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Glauber Rocha escrevia de forma esporádica para o Diário de Notícias de Salvador ao lado do colunista principal e de seu maior incentivador Walter da Silveira. O primeiro artigo de Glauber sobre HMA no Diário de Notícias data de 2 de outubro de 1960, antes de sua exibição em Salvador, que acontecerá apenas no ano seguinte. Com o título O filme: novo: Hiroshima119, Glauber inicia seu artigo comentando a reação emocionada do cineasta H.G. Clouzot diante de HMA exibido no Festival de Cannes. Diz também que a reação ao filme é de emoção e não surpresa, uma vez que Alain Resnais já havia demonstrado talento em seus filmes de curta-metragem.

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Os dois artigos de Glauber Rocha tratados aqui foram publicados recentemente no catálogo da Retrospectiva Alain

Resnais. A revolução discreta da memória promovida pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, mas foram publicados com

Muitos críticos não tiveram receio em qualificar Hiroshima, meu amor como obra mestra, porque nela se pode saborear o cinema integral, total, tal como muitos teóricos o haviam descrito sem que nada até agora haja conseguido marcar com um selo tão particular a totalidade de sua película.

Glauber diz ainda que: “o que primeiro chama atenção em Hiroshima, meu amor é a originalidade da montagem, que é bastante audaciosa”. Lembra da descrição dos horrores provocados pela bomba, somado ao “passeio da câmera” pelos restos do bombardeio. Por último assegura que apesar da guerra, o filme “fala de amor”. Uma conjunção de fatores que fazem de Resnais um cineasta sensível.

A beleza das imagens de Resnais, junta-se a profundidade de Marguerite Duras, conciso, claro e sem inúteis adornos, Alain Resnais mostra-nos também que sabe escolher intérpretes. Emmanuelle Riva tem qualidades excepcionais de atriz e o contraste que produz com o seu par (ela francesa, ele japonês) Eiji Okada é mais surpreendente e corrobora num dos principais motivos da existência de Hiroshima, meu amor. FRENTE AO AMOR NÃO EXISTEM NEM LEIS NEM FRONTEIRAS.

Sob o título Primeira Visão de Hiroshima Glauber Rocha publica no dia 23 de outubro de 1960 seu outro artigo sobre o filme. Nesse artigo, como demarcado pelo título, Glauber esclarece ao leitor que se trata de uma “primeira visão” e que, portanto não pode “registrar nada mais do que ‘impressões’”, apesar de não compartilhar com a “crítica impressionista” e se justifica dizendo que HMA:

[...] deixa atordoado qualquer espectador que o vê pela primeira vez. E só começamos a ‘descobrir’ o filme muito tempo depois de tê-lo visto. É um perigo ver Hiroshima. Eu, por exemplo, não tenho vergonha de confessar que assistir Hiroshima foi uma das minhas maiores experiências humanas.

Na tentativa de organizar suas ideias, Glauber estrutura seu texto de maneira esquemática, em forma de questionário, pontuando elementos já tratados por parte da crítica brasileira e estrangeira. Em primeiro lugar, Glauber Rocha pergunta “O que é Hiroshima?” Lista dez possibilidades de se encarar o trabalho de Resnais ou que podem suscitar ao espectador.

a) é um documentário de ficção;

b) é um filme literário, ou melhor, uma literatura ilustrada; c) que é um filme de vanguarda;

d) que é um truque

e) que eleva o cinema ao plano da filosofia;

f) que é um fruto da inteligência: um intelectualismo; g) que é um aborto neurótico;

h) que é um filme politicamente de esquerda; i) que é um filme existencialista;

j) que não é nada além de uma confusão lítero-plástica. Glauber Rocha acredita que as respostas são tão díspares que o impedem de conceituar ou mesmo de criticar o filme, antes de tornar a vê-lo. Glauber procura traçar o caminho para o entendimento de HMA dizendo que precisa:

[...] falar daquele território aparentemente caótico de imagens que nasce cercado de um texto belíssimo, elaborado por Marguerite Duras. O filme oscila entre a imagem e o texto? Tendo como base essa pergunta que Glauber diz tê-lo tomado de assalto por várias vezes, encontra resposta na ideia de que em HMA se tem uma realização próxima da que fez Proust na literatura, “só que, na busca do tempo, Alain Resnais liquida o tempo dramático e o tempo real”.

O próximo ponto de seu texto esquemático diz respeito ao significado do sentimento da atriz em relação ao seu novo amor do presente em Hiroshima e o grande amor do passado, o soldado alemão em Nevers. “Ela se esqueceu do amante alemão?”, pergunta Glauber, que em seguida descreve situações do filme. Cita a cena em que a atriz relembra o seu amor do passado a partir de uma

situação do presente e conclui que é preciso esquecer Hiroshima e Nevers “a fim de que o amor possa atingir uma plenitude absoluta”. E nesse caminho completa:

Todavia é Nevers que ressurge das ruínas de Hiroshima. É a memória de sua tragédia burguesa e individual que se ergue dentre os escombros de uma tragédia coletiva. Se buscando esquecer Nevers, a mulher do ocidente pede paz para ela, é sua paisagem japonesa que se revela e pede PAZ para o mundo, e vale mais do que a desgraça de todos os amores. Evidente, Resnais não chega a julgar os termos desta paz. Amor e paz surgem então como dois mitos de oposição, por incrível que pareça.

O último ponto está relacionado ao papel do cineasta Alain Resnais no cinema, já que para Glauber Rocha com HMA Resnais “sublevou a forma cinematográfica e inaugurou o filme moderno”.

Alain Resnais está para o cinema como está para a pintura o primeiro artista que rompeu com a escola acadêmica da pintura. Está, no plano da relatividade, como um James Joyce na literatura e é ele que, após Eisenstein, primeiro realiza no cinema a teoria da montagem como processo de investigação da realidade do homem e como instrumento de estudo metafísico.

Para Glauber, o que Resnais fez com a câmera está muito além do verbal, por isso deixa claro que não compactua com aqueles que consideram a escritora Marguerite Duras coautora do filme.

Marguerite Duras, concluímos, não é autora de Hiroshima. Ela é o ‘espírito lateral do filme’. É um eco. Um reflexo. A Câmera de Alain Resnais é a verdadeira criadora – ou estudiosa? – de tudo. Resnais é um ‘documentarista do espírito’, ou seja, um homem que vê o pensamento do homem e não a imagem.

Glauber Rocha já manifesta nessa passagem a concepção de autor no cinema que ele formaliza em seu livro de 1963 A Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, em que em sua introdução explica o método que aplica em sua análise do cinema brasileiro. Diz Glauber:

A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário, porque a condição de autor é um substantivo totalizante. [...] O autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua ‘mise-en-scène’ é uma política.120

Mas no caso do autor Resnais e da obra HMA, Glauber não se mostra completamente convencido da revolução empregada e conclui seu primeiro artigo dizendo:

Considero, porém, sinceramente, que ninguém poderá dizer a palavra final sobre Hiroshima. Nem mesmo o próprio Alain Resnais. Talvez o tempo possa chegar a alguma conclusão. Resistirá Hiroshima como resistem os grandes poetas do passado?