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Em agosto de 1960, David Neves escreve para O Metropolitano (RJ), jornal oficial da União Metropolitana de Estudantes (UME)115, o artigo Hiroshima- Nevers: um itinerário. Inicia seu texto chamando a atenção para o clima de agitação que envolve o filme.

O bouleversement provocado por Hiroshima, mon amour é, em todos os aspectos, distinto daquele que se origina nas manifestações da emoção estética pura. O clima de choque participa constantemente das diversas sequências, fazendo lembrar certas produções inconsequentes da avant-garde, de pretexto meramente sensacionalista. Este clima, porém, visa a finalidades outras, provocando, inclusive, no ‘espectador

médio’, reações que variam da desaprovação às

interpretações mais desconcertantes.

No parágrafo seguinte, destaca o papel da montagem como elemento estrutural do filme. Com isso procura amenizar o alvoroço em torno do filme como criador de uma nova linguagem, uma vez que o recurso da montagem não é novo.

O mérito da fita é devido, entretanto, mais à rigidez e coerência adotadas, do que propriamente à criação da ‘nova linguagem cinematográfica’, segundo querem alguns. A revolução wellesiana de 1940-41, foi, usando um termo mais adequado, condicionado às feições e aos anseios de uma nova era.

A análise de David Neves procura dialogar com os críticos que veem em HMA inaugurador de uma nova linguagem. HMA seria ou não um divisor de águas na história do cinema depois de Cidadão Kane? O filme de Welles ocupava entre a crítica brasileira, até então, o grau mais alto na escala de importância de filmes que consolidaram o cinema como arte. Com o aparecimento de HMA essa

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posição de Cidadão Kane estava sendo relativizada e colocada em questão, e em alguns casos até mesmo substituída pelo novo filme de Resnais, como o fez José Lino Grünewald. David Neves, assim como Paulo Emílio Salles Gomes, se posiciona contrariamente a essa postura de alguns críticos que querem dar a HMA o título de fundador de uma nova linguagem, e encontra suas razões na ideia de montagem.

Para David Neves, através do recurso do flashback utilizado em seu grau máximo, Resnais articula o processo mental dos personagens. HMA nada mais é do que um trabalho de montagem que obedece a lógica da criação mental.

Todo processo interior de criação tem fundamento na capacidade intrínseca de imaginar (O próprio vocábulo encerra sua origem). O cinema, aqui, atinge pela primeira vez o ápice, nas investidas em busca da melhor exposição de nossos âmagos anímicos.

O que poderia ser inovador, o cinema pela primeira vez atingir o ápice “da melhor exposição de nossos âmagos anímicos”, é para David Neves apenas a associação livre das ideias através da montagem. A montagem, para ele, é empregada com esse objetivo, imagens do passado são mescladas com as do presente, trazidas à luz pelo diálogo ou pelo monólogo interior da personagem de Emmanuelle Riva. E a “alternância desta prioridade varia segundo a coerência das associações e do desejo de Resnais em fundamentar a narrativa sob um método de montagem por refrão sonoro”, como pontua em nota no artigo.

A maior constante é, portanto, o paralelismo – fonte primeira de associação subsistente nas relações palavra-imagem –, e as demonstrações mais claras desta proeminência se oferecem claramente ao observador. Exemplo sugestivo, o corte brusco da cena que focaliza, ainda no início, o japonês semi-adormecido com os dedos da mão em ligeiros movimentos nervosos para a evocação crua, na mulher, dos instantes finais do amante em Nevers.

Mesmo reconhecendo que a palavra tem, portanto uma dimensão de importância por trazer uma cena “já relembrada ou por relembrar” acredita que em HMA o que realmente prepondera é a função visual criada a partir do ato de imaginar. Essa concepção se traduz na frase dita pela personagem “Comme pour lui, l’oubli commencera par l’oeil...” considerada por David Neves o leitmotiv do filme. No seu entender, essa unidade conceitual será quebrada com a sequência inicial do filme.

As passagens selecionadas de documentários, reportando à tragédia da explosão da bomba atômica em Hiroshima, e sua correspondência aos estreitamentos amorosos do presente, pecam bastante por inverossimilhança, apesar do caráter obsessivo que toma, na heroína, e das tentativas vãs do amante em apagar do seu espírito cenas de tanta crueza. (Non, tu n’as rien vu à Hiroshima.) Tais cenas diluem ligeiramente a coesão estrutural da fita, que começaria a ser comprovada posteriormente.

Não encontra nesse início do filme as razões que possam reforçar o caráter antibelicista da obra, provocando apenas, no entender de Neves, um “mal- estar psíquico” no espectador. O curta-metragem de Alain Resnais Nuit e Brouillard é apontado como possível explicação, uma tendência de Resnais, para o prelúdio que quebra a unidade do filme. Como David Neves não teve a oportunidade de assistir a esse curta, encerra apenas dizendo que “a introdução da fita deverá ter outra explicação, pois não seríamos capazes de julgá-la gratuita em obra tão séria”. E conclui seu trabalho afirmando:

Não há dúvida de que estamos diante de uma realização sui generis (...) Obra-prima ou filme desprezível, acreditamos que a polêmica despertada de imediato nos lugares onde passa já é, em si, fato salutar e prova cabal de seu mérito.(...)Que estas palavras iniciais abram as portas para melhores tentativas de apreensão deste fenômeno que sacode o mundo cinematográfico moderno.

Mesmo não compactuando da ideia de que HMA seja um inaugurador de linguagem, David Neves não deixa de reconhecer o caráter inusitado que a obra de Resnais desperta. A expressão sui generis para definir o filme, ou seja, do latim, aquilo que não apresenta analogia com nenhuma outra, torna em certa medida ambígua a sua análise.