• Nenhum resultado encontrado

Paulo Leite Soares faz parte da nova geração de críticos mineiros formados dentro do CEC/MG. Em setembro de 1960, assume a coluna diária de cinema do principal jornal de Minas Gerais, o Estado de Minas, que já tinha sido assinada por Cyro Siqueira. Paulo Leite Soares publicou uma sequência de três artigos no Estado de Minas, intitulados apenas Hiroshima Meu Amor, seguido entre parênteses do número do artigo. Hiroshima Meu Amor (I) foi publicado na seção de cinema no dia 19 de outubro de 1960, no dia seguinte o de número (II) e por fim no dia 21 de outubro o (III).

O primeiro artigo da série introduz a discussão do reconhecimento do filme de Resnais como obra introdutória de “modificações que levam a uma nova estética”. Nesse ponto dialoga com o texto Hiroshima, mon amour: obra inavaliável

abre caminho para a ‘Stream of consciousness de Maurício Gomes Leite, apesar de não citá-lo explicitamente.

Poder-se-ia chamar ‘Hiroshima Mon Amour’ de obra

inavaliável, por enquanto, desde que dificulta

extraordinariamente qualquer exegese completa e apenas permite ao crítico apontar aqui e ali suas grandes qualidades e girar em torno delas.

Marca posição em relação aos trabalhos de análises que estavam sendo apresentados sobre o filme, uma vez que não acredita que até o momento nenhum comentário crítico chegou “ao fundo de Hiroshima”. Paulo leite Soares destaca que essa é uma condição transitória, ao pontuar a primeira frase acima com um “por enquanto”. Isso serve de munição para relativizar as análises e conceitos difundidos pelas publicações francesas, que eram tão amplamente lidas pelos críticos no Brasil.

(...) a crítica européia, particularmente a francesa, às vezes tão intransigente em relação a seus próprios conceitos, viu- se obrigada a abrir longos debates em mesa-redonda sobre o filme de Resnais; e, fato curioso, as duas publicações mais categóricas, mais afirmativas, desceram muito calmamente de suas torres de marfim para debater a obra, o que não deixa de ser uma prova vigorosa do reconhecimento da importância de ‘Hiroshima’ e da extrema complexidade com que se apresenta ao crítico e, muito mais, ao espectador. Pelo texto, podemos intuir que as publicações a que se refere são as revistas Cahiers du Cinéma e Positif, já que as duas realizaram debates entre seus articulistas em torno de HMA. O Cahiers du Cinéma, com o já comentado aqui Hiroshima notre amour e, a Positif, um debate um pouco mais amplo com objetivo de discutir o momento do cinema francês, intitulado Quoi de Neuf?133, tendo como um dos tópicos de discussão HMA. Essas revistas francesas,

133

TAILLEUR, Roger; THIRARD, Paul-Louis; DEMEURE, Jacques; FIRK, Michèle; BOLDUC, Albert; SEGUIN, Louis; KYROU, Ado. Quoi de neuf? Positif, nº 31, nov. 1959.

incluindo ainda a Téléciné, servem para Paulo Leite Soares como referências para a sua série de artigos, e é a partir delas que ele dialoga com o filme. Concorda com a afirmação dos críticos do Cahiers du Cinéma de que a obra de Resnais é uma obra de natureza dialética - relação entre esquecimento e lembrança, “com a interligação dialética de vários outros problemas existenciais”. Esse é o elemento de aproximação do filme de Resnais com a literatura moderna, como os escritores Faulkner, Joyce e John dos Passos.

Guardadas as devidas proporções, Resnais usa em cinema o que os modernos autores literários usam em literatura, desligando o cinema de um classicismo que outras artes já superaram.

Esse ponto de interseção do filme com a literatura foi alvo de inúmeras acusações que HMA sofreu, mas Paulo Leite Soares considera que no filme não há um uso literário de “modo servil”. Destaca a unidade de conjunto entre “diálogo- música-ruído-imagem” de HMA como uma das revoluções na linguagem cinematográfica empregada por Resnais. Termina, citando o crítico francês Armand Cauliez que duvidou da classificação do cinema dentro das artes visuais, comentário que já havia sido assinalado por Paulo Emílio Salles Gomes.

Hiroshima meu amor (II) pretende, a partir da introdução realizada no artigo anterior, comentar o que considera ser o ponto chave da evolução da linguagem cinematográfica, ou seja, o momento em que o cinema se iguala à literatura e resolve as questões que estão no centro das preocupações dos romancistas modernos. Por isso, Paulo Leite considera que HMA está numa posição tão revolucionária como a que alcançou Cidadão Kane, sendo que HMA vai um pouco mais adiante.

