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Deficiência, pessoas com deficiência e pessoas surdas

O processo de estigmatização no emprego se desenvolve nas relações entre deficiência e o que entendem por com outras pessoas, podendo confirmar um processo de auto estigmatização. Veem as suas limitações como negativas e que as impede de obter um emprego. Isto está claro nas palavras de Aparecida: Na época

em que eu não trabalhava, creio que eu era vista como alguém que só dava incomodo. Não produzia nada. Eu tinha idade de produzir, para desenvolver alguma coisa.18

O não produzir nada, ―ou só incomodar‖, remete ao que Sennett (2006) coloca como a necessidade de sentir-se útil na sociedade capitalista: ―Sentir-se útil significa contribuir com algo de importância para os outros.‖ (Idem: 174). Na visão das pessoas marcadas pelo estigma da deficiência, que se preocupam em se inserir em um processo produtivo, o ―sentir-se útil‖ corresponde a estar empregado e isso advém do pensamento corrente de que é preciso desenvolver uma atividade produtiva, não ser um peso para a sociedade. Ao mesmo tempo, quando uma pessoa com deficiência está empregada, causa surpresa, admiração e até descrença. Explica uma entrevistada: [...] a outra pessoa a olha com desconfiança e

assustada lhe pergunta: - Mas você trabalha!? E provavelmente deverá pensar - Nossa essa menina trabalha. A pessoa não fala, mas pelo olhar dá para saber isto tudo19. Ao mesmo tempo em que a condena, a sociedade a desacredita. Dessa

forma, a pessoa com deficiência sofre duplamente com o estigma social que lhe é atribuído.

Tais situações contribuem para o desenvolvimento do processo de auto estigmatização. Geralmente as pessoas com deficiência, em função terem que

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Depoimento colhido por mim em 13 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR.

conviver com a negação social que passa a lhes ser imposta, decorrente dos vários estereótipos do estigma social da deficiência constroem uma visão negativa da sua deficiência, principalmente, quando passam a procurar emprego. Isso fica claro nas palavras de Dolores: Foi quando comecei a procurar trabalho que passei a conviver

com o preconceito em relação à deficiência. Inicialmente na SIEMENS, quando preenchi uma ficha e fiz uma entrevista para emprego e no momento de me chamar a pessoa me falou que não daria certo, porque aquele cargo não condizia com as minhas qualificações, mas era para eu aguardar que entrariam em contato por telefone para vagas futuras. Até hoje o tal telefonema não aconteceu.20

No processo de desenvolvimento da auto estigmatização e a reafirmação do estigma social da deficiência, as pessoas com deficiência ou surdas, se deparam com um dilema. Ou assumem a fachada de dependentes da sociedade ou assumem a