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2.2 DA REALIDADE DA CRIMINALIDADE E DA VIOLÊNCIA

2.2.4 Da Impunidade

Uma questão que merece ser destacada é a da impunidade como forma de chancela à prática de condutas criminosas, pois causa a erosão da lei e da ordem, isto é, a desistência de punições que ligam o crime ao exercício da autoridade, tornando o Estado conivente e propagador da atividade criminosa.

Impunidade significa falta de castigo19. Do ponto de vista jurídico, a impunidade é a não aplicação de pena, mas também é o não cumprimento, seja qual

19 Segundo o Novo Dicionário Aurélio, impunidade é “estado de (ser) impune”, ou seja, que escapa ou escapou à punição; que é ou não foi castigado. Já o Dicionário Michaelis, conceitua impunidade como a não aplicação de determinada pena capital a determinado caso concreto. Quando a punição não é

for o motivo (por fuga do condenado, por deficiência da investigação, por posterior tolerância da lei), de pena imposta a alguém que praticou algum delito.

No Brasil, ela é muito elevada. O Núcleo de Estudos da Violência da USP constatou que do total de casos que chegam até a Polícia, que já é uma parcela pequena, só se consegue instaurar inquérito policial em 10%. Isso em relação ao homicídio, considerando um dos crimes mais grave (são geralmente aqueles que acontecem na periferia, envolvendo pessoas de classe baixa, onde a Polícia não investiga) (AZEVEDO, 2006c).

Essa impunidade deixa perplexo e indignado o cidadão honesto, diante da omissão, inércia e indiferença do Estado, incapaz de punir, de forma eficaz, os que transgridem as leis. Quando o risco de ser preso, processado e condenado é baixo, a audácia e a violência aumentam.

Toda ordem social convive com algum grau de impunidade. Em grau elevado, a impunidade leva à decomposição da ordem social, deixando as leis de cumprir duas funções básicas: punição e prevenção (DAHRENDORF, 1985). É o que Durkheim (2000) entende por violação à consciência coletiva, desacreditando o poder diretivo da sociedade (poder simbólico do Estado). No momento em que a consciência coletiva se enfraquece, os laços sociais tornam-se mais fragilizados, e, da mesma forma, quando enfraquece o poder simbólico das leis, os comportamentos anti-sociais passam a ser incentivados.

A crise do Sistema de Justiça Criminal resulta na impunidade penal. A conseqüência mais grave é a descrença nas instituições promotoras de justiça. Cada vez mais descrentes na intervenção saneadora do poder público, os cidadãos buscam saídas. Os que dispõem de recursos apelam para a segurança privada. A grande maioria da população, ao contrário, apóia-se perversamente na proteção oferecida pelos traficantes locais ou procura resolver suas pendências e conflitos por conta própria. Essas situações contribuem para enfraquecer a busca de soluções proporcionadas pelas leis e pelo funcionamento do Sistema de Justiça Criminal. A Justiça não é vista, pelos cidadãos, como instrumento adequado de superação da conflitualidade social (ADORNO, 2002c).

Por um lado, tem-se o Estado como necessário e indispensável para o controle social. De outro, a complexidade do contexto social reduz a possibilidade do alcançada seja pela fuga, seja pela deficiência da investigação, seja por ato posterior de tolerância e o crime permanece impune.

monopólio dos meios de violência legítima, reforçando características de seletividade e de impunidade para a maioria dos delitos (AZEVEDO, 2004).

O poder de descriminalização primária, referido por Dias (1997), igualmente, trata-se de uma forma de gerar a impunidade, pois é ela uma das principais responsáveis pela escassa presença de delinqüentes de White Collar nas estatísticas da criminalidade.

Percebe-se que, em geral, as principais causas da criminalidade e da violência (pobreza, desigualdade social, exclusão e o uso da violência como solução de conflito), aliadas à impunidade e à transição democrática (onde as instituições de controle social não acompanharam o desenvolvimento dos crimes), geraram terreno fértil para a proliferação do crime organizado.

Conforme salienta Dias Filho:

A camada social menos favorecida não obteve acesso a uma qualificação adequada que lhe possibilite ocupar um espaço no mundo globalizado extremamente competitivo. Esta situação, aliada a má distribuição de renda, à ausência ou mesmo ineficiência do Estado em determinadas áreas sociais, a exemplo da educação, da saúde, da assistência social e, com peculiar propriedade, da Segurança Pública, esta somada à falta de pessoal qualificado para o acompanhamento, a prevenção e a repressão dessa nova modalidade delitiva – crime organizado – torna o ambiente extremamente fértil à sua proliferação (2002, p. 106).

Já Mendroni (2002) alerta:

A sociedade transformou-se sobremaneira nas últimas décadas e a legislação criminal também se vê diante da emergencial necessidade de adaptação. Já não são suficientes somente os métodos de investigação previstos no Código de Processo Penal de 1942, e, até que não seja revisto, é mister a edição de Leis especiais que possam suplementar as suas lacunas.

