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Regulação e Autorregulamentação do Comércio Eletrônico: livre iniciativa e

3. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

3.3. Regulação e Autorregulamentação do Comércio Eletrônico: livre iniciativa e

Como já advogado, a regulação atualizada das relações jurídicas perpetradas no meio eletrônico é de difícil concretização, em razão da própria morosidade do processo de edição de comandos legislativos.

Houve diversas tentativas pelo mundo de regular o consumo eletrônico e diminuir a insegurança jurídica.

A Lei Modelo sobre o Comércio Eletrônico da UNCITRAL (The United Nations Commission on International Trade Law – Comissão das Nações Unidas para Direito Comercial Internacional), por exemplo, quanto ao local de formação do comércio eletrônico, estabelece, segundo Leal, que uma declaração eletrônica será considerada expedida e recebida no local onde o remetente e o destinatário tenham seu estabelecimento, respectivamente.263

De acordo com Martins e Macedo, tanto a UNCITRAL quanto as demais iniciativas mundo afora igualam os contratos eletrônicos a todos os outros sob o ponto de vista legal.264

Todavia, se o consumidor fizer sua compra virtual em lojas virtuais situadas fora de seu país, ficaria ele praticamente impossibilitado de exigir seus direitos em caso de lesão.

O Direito busca, então, adaptar a legislação consumerista existente, que no caso do Brasil é o Código de Defesa do Consumidor, a uma realidade virtual,

262 BOIAGO JÚNIOR, p. 79 263 LEAL, 2007, p. 117-118.

mormente nos tocante aos princípios de caráter constitucionalmente atribuídos ao direito fundamental de proteção ao consumidor.

A previsão legal sobre o consumo no comércio eletrônico foi promulgada em 15 de março de 2013 no Decreto nº 7.962, o qual regulamentou o Código de Defesa do Consumidor, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico, trazendo em seu bojo regras com clara tendência principiológica ao prescrever que os contratos virtuais devem observar o cumprimento das condições da oferta, com a entrega dos produtos e serviços de acordo com prazos, quantidade, qualidade e adequação. Outros aspectos importantes tratados foram o atendimento facilitado ao consumidor e o respeito ao direito de arrependimento.265

Para os sites de compras coletivas, o mencionado decreto ainda estipulou, no art. 3º, que eles deverão conter a quantidade mínima de consumidores para a efetivação do contrato; o prazo para utilização da oferta pelo consumidor e identificação do fornecedor responsável pelo sítio eletrônico e do fornecedor do produto ou serviço ofertado.

Acrescente-se que entrou em vigor em 03 de abril de 2013, a Lei 12.737/2012, mais conhecida também como “Lei Carolina Dieckmann”, que tipifica como crime informático, a invasão de dispositivos – como smartphones e PCs, também com o claro intuito de proteger a dignidade humana na realidade virtual.266

Outras mudanças provavelmente virão com dispositivos legais sobre o assunto numa futura reforma do Código de Defesa do Consumidor267, bem como no

Projeto de Lei conhecido como Marco Civil da Internet, o PL 2126/2011, em tramitação no Congresso Nacional.

265 Art. 1o Este Decreto regulamenta a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a

contratação no comércio eletrônico, abrangendo os seguintes aspectos: I - informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; II - atendimento facilitado ao consumidor; e III - respeito ao direito de arrependimento. BRASIL. Decreto nº 7.962, de 15 de março de 2013. Regulamenta a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7962.htm>. Acesso em 21 jun. 2013.

266 BRASIL. LEI 1237 de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos

informáticos; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2012/lei/l12737.htm>. Acesso em: 10 jun. 2013.

267Agência Senado. Anteprojeto de Reforma do Código de Defesa do Consumidor é apresentado no

Senado. Revista Eletrônica Ultima Instância. Disponível em: <www.ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/55375/anteprojeto+de+novo+codigo+de+defesa+ do+consumidor+e+apresentado+ao+senado.shtml.> Acesso em 02.02.2013.

Contudo, as referidas leis já existentes apontam para uma ineficácia quanto à proteção ao consumidor virtual, em razão da falta de cumprimento por parte dos fornecedores, principalmente quando se trata de contratos eletrônicos internacionais, diante da inexistência de uma legislação uniforme.

