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das preliminares

No documento rdj101 (páginas 93-101)

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Apela o Distrito Federal às fls. 1.246/1.259, suscitando, preliminarmente, a sua ilegitimidade passiva, sob a alegação de que a Administração não é responsável por ato de terceiro.

Com efeito, a responsabilidade civil da Administração Pública por danos causados a terceiros decorre da disposição constitucional assentada no artigo 37, § 6º, da Carta Magna.

No caso, a autora encontrava-se sob o abrigo da Casa de Ismael, instituição que desempenhava o dever estatal de proteção à criança, conforme estabelecido no artigo 227 da Constituição Federal.

Nesse contexto, tendo o ente estatal delegado à instituição ré o dever de proteção à menor, não se desincumbiu do dever de garantir a integridade física da criança, mediante a fiscalização da atividade de abrigo de menores, de responsabilidade estatal. Diante do ato lesivo causado à criança, o Estado deve ser responsabiliza- do, de acordo com a teoria do risco administrativo, que se baseia no risco que a atividade pública gera para os administrados.

Neste sentido merece destaque o seguinte precedente no âmbito do Colendo Su- perior Tribunal de Justiça:

RESPONSABILIDADE CIVIL. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. ELETRO- CUSSÃO. MORTE DE MENOR. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CÓD. DE PROC. CIVIL. INOCORRÊNCIA. TEORIA DO RISCO OBJETIVO. APLICABILIDADE. CULPA EX- CLUSIVA DA VÍTIMA. INADMISSIBILIDADE. DESPESAS DE LUTO E FUNERAL. FATO CERTO. PENSIONAMENTO DOS PAIS. POSSIBILIDADE. CONSTITUIÇÃO DE CAPI- TAL. PRECEDENTES. DANOS MORAIS. VALOR RAZOÁVEL.1. [...] 2. A obrigação das empresas concessionárias de serviços públicos de indenizar os danos causados à esfera juridicamente protegida dos particulares, a despeito de ser governada pela teoria do risco administrativo, de modo a dispensar a comprovação da cul- pa, origina-se da responsabilidade civil contratual. 3. Consoante deflui do dis-

posto no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, basta ao autor demonstrar a existência do dano para haver a indenização pleiteada, ficando a cargo da ré o ônus de provar a causa excludente alegada, o que, segundo as instâncias ordi- nárias, não logrou fazer. [...] (g.n.) (REsp 506.099/MT, Rel. Ministro Castro Filho,

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Rejeito, pois, a preliminar de ilegitimidade passiva do Distrito Federal.

da violação ao princípio do contraditório

Em suas razões recursais (fls. 1.267/1.327), a CASA DE ISMAEL – LAR DA CRIANÇA argui preliminar de nulidade da sentença, por violar o princípio do contraditório, sob o argumento de que o julgador teria valorado única e exclusivamente as ale- gações da autora.

Não assiste razão à requerida.

Depreende-se da sentença recorrida ampla análise dos fatos trazidos os autos, in- clusive dos argumentos apresentados pela defesa, tendo o julgador fundamenta- do as razões de seu convencimento nas provas produzidas, em estrita observância aos requisitos da sentença, estabelecidos no artigo 458 do CPC.

De outra sorte, não há que se falar em violação ao princípio do contraditório, por- quanto a ré produziu as provas documentais e orais no momento oportuno (fls. 343-491; 562-568; 573-580), exercendo o seu direito à ampla defesa e ao contra- ditório, conforme se extrai dos autos, principalmente da impugnação de fls. 1.073- 1.152 e alegações finais de fls. 1.161-1.178.

Rejeito a preliminar de nulidade da sentença.

do mérito

No mérito, sustenta o Distrito Federal a ausência dos elementos configuradores da responsabilidade civil do Estado, defendendo que se tratando de ato omissivo do poder público, a responsabilidade pelo ato é subjetiva. Defende a inexistência de ato culposo atinente à sua atuação fiscalizadora.