[Hiroshima] leva a extremos certos métodos empregados seja no romance – a narrativa subjetiva, os diálogos anti- figurativos, o filme dentro do filme – ou no cinema – o ‘flash- back’, igualmente um recurso literário, e a montagem áudio- visual.

A linha condutora do artigo segue a ideia de que HMA não permite aproximações com outras obras do cinema, mesma ideia defendida por Maurício Gomes Leite e José Haroldo Pereira, e por este motivo é inavaliável. Paulo Leite, para reafirmar sua posição cita como exemplo o debate do Cahiers du Cinéma em que Jean-Luc Godard comenta que se poderia dizer que o filme de Resnais é uma mistura de Faulkner mais Stravinsky, ao invés de dizer que o filme é um pouco de um ou outro cineasta. Para Paulo Leite Soares, se existe uma impossibilidade de encontrarmos referências no próprio cinema, podemos buscar um elo de ligação com a literatura moderna, principalmente com a escola americana.

O personagem de Emmanuelle Riva “procede pelas constantes voltas ao passado, interligadas e explicando dialeticamente as reações do presente”. Esse movimento do personagem gera uma obra, como assinalou Jacques Rivette, construída a partir da fragmentação da realidade. O resultado dessa fragmentação é o que surpreende Paulo Leite Soares.

É incrível que se possa conceber tanta unidade num filme composto em sua base de fragmentos, o que só pode ser explicado pelo rastreamento rítmico dado pelo texto de Marguerite Duras e pela música de Fusco e Delerue.

Encontra nas explicações de Armand Cauliez um caminho de resposta, mas Paulo Leite adverte “não satisfaz totalmente”. Com a citação do crítico francês encerra seu artigo:

A imagem está localizada num tempo, mas o som lhe confere uma extensão intemporal e universal. A imagem cria um choque visceral, desejaríamos gritar como um animal: mas o som é poesia. A imagem implica uma participação; mas o som deixa lugar à reflexão.

No último artigo da série, Paulo Leite Soares trata de um ponto que também foi centro de inúmeras discussões no período: o caráter político de HMA. Acredita que Alain Resnais e Marguerite Duras, “ambos ex-membros do partido

comunista”, reafirmam suas posições políticas em grande parte das sequências do filme, apesar de conferir mais atenção ao “tema do amor e do esquecimento” em detrimento das desigualdades entre as classes. Nesse ponto alfineta um dos companheiros de crítica, provavelmente Antonio Moniz Vianna, que em artigo para o Correio da Manhã condena o fato de Resnais ter uma posição pouco explícita em relação à guerra.

Como notou muito bem Michèle Firk, responsável por algumas das melhores observações sobre o filme, Resnais não condena a guerra em bloco como todos os pacifistas (o que não é escândalo como afirmou um dos nossos críticos, mas sim a consciência contra uma das formas de degradação pelo poder).

Paulo Leite acredita que o primeiro longa-metragem de Resnais exerce tanta força política quanto os seus filmes curtos, como por exemplo, Guernica, Les Statues Meurent Aussi, Nuit et Brouillard. O tema da memória e do esquecimento, este último delineado nos curtas Van Gogh e Gauguin, trazem à tona a recordação das grandes tragédias do mundo moderno.

Resnais sabe muito bem, e o tem afirmado que temos o dever e a vontade de nossas recordações, mas somos obrigados a viver e esquecer. Por isso mesmo se encarrega de reavivar as memórias, individuais ou coletivas, de apresentar a necessidade da lembrança tendo em vista a preocupação pelo destino social.

Nessa série de artigos publicados no Estado de Minas, Paulo Leite Soares aponta para as questões que estavam no centro da maioria das análises sobre HMA. A relação cinema-literatura, a revolução estética – aqui sua interface com Cidadão Kane –, e por último o caráter político da obra. Quando Paulo Leite Soares escreveu seus artigos, vários críticos brasileiros já haviam publicado suas considerações, como por exemplo, Antonio Moniz Vianna, Paulo Emílio Salles Gomes e também seu companheiro do CEC/MG Maurício Gomes Leite, mas o

crítico do Estado de Minas em nenhum momento faz referência direta a essas análises, preferindo dialogar explicitamente com os críticos franceses, inclusive nomeando-os.