Em pesquisa, o Instituo Ibero-brasileiro de Relacionamento com o Cliente revela que o decreto do comércio eletrônico não tem sido respeitado, pois dos 30 sites de vendas avaliados pelo IBRC, só dois estava adequados.268

Destarte, o comércio eletrônico é um fenômeno dinâmico, cuja regulação nunca estará terminada, pois quando as questões hoje prementes se encontrarem resolvidas, novas problemáticas terão surgido, a exigir a atenção dos sistemas jurídicos internacionais.

O comércio eletrônico, portanto, pode ser encarado sob duas perspectivas: a da regulação e a da autorregulamentação.

Na visão reguladora, há a intervenção do Estado para garantir a tutela da parte hipossuficiente, ou seja, o consumidor, com a edição de leis para reger as relações assumidas no comércio eletrônico.

Na autorregulamentação, os próprios agentes participantes definem as regras e práticas comerciais. O móbil nessa perspectiva é a satisfação do consumidor e a competitividade positiva, pela sã e autodisciplinada concorrência comercial.

Segundo Rute Isabel Esteves Ferreira Couto, tais são as vantagens da perspectiva da autorregulamentação:

Os argumentos a favor de uma auto-regulação no domínio do comércio eletrônico são a manutenção da liberdade de comunicação, o desfasamento temporal entre o processo legislativo e o veloz desenvolvimento dos mercados, e as “fricções” entre Governos valorativamente diferentes na regulação de mercados que são globais.269

É evidente que a autorregulamentação não é isenta de dificuldades, mas ela se mostra, no momento, a alternativa mais viável, em razão de que, em relação aos contratos internacionais, não há norma supranacional globalmente aceita, e, no

268

COSTA, Daiane. Pesquisa revela que lei do comércio eletrônico não pegou. Disponível em: <em http://oglobo.globo.com/defesa-do-consumidor/pesquisa-revela-que-lei-do-comercio-eletronico- nao-pegou-8703391#ixzz2WVw70TkC>. Acesso em: 13 jun. 2013.

269

COUTO, Rute Isabel Esteves Ferreira. Regulação do Comércio Eletrônico. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/bitstream/10198/618/1/Regula%C3%A7%C3%A3o_do_Com%C3%A9rci o_Electr%C3%B3nico_final_RepDig.pdf. Acesso em 10 jan. 2013.

tocante aos contratos nacionais, a legislação já existente não se impõe de maneira eficaz, diante das especificidades de cada contrato, grupo e situação multicultural.

É necessário, todavia, que concomitantemente com a autorregulamentação, o Estado coíba práticas abusivas e estimule a competitividade positiva dos fornecedores, aplicando os princípios constitucionais da função social da empresa e da propriedade.

Nesse sentido, André Ramos Tavares ensina que a função social da empresa consiste num instituto heurístico de conciliação dos direitos e prerrogativas privadas, de um lado, com o interesse geral e bem-estar social, de outro, cujos desdobramentos conduzem a diversos deveres (fundamentais) impostos às empresas.270

Explica ele que é possível trabalhar a função social da empresa a partir de um contemporâneo estudo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, pelo qual, além de ser possível delinear as linhas dogmáticas do conceito, aponta para uma tendência do STF de esposar um entendimento favorável ao reconhecimento do papel social benéfico que as empresas desempenham para a coletividade, demonstrando como a Constituição Brasileira de 1988 conduz a essa interpretação a partir de seus dispositivos.

Ver-se-á que a noção de função social opera como um grande “instituto heurístico” que alberga e dá sentido aos deveres constitucionais da empresa. Daí por que se fala, doutrinária e jurisprudencialmente, em “função social da empresa”, que abarca, em si, múltiplos deveres específicos, que decorrem da noção de função social da empresa.

Para Tavares, o reconhecimento da função social da empresa não adquire apenas um caráter restritivo ou delimitador, uma vez que tal conceito é voltado para a compreensão de que o âmbito coletivo deve também ser privilegiado.

Em outras palavras, o conceito de função social da empresa compreende também os diversos benefícios que a atividade empresarial desempenha para a coletividade.