Dessa forma, a impunidade é um fenômeno complexo. Não se resume tão- somente à legislação, mas também à falta de estrutura e modernização do Sistema de Segurança Pública e Justiça Criminal.

Cano (2002) caracteriza a impunidade no Brasil como “uma hidra de múltiplos tentáculos”. Destaca que ela se apresenta através da polícia sobrecarregada e deficientemente treinada e remunerada, da Justiça morosa e atrelada a procedimentos lentos e burocráticos, da incapacidade do Estado em proteger o alto número de testemunhas ameaçadas, da morosidade da Justiça que redunda em

penas prescritas e da incerteza da punição. Enfim, o autor destaca que a descrença no Sistema de Justiça Criminal desmobiliza a sociedade, estimula o medo e o silêncio. É um câncer que se instala no corpo social e vai avançando pouco a pouco.

Cano conclui que:

Para curar esse câncer é preciso se submeter a uma quimioterapia que consiga entre outras coisas, fortalecer o Ministério Público e o seu trabalho conjunto com a polícia, proteger as testemunhas numa escala muito superior à atual e investir na polícia técnica para poder conseguir novas provas (2002, s/p).

A Revista Época (2007)20, em reportagem intitulada “Ainda falta muito”, escrita pelos Jornalistas Fernandes e Clemente, ressalta que as leis diminuem a sensação de impunidade, mas o problema não está restrito à legislação. Na ocasião, entrevistaram Luiz Eduardo Soares, José Vicente da Silva Filho, Julita Lemgruber, Michel Misse, Ignacio Cano e Gilson Caroni Filho que sugeriram algumas propostas para o tema:

LEIS:

Acabar com a figura do crime continuado. Hoje, se um assassino participar de uma chacina e matar 21 pessoas no mesmo lugar e horário, será julgado como se tivesse matado apenas um.

Colocar na lei a exigência do exame criminológico para autores de crimes hediondos que pedem o benefício da progressão de regime. "Hoje, ao avaliar um pedido, os juízes têm em mãos apenas números, como o tempo de pena cumprido. Com isso, criminosos perigosos acabam ganhando o benefício", diz o coronel José Vicente.

Diminuir a margem de manobra dos advogados e a quantidade de recursos possíveis. Hoje, todo criminoso condenado a mais de 20 anos pode recorrer automaticamente, pedindo um novo julgamento. A simples ausência do advogado durante uma audiência adia o andamento.

Uma lei permitindo interrogatórios e audiências judiciais por videoconferência será um avanço e uma economia de tempo e dinheiro. São Paulo faz, hoje, 10 mil escoltas semanais de presos que precisam ir aos tribunais. Além de economizar tempo, a videoconferência permitiria que os policiais fossem realocados para patrulhar a cidade.

Uma lei que permita que os juízes possam ouvir todas as testemunhas num único dia. Hoje, os depoimentos são obrigatoriamente em dias diferentes, o que arrasta os processos. O juiz poderia ainda ser dispensado de ouvir novamente testemunhas já interrogadas na fase de investigação.

POLÍCIA:

Integrar o trabalho das polícias Civil e Militar. Informatizar e conectar os bancos de dados de toda a rede de Segurança. É o que os especialistas chamam de arroz com feijão da inteligência. Grandes cidades como o Rio trabalham sem isso. "Sem o entrosamento, quem ganha é o crime", afirma o coronel José Vicente. Uma vez conhecidas, as informações poderiam compor um mapa de crimes mais completo, o que permitiria também um

aumento da eficiência do patrulhamento das ruas. "No bairro de Pinheiros, em São Paulo, 44% dos crimes se concentram em 1% da ruas", afirma José Vicente "Isso significa que você não precisa patrular o bairro todo". Dar autonomia, treinamento específico e estabilidade aos corregedores. É uma iniciativa essencial para tirar da corporação os maus policiais.

PRISÕES:

Caso aumente a eficiência da polícia, os presídios não têm condição de acomodar mais presos. Estão superlotados. Além disso, engendram novos crimes. Um detento é assassinado por dia no Brasil, em média. Mais rápido e barato do que construir novas unidades é libertar os detentos que já deveriam estar soltos. Segundo a socióloga Julita Lemgruber, entre 30% e 40% dos presos já deveriam estar beneficiados pela liberdade condicional. "A grande maioria dos presos no Brasil não é violenta", diz. Para implementar isso, bastaria informatizar as Varas de Execução. Isso permitiria um melhor acompanhamento da situação dos detentos. Desafogar as celas traria a oportunidade de separar os criminosos violentos dos menos perigosos. É muito difícil transformar as cadeias em lugar de recuperação de criminosos. Mas pelo menos dá para fazer com que elas deixem de ser universidades do crime. A ressocialização de infratores é um tema tão complexo que os estudiosos são unânimes: mais fácil é impedir que o jovem entre para o crime. "Precisamos fazer um projeto para a juventude, disputar os meninos com o tráfico e respeitar as leis que já existem", diz Luiz Eduardo Soares.

Feitas essas observações, passa-se, agora, a tratar dos principais entraves para um investigação eficaz da macrocriminalidade.