivismo jurídico entra em decadência, pois foi acusado de justificar regimes que promoveram barbárie sob o prisma da legalidade.

Paulo Ricardo Schier bem sintetiza esses acontecimentos:

Viveu-se no Direito, por longos e longos anos, sob o quarto escuro e empoeirado do positivismo jurídico. Sob a ditadura dos esquemas lógico- subsuntivos de interpretação, da separação quase absoluta entre direito e moral, da ideia do juiz neutro e passivo, da redução do direito a enunciados linguísticos, da repulsa aos fatos e à vida em relação a tudo que se dissesse jurídico, da separação metodológica e cognitiva entre sujeito e objeto da interpretação, da prevalência sempre inafastável das opções do legislador em detrimento das opções da constituição e da criatividade hermenêutica do juiz, da negação de normatividade aos princípios e, assim, em grande parte, à própria Constituição.106

Assim, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a preocupação com a legitimidade, a justiça, ou seja, com o conteúdo axiológico do Direito, surge o chamado pós-positivismo.

Schier novamente preleciona:

[...] Agora, fala-se do pós-positivismo, da inevitável intervenção da moral na solução dos casos difíceis, da técnica da ponderação na aplicação do direito, no ingresso dos fatos e da realidade na própria estrutura da norma jurídica, reconhece-se certa liberdade interpretativa criativa aos magistrados, a intervenção de sua esfera de pré-compreensão no processo decisório, a união linguística entre sujeito e objeto e, dentre outras conquistas, a afirmação da especial normatividade dos princípios.107

De tal modo, o pós-positivismo apesar de não desprezar o direito posto, traz a preocupação de se estudar o Direito também pelo prisma axiológico na interpretação e aplicação das normas jurídicas de acordo com uma teoria de direitos fundamentais que deriva do maior princípio de todos em qualquer ordenamento jurídico ocidental hodierno: o da dignidade da pessoa humana.

Esse fenômeno traz consigo a aplicação da hermenêutica filosófica, que se iniciou em Schleiermacher no século XVIII, ganhando força com Hans-Georg Gadamer e seus discípulos no século XX, ao Direito e às ciências humanas como

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SCHIER, Paul Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Biblioteca Jurídica Virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM. Revista Jurídica Crítica nº 24. Jan/Dez 2005. Acesso em 10 mar. 2013. Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/critica/cont/24/pr/pr10.pdf>, p. 134.

um todo, as quais ganharam inteligibilidade compreensiva, objetivando a apreensão do sentido na interpretação de textos.

Em suas palavras, Gadamer discorre que:

A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação. A complementação produtiva do direito, que ocorre com isso, está obviamente reservada ao juiz, mas este se encontra por sua vez sujeito à lei, exatamente como qualquer outro membro da comunidade jurídica. Na ideia de uma ordem judicial supõe-se o fato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do conjunto. A pessoa que se tenha aprofundado em toda a concreção da situação estará em condições de realizar essa ponderação justa.108

A hermenêutica jurídica gadameriana consiste, por conseguinte, na concretização da lei em cada caso, sendo que a lei não quer ser entendida historicamente, mas deve ser concretizada na sua vigência como Direito mediante a interpretação.

Gadamer prega que, ao invés do modelo de sistema como cânone da interpretação jurídica, a hermenêutica ontológica da compreensão do círculo hermenêutico busca captar a especificidade de cada caso concreto.

Segundo Antonio Braz Teixeira, o estreito parentesco que ligava a hermenêutica filosófica à jurídica e à teleológica assentava, precisamente, no reconhecimento da aplicação como momento de toda a compreensão. Na hermenêutica jurídica, é constitutiva toda a tensão existente entre o texto de lei e o sentido que alcança a sua aplicação no momento concreto da interpretação judicial. Diante dessa conclusão, a lei não exige ser entendida historicamente, mas a interpretação é que a concretiza na sua validade jurídica.109

Para Gadamer, na interpretação jurídica, o sentido e a sua aplicação a um caso concreto não são dois atos separados, mas um processo unitário, pelo que separar, nela, a função cognitiva da função normativa é cindir, definitivamente, o que, claramente, é uno. Tal hermenêutica jurídica revestia um significado

108 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão da

tradução de Enio Paulo Giachini. 10. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 429.

109

TEIXEIRA, Antonio Braz Teixeira. Filosofia e Metodologia do Direito II: Apontamentos. Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. 2010-2011. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/94351220/A-Razao-Juridica-Hermeneutica>. Acesso em 24 mar. 2013, p. 54.

paradigmático de toda a interpretação, pois recordaria por si mesma o autêntico procedimento das ciências do espírito. 110

Gadamer entende que a interpretação devia concretizar a lei em sua validez jurídica, da mesma forma que o texto de uma mensagem religiosa não quer ser compreendido como mero documento histórico, mas sim de forma a poder exercer seu efeito redentor. Em síntese, compreender significa, então, compreender a cada instante a situação concreta de uma maneira nova e distinta, ou seja, compreender é também e sempre aplicar.111