Elucida Tavares que tal concepção positiva que reconhece o valor social das empresas tem sido adotada no Supremo Tribunal Federal, demonstrando uma tendência interpretativa jurisprudencial a uma compreensão favorável ao

reconhecimento do positivo papel que a atividade empresarial desempenha na sociedade brasileira.

Assim, defende-se, com base em Rute Couto, que a autorregulamentação vem a complementar a regulação, já que a eficiência e confiança necessárias ao funcionamento do mercado eletrônico só se conseguem pela convergência de uma oferta facilitada e uma procura protegida. 271

Patrícia Peck Pinheiro, nesse mesmo entendimento, salienta que a rivalidade que atinge as partes deve ser sempre evitada, porque na sociedade digital, as relações de dependências e efeitos em cascatas são muito maiores, uma vez que estamos todos conectados e, por isso, defende que o direito digital deve ter como princípio a autorregulamentação, que a autora define como “deslocamento do eixo legislativo para os participantes e interessados diretos na proteção de determinado direito e na solução de determinada controvérsia.”272

Em outras palavras, a autora explica que autorregulamentação permite maior adequação do direito à realidade social, assim como uma maior dinâmica e flexibilidade para que ele possa perdurar no tempo e se manter eficaz273, o que

acaba se compatibilizando com o modelo de sociedade multicultural global de que a internet é constituída.

O deslocamento legislativo que Pinheiro defende traduziria uma abordagem de invasão de competência da própria sociedade em face do Estado, denotando-se a tendência do anarquismo filosófico, em que este não seria necessariamente eliminado, mas perderia a legitimidade para resolver as questões sociais, políticas e jurídicas.

Canut explana que a autorregulamentação pode se dar tanto através da criação de códigos de conduta, quanto por formação de associações de empresas ou de profissionais de um mesmo ramo de atividade ou até de ramos diversos.274

No Brasil, já encontramos exemplos de autorregulamentação no âmbito virtual.

Em 2009, foi elaborado um Código para regulamentar as práticas de envio de E-mail Marketing pelas entidades ABEMD – (Associação Brasileira de Marketing

271 COUTO, 2013, p. 4.

272 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008, p.

46-47.

273 Idem, p. 47.

Direto), ABRADI, (Associação Brasileira das Agências Digitais), ABRANET (Associação Brasileira dos Provedores de Internet), ABRAREC (Associação Brasileira das Relações Empresa Cliente), AGADI (Associação Gaúcha das Agências Digitais), APADI (Associação Paulista das Agências Digitais), CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), FECOMÉRCIO-RS (Federação do Comércio do Estado do Rio Grande do Sul), FECOMÉRCIO-SP (Federação do Comércio do Estado de São Paulo), FEDERASUL (Federação das Associações Comerciais e de Serviços do Rio Grande do Sul), IAB (Interactive Advertising Bureau), INTERNETSUL (Associação Rio Grandense dos Provedores de Acesso, Serviços e Informações da Rede Internet), PRO TESTE (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor) e SEPRORGS (Sindicato das Empresas de Informática do Rio Grande do Sul).275

Neste código, estipula-se o que seria um e-mail Marketing eticamente correto e reprovações das condutas desconformes, com a possibilidade de advertência, acompanhada de recomendação de modificação da conduta reprovada; recomendação de bloqueio do Domínio do Remetente pelas empresas associadas às entidades subscritoras do Código e a divulgação da posição do Conselho de Ética, em face do não acatamento das medidas e providências preconizadas.

Outra iniciativa foi a criação da Agência Nacional de Autorregulação da Internet (ANARNET), com sede em São Paulo, fundada em 01 de Julho de 2011, que consiste numa associação civil sem fins lucrativos, autônoma e independente de qualquer organização partidária, governamental ou religiosa.276

O controle auto-imposto, ou seja, a autorregulamentação, denota-se na alternativa mais coerente com o mundo globalizado e multicultural porque ele busca a confiança entre as próprias partes e ganha aceitação muito mais rápida e eficaz no mercado eletrônico, como se pôde observar no tocante ao pagamento de produtos e serviços via carteira digital e do paypal (serviço de pagamento on-line), que facilita as compras e garante mais segurança aos consumidores quanto aos seus dados

275

BRASIL. Código de autorregulamentação para prática de e-mail marketing. Comitê Gestor da Internet no Brasil. Disponível em: <http://www.cgi.br/publicacoes/documentacao/cod-autoreg-email- marketing.htm:>. Acesso em 22 jun. 2013.