A Casa de Ismael, por seu turno, defende que não restaram provadas as alegações da apelada quanto ao dia e local em que o abuso sexual teria sido perpetrado e que não há nexo de causalidade entre a conduta da instituição ré e os danos sofri- dos pela autora. Afirma que a autora sofreu agressões sexuais quanto estava sob os cuidados e na residência de sua tia biológica e que não há relação entre o ato

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praticado, sem violência real, e os danos constatados na autora. Insurge-se contra a afirmação do julgador quanto ao acolhimento na instituição ré de crianças de ambos os sexos sob o mesmo teto e de idades diferentes.

De fato, a responsabilização do Estado decorrente de conduta omissiva é questão controvertida na doutrina e na jurisprudência.

Sobre o tema, Sérgio Cavalieri Filho (in Programa de Responsabilidade Civil, 9ª Edição, pg. 239), citando o jurista Guilherme Couto de Castro, esclarece que “não é correto dizer, sempre, que toda hipótese de dano superveniente de omissão es- tatal será encarada, inevitavelmente, pelo ângulo subjetivo. Assim o será quando se tratar de omissão genérica. Não quando houver omissão específica, pois aí há dever individualizado de agir”.

Prossegue o il. Doutrinador esclarecendo que “no caso de omissão é necessário estabelecer a distinção entre estar o Estado obrigado a praticar uma ação, em ra- zão de específico dever de agir, ou ter apenas o dever de evitar o resultado. Caso esteja obrigado a agir, haverá omissão específica e a responsabilidade será obje- tiva; será suficiente para a responsabilidade do Estado a demonstração de que o dano decorreu da sua omissão”.

No caso, resta caracterizada a omissão específica do Distrito Federal, pois deixou de cumprir seu dever legal de evitar o evento, já que se absteve de adotar as providências assecuratórias que a situação exigia. Daí emerge a responsabilidade objetiva do Estado ao dever de indenizar a vítima pelos danos experimentados, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais.

Em situações semelhantes, este e. Tribunal vem se posicionando no sentido de aplicar a responsabilidade objetiva do Estado, ainda que decorrente de um ato omissivo. Confira-se:

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. MORTE DE PRESO. EXIS- TÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE A OMISSÃO DO ENTE ESTATAL E O DANO SOFRIDO PELA VÍTIMA. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REQUISITOS PRESENTES. 1. O Estado tem o dever específico de tomar todas as medidas

necessárias para assegurar a integridade física dos seus custodiados, nos termos do art. 5o, XLIX, da Constituição Federal. 2. Diante da morte de de-

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tento produzida por colegas de carceragem e evidenciada clara omissão estatal, configurada a responsabilidade do ente estatal de contribuir para com a subsistência da filha menor da vítima. 3. Agravo de instrumento não

provido. (Acórdão n.637022, 20120020208698AGI, Relator: Flavio Rostiro- la, 1ª Turma Civel, Publicado no DJE: 04/12/2012. Pág.: 76) (g.n.).

APELAÇÃO CÍVEL. HOSPITAL SÃO VICENTE DE PAULA. CUSTÓDIA DE PACIENTES PARA TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO. AGRESSÕES SOFRIDAS DENTRO DO HOSPI- TAL. DEVER ESPECÍFICO DE GUARDA E VIGILÂNCIA CONSTANTE E EFICIENTE. PESSOA QUE EXIGE CUIDADOS ESPECIAIS. OMISSÃO. RESPONSABILIDADE OB- JETIVA DO ESTADO. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. EVENTO DANOSO. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS. 1. Se ao Estado compete

o dever de guarda e vigilância constante e eficiente daqueles que estão sob sua custódia, mesmo que não inspirem cuidados especiais, mais ainda se deve exigir quando se trata de pessoa que exige cuidados especiais, como os internos de hospital público psiquiátrico. 3. Nem sempre a omissão do

Estado acarreta a responsabilidade civil subjetiva. Pode acontecer de o Esta-

do responder objetivamente por ato omissivo, quando evidenciada a omis- são de dever de cuidado específico. 4. Os juros moratórios fluem a partir do

evento danoso, nos termos do Enunciado 54, de Súmula do STJ. Entretanto, não havendo recurso do autor, pelo princípio da proibição da reformatio in

pejus, deve ser mantido o decisum que os fixou a partir da data da sentença. 5. Recurso não provido. (Acórdão n.636062, 20100110110944APC, Relator: Arnoldo Camanho de Assis, Revisor: Antoninho Lopes, 4ª Turma Civel, Publi- cado no DJE: 28/11/2012. Pág.: 102) (g.n.).