Gadamer procura, então, investigar o comportamento do historiador jurídico e do jurista diante de um mesmo texto jurídico dado e vigente e se questiona se haveria diferença unívoca entre interesse dogmático e interesse histórico.112

Raciocina que existe evidentemente uma diferença, já que o jurista toma o sentido da lei a partir e em virtude de um determinado caso dado, enquanto que o historiador não parte do caso concreto, mas busca determinar o sentido da Lei, visualizando construtivamente a totalidade do âmbito da aplicação da lei. O historiador, portanto, considera além da aplicação originária da lei, as mudanças históricas pelas quais ela passou, intermediando compreensivamente a aplicação originária com a atual. Gadamer arremata que o historiador se movimenta numa contínua confrontação com a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicional na história, enquanto que o jurista, além disso, procura reconduzir essa compreensão para a sua adaptação ao presente jurídico.113

Resumindo, a hermenêutica jurídica gadameriana prescreve, nesse sentido, que a tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, ou seja, é a tarefa da aplicação.

Logo, sua finalidade é descobrir o sentido do Direito no momento da aplicação da lei ao caso concreto, momento este que é ao mesmo tempo criador, uma vez que a compreensão não é somente ato reprodutivo do texto original, mas também, produtivo.

Sobre essa construção, Eduardo Ribeiro Moreira aduz:

[...] o neoconstitucionalismo como teoria do direito pode ser compreendido como paradigma que revisa a teoria da norma, a teoria da interpretação e a teoria das fontes, suplantando o positivismo para, correndo as 110 TEIXEIRA, p. 54. 111 GADAMER, p. 408. 112 Idem, p. 427. 113 Idem, p. 428.

transformações teóricas e práticas nos diversos campos jurídicos integrá-las sob uma base útil e transformadora.114

Nessa linha de pensamento, a Constituição não pode perder a conexão com a vida real, pois ela é também aplicação útil, numa visão hermenêutico filosófica. É o ser-aí do mundo de um país.

Corroborando, Marcelo Neves pontua de maneira enfática:

A Constituição não pode, portanto, ser caracterizada como uma mera metáfora, desvinculada de certas implicações estruturais. Neste contexto, denomino “mera metáfora” aquela carente de função ou valor descritivo em virtude de as possibilidades de seu deslocamento serem ilimitadas, arbitrárias ou aleatórias. (...) Isso significa que não se pode recorrer, indiscriminadamente, ao conceito de Constituição em contextos sociais os mais diversos, convertendo-o em um componente de “jogos de linguagem estranhos à respectiva forma de vida no sentido wittgensteiniano, ou seja, sem suporte estrutural”.115

Feito este parêntese que será retomado mais adiante, o movimento de constitucionalização do direito tem como marco teórico, finalmente, consoante Barros, um processo que engloba três aspectos, a saber: o reconhecimento da força normativa à Constituição; a expansão da jurisdição constitucional; e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.

A seguir, a análise sucinta de cada uma delas.

Quanto à força normativa da Constituição, eis o ensinamento de Riccardo Guastini:

O primeiro aspecto do processo de constitucionalização consiste na compreensão de que a Constituição é um conjunto de normas vinculantes. Assim, este primeiro aspecto não se relaciona com a estrutura do ordenamento jurídico constitucional, mas leva em consideração a ideologia difundida na cultura do país em questão.116

Destarte, a Constituição; se antes era vista como um documento essencialmente político cuja concretização ficava condicionada à vontade do legislador ou do administrador, passa a ter caráter vinculativo e obrigatório, dotando- se de imperatividade.

No tocante à expansão da jurisdição constitucional, fala-se, em outras palavras, da supremacia da Constituição, que tem duas facetas nas sociedades

114

MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Direito constitucional atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 97.

115

NEVES, Marcelo. Trasnconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 3.

116 GUASTINI, Riccardo. A constitucionalização do ordenamento jurídico e a experiência italiana. In:

SARMENTO, Daniel Antonio de Moraes (Org.); SOUZA NETO, Cláudio Pereira (Org.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 274.

democráticas: além de fazer cumprir e respeitar os preceitos previstos constitucionalmente, atuando conforme a força normativa da Constituição, assume a responsabilidade de promover os direitos fundamentais e sociais, neles incluída a defesa do consumidor, no sentido de desempenhar função interventora no processo de concretização material dos citados direitos, evitando, inclusive, o retrocesso dos mesmos.

No Brasil, a jurisdição constitucional ganhou esta supremacia a partir da Constituição de 1988, mormente com a ampliação do controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais, com a criação de novos mecanismos de controle como o controle concentrado, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental.

O último aspecto do marco teórico é a nova interpretação constitucional, que decorre do simples fato de reconhecer que as normas constitucionais são normas jurídicas, mas também, inclusive, que os princípios nela inseridos se distinguem das regras apenas qualitativamente, por meio de um novo prisma de interpretação, já que a proteção constitucional ganha mais força.

Sob a influência da hermenêutica filosófica, a norma não somente deve ser efetiva, mas também interpretada da melhor forma possível, sendo que deve mudar ao longo do tempo para acompanhar a evolução social.