276

PEREIRA, Leonardo. Internet brasileira ganha órgão autorregulador. Olhar Digital. 02 de abril de 2013. Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/internet-brasileira- passa-a-contar-com-orgao-autorregulador. Acesso em 22 jul. 2013.

bancários, bem como a restituição do dinheiro em caso de não recebimento do produto.277

Com efeito, as empresas que aderem à autorregulamentação farão todos os esforços necessários para atender as regras por elas definidas, sob pena de perderem a credibilidade e se verem excluídas do mercado.

É evidente que se reconhece a necessidade de melhorar os mecanismos da autorregulamentação, especialmente pelo fato de que a mesma ainda está no estágio inicial no Brasil, mas é necessário destacar que o maior beneficiado desta solução para os conflitos no comércio eletrônico é o próprio consumidor que, uma vez bem informado, fará suas compras de produtos e serviços com as empresas que seguem os códigos de éticas e estão associadas às entidades de autorregulamentação.

Em seguida, trataremos da autorregulamentação como uma resposta hermenêutica às relações de consumo eletrônicas multiculturais, em que o modelo de ponderação dos princípios da proteção ao consumidor e da livre iniciativa criará a atmosfera de competitividade positiva no mercado virtual.

277

PONTUAL, Jorge; LEPRI, Janaína. Conceito da carteira digital está chegando ao Brasil. Edição do dia 27/12/2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2012/12/conceito-da-carteira- digital-esta-chegando-ao-brasil.html>. Acesso em 20 jun 2013.

4. MÉTODOS DE AUTORREGULAMENTAÇÃO DOS CONFLITOS NO COMÉRCIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA HERMENÊUTICO FILOSÓFICA

Neste capítulo será trabalhada uma hermenêutica voltada para a solução de conflitos do comércio eletrônico de acordo com a visão da constitucionalização da relações de consumo, a qual prega que a Sociedade da Informação necessita de que o intérprete tenha uma postura de respeito às diferenças e aos direitos fundamentais em colisão nas situações encontradas no âmbito virtual

A hermenêutica filosófica traz consigo uma teoria de interpretação crítica que é necessária para a compreensão das normas jurídicas no caso concreto, uma vez que todo o Direito é substantivamente linguagem, que é transcrita num discurso verbal, o qual se exprime num texto.

Para Ricoeur, a tarefa da hermenêutica é desvelar o mundo que o texto desdobra diante de si e do intérprete. O Direito fundado nesta perspectiva permite ao intérprete se desvencilhar das antigas visões tradicionais de conhecimento jurídico. A interpretação decorre também da tradição humana. Assim escreve o filósofo:

(...) a interpretação possui uma história e que esta história é um segmento da própria tradição; não se interpreta de parte alguma, mas para explicitar, prolongar e, assim, manter viva a própria tradição na qual nos encontramos. É assim que o tempo da interpretação pertence de certa forma ao tempo da tradição.278

Então, para Ricoeur, um dos focos de qualquer hermenêutica é o de lutar contra a distância cultural, e aqui acrescentamos o atendimento à ideia do multiculturalismo, ou seja, com a distância temporal entre o texto e o seu intérprete como distância hermenêutica ou interpretação, que atualiza o sentido do texto para o leitor presente. Nesse ponto, ele discorre reiteradamente:

“A tarefa da fenomenologia precisa-se: esta posição do sujeito, que toda a tradição do Cogito invoca, é preciso daqui em diante operá-la na linguagem e não ao lado, sob pena de nunca ultrapassar a antinomia da semiologia e da fenomenologia. É preciso fazê-la

278

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978, p. 27.

aparecer na instância do discurso, isto é, no ato pelo qual o sistema virtual da língua se torna o acontecimento atual da fala.”

“Interpretamos para explicitar, prolongar e, assim, manter viva a própria tradição na qual nos encontramos.”

“A tradição só vive no e pelo tempo de interpretação.””279

É possível, destarte, admitir variados sentidos a uma norma ou uma decisão jurídica, pois Ricoeur demonstra que a interpretação é um processo complexo, que percorre tanto a explicação como a compreensão, mas, no qual há a necessidade de superação da distância entre texto e intérprete, que no caso em tela, refere-se à aplicação dos princípios constitucionais da livre-iniciativa e da proteção ao consumidor às relações de consumo eletrônicas.

Uma vez reconhecido o postulado ricoeriano de que é na linguagem que se realiza a compreensão do ser ou ontológica, bem como admitida a noção de que um texto possui diversos sentidos, Ricoeur propõe que é na semântica das expressões que se carregam múltiplos sentidos, a qual ele define como simbólica, que se deve procurar o eixo de referência para analisar a linguagem hermeneuticamente.

Antonio Braz Teixeira pontua:

Na sua abordagem, parte o filósofo de dois conceitos fundamentais, o de símbolo e o de interpretação O primeiro era por ele entendido como “toda a estrutura de significação em que o sentido directo, primário, literal, designa, por acréscimo, um outro sentido indirecto, secundário, figurado, que apenas através do primeiro pode ser apreendido”. Correlato deste seria o conceito de interpretação, que, para Ricœur, se apresentava como “o trabalho do pensamento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os níveis de significação implicados na significação literal” , daqui resultando, como o pensador não deixou de sublinhar, que há interpretação onde há sentido múltiplo, sendo nela que essa pluralidade de sentidos se manifesta.

Deste seu modo de entender os dois conceitos básicos que operariam no domínio semântico da hermenêutica decorreria um conjunto de tarefas a realizar pelo intérprete.280

Nesse contexto, pode-se aduzir que, para Teixeira, o duplo sentido ou a lógica transcendental, que se encontra no plano das condições de possibilidade, significa não apenas as condições da objetividade de uma natureza, mas também as próprias condições de apropriação do nosso desejo de ser. Teixeira entende que a lógica de duplo sentido, portanto, possibilita que a hermenêutica se transforme numa ontologia de compreensão, segundo a qual continua inserida na interpretação.

279 RICOEUR, 1978, p. 251. 280 TEIXEIRA, p. 58.

Em verdade, Ricoeur segue os passos da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer que introduz a obra Verdade e Método com a proposta de falar sobre o problema da hermenêutica, que, segundo ele, sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Explica que entender e interpretar texto não se restringe ao empenho da ciência, pois pertence ao todo da experiência do homem no mundo. 281

Em outras palavras, para Gadamer, o fenômeno hermenêutico não é um problema de método, uma vez que não se compreende a tradição apenas por textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades.

Logo, o fenômeno hermenêutico apresenta validade própria e resiste à tentativa de ser transformado em método da ciência, representando tendência da ciência moderna contra a pretensão de universalidade da metodologia científica.

Segundo Gadamer, a verdade ultrapassa o campo do controle da metodologia científica e indaga sua própria legitimação, que a seu ver só pode ser alcançada pelo aprofundamento no fenômeno da compreensão.

Não haveria outro modo, além da própria experiência, do caso concreto, para conhecer a verdade.

Do mesmo modo, a autorregulamentação do comércio eletrônico se traduziria nessa ideia de que é através da própria experiência, do próprio caso concreto, do diálogo entre consumidores, fornecedores e Estado, que se extrairá a solução mais adequada para a colisão dos princípios constitucionais da defesa do consumidor e da livre iniciativa e da livre concorrência.

4.1. A justiça e a proporcionalidade na relação consumerista multicultural do comércio eletrônico

Como foi relatado, desde a promulgação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, momento em que o princípio constitucional da Defesa do Consumidor ganhou realmente vida, iniciaram-se grandes discussões judiciais

acerca de sua aplicação ou não em determinadas situações, a exemplo do comércio eletrônico, que é um novo fenômeno cultural da Sociedade da Informação.

Pontue-se, novamente, como foi defendido anteriormente, que as normas do Código Consumerista são de ordem pública e de interesse social e são, destarte, normas cogentes, indisponíveis e de aplicabilidade imperativa, justamente em decorrência da própria origem constitucional, ou seja, são normas constitucionais atribuídas.

Logo, os antigos critérios de interpretação jurídica (anterioridade, especialidade e temporalidade), não são suficientes nem se coadunam com o perfil das normas consumeristas, uma vez que, de acordo com Ricardo Maurício Freire Soares, o fenômeno consumerista é notadamente plural, não apenas porque