Merece destaque julgado da Suprema Corte em hipótese semelhante, mutatis mutandis:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ARTIGO 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LATRO- CÍNIO COMETIDO POR FORAGIDO. NEXO DE CAUSALIDADE CONFIGURADO. PRECEDENTE. 1. A negligência estatal no cumprimento do dever de guarda

e vigilância dos presos sob sua custódia, a inércia do Poder Público no seu dever de empreender esforços para a recaptura do foragido são sufi- cientes para caracterizar o nexo de causalidade. 2. Ato omissivo do Estado que enseja a responsabilidade objetiva nos termos do disposto no artigo

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37, § 6º, da Constituição do Brasil. Agravo regimental a que se nega provi-

mento. (RE 607771 AgR, Relator(a):  Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-06 PP-01216 RT v. 99, 898, 2010, p. 152-154 LEXSTF v. 32, 377, 2010, p. 250-254) (g.n.).

Pois bem, no caso em tela, além de se tratar de uma negligência do Estado, ao deixar de fiscalizar suficientemente as atividades da instituição de abrigo de me- nores, a fim de evitar o fato narrado nos autos, praticou o ente público ato comis- sivo gerador de dano, ao permitir o abrigo de adolescentes de ambos os sexos, na mesma casa, sob a proteção da mesma “mãe social” (fls. 576-577). Tal fato, evidentemente, contribuiu para o fato danoso.

A responsabilidade da ré Casa de Ismael, por sua vez, decorre de sua imprudên- cia e negligência no zelo com a integridade física e psicológica da menor que se encontrava sob seus cuidados. Aplica-se, no caso, o disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal:

Art. 37. A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efici- ência e, também, ao seguinte:

[...]

§ 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado presta- doras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nes- sa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

No presente caso, restou amplamente demonstrado, principalmente mediante o Laudo de Exame de Corpo de Delito de fl. 34, que a autora sofrera abusos de na- tureza sexual.

Às fls. 32/33 consta cópia de parte de ofício encaminhado pela Casa de Ismael ao Juízo da Infância e da Juventude, datado de 24 de fevereiro de 2006, onde a entidade afirma, litteris:

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A Casa de Ismael – Lar da Criança informa essa Justiça do acontecido com a infante J:

a) no mês de janeiro, a mãe social M.H.P. de S., responsável pelas crianças em tela, percebeu que a infante J. apresentava crises de choro durante a madrugada, acalmando-se com a presença da mãe social. Questionada du- rante o dia, afirmava que nada havia acontecido;

b) No dia 15/2/2006 (quarta-feira), as infantes foram levadas para passar os últimos dias de férias na cada da prima, Sra. V.L. R.S., no endereço: Quadra X conjunto X casa X – Recanto das Emas – DF, onde residem várias pessoas, in- clusive L., irmão das abrigadas e que se evadiu da Casa de Ismael. Ao deixar a Entidade, as quatro irmãs estavam bem e apresentavam comportamentos normais. Contudo, durante a estadia na casa de M.. J. apresentou novas cri- ses de choro durante a madrugada. Questionada pela tia, a infante, muito nervosa, afirmou ter sido vítima de abuso sexual na Instituição, para onde tinha medo de voltar, indicando inclusive o agressor André Eduardo Moreira, também abrigado e residente na mesma casa-lar de J.

c) Ciente do fato, a Sra. M., encaminhou a criança para a rede pública de saúde, onde se constatou a veracidade do caso, porém não recebeu lau- do médico. Na segunda-feira, 20/02/2006, a Instituição foi informada do ocorrido e tomou as providências cabíveis. No mesmo dia, J. foi examinada por médico do IML que constatou marcas de violência sexual, não recente. Naquela data, a infante já apresentava alterações graves em seu compor- tamento e aspecto físico, como perda do apetite e coordenação motora, insônia, inchaço nas mãos e pés e choro constante, sinais que não haviam se manifestado no abrigo.

d) No dia 21/02/2006, a Instituição registrou ocorrência na Delegacia da

Criança e do Adolescente, onde A.E.M. foi ouvido e confessou o ato in- fracional por mais de uma vez no interior de sua casa lar. Como medida

acauteladora contra outras possíveis ocorrências, o jovem foi afastado do abrigo imediatamente e entregue a sua irmã V., onde permanecerá até deci- são judicial sobre o caso. [...]

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e) J. foi encaminhada pela entidade para acompanhamento médico e psi- cológico com início no dia 22/02/2006, contudo apresenta resistência para voltar ao abrigo, de forma que continua na residência da Sra. M., bem como suas irmãs. (g.n.).

Mediante o documento de fls. 712-714 a Casa de Ismael confirma o fato, solicitan- do inclusive a transferência da infante para outra entidade.

No dia 20 de fevereiro de 2006 foi realizado laudo de exame de corpo de delito, pelo Instituto de Medicina Legal, quanto a autora contava com 10 (dez) anos de idade, no qual se lê (fl. 34):

Paciente com 130 cm de altura, pesando 27 kg, com as seguintes caracte- rísticas físicas: desenvolvimento e saúde mental apresentando-se criança apática apresentando movimentos irregulares, sinais de violência ausentes, genitália externa com as seguintes características ou alterações: genitália infantil; hímen anular com rotura parcial no quadrante superior à esquerda (02 horas), nota-se pequeno fragmento aderido à borda.

Conclui, ainda, o laudo, que houve conjunção carnal, em data inferior a dez dias e que a menor era virgem (fl. 34v.).

Em depoimento perante a Delegacia da Criança e do Adolescente, em 21 de feve- reiro de 2006, o adolescente A.E.M .confessou a prática do estupro contra a menor, no interior da “casa 10” da Casa de Ismael (fl. 656).

Diante de tais fatos, o Juízo da Infância e da Juventude aplicou medida protetiva à autora, encaminhando-a ao Programa de Atendimento às vítimas de violência junto ao HRAS, conforme decisão de fl. 37, datada de 06 de março de 2006. À fl. 672 consta sentença prolatada nos autos de Processo Infracional em curso pe- rante a Vara da Infância e da Juventude, na qual foi aplicada ao adolescente A.E.M. a remissão, cumulada com medida socioeducativa de liberdade assistida e medida de prestação de serviços à comunidade, em virtude dos fatos narrados. Contudo, à fl. 750, foi reconhecida a prescrição da pretensão executória do Estado em rela- ção à medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade aplicada ao adolescente e de liberdade assistida, em virtude do decurso de mais de dois anos

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do trânsito em julgado da sentença sem que o menor fosse inserido em qualquer das medidas socioeducativas aplicadas.

Diante da condenação na esfera penal, o fato ilícito irradia seus efeitos nas esferas cível e criminal, restando demonstrado o nexo de causalidade entre o dano havido e a atividade do agente público, independentemente de culpa ou dolo, surgindo para o Estado a obrigação de indenizar.

No caso, não há que se falar em fato exclusivo da vítima ou de terceiro, mas em omissão administrativa no exercício de suas atribuições. O Estado deve, assim, res- ponder perante a vítima, independentemente da culpa, uma vez comprovada a autoria, o dano e o nexo de causalidade.

Ademais, depreende-se do conjunto probatório que restou suficientemente pro- vado o fato danoso, assim como o nexo de causalidade, eis que o fato ocorrera no interior da instituição que abrigava a menor, sob a fiscalização do Distrito Federal. Demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta omissiva do ente distrital e o evento danoso, deve o Distrito Federal responder objetivamente pelos danos causados à autora.

Resta evidenciada a insuficiente atenção do Estado, assim como da Casa de Isma- el, à menor em tela, incidindo os réus em culpa in vigilando. Nesse passo, devem responder pela omissão ao dever de proporcionar um ambiente seguro à integri- dade física das crianças sob seu abrigo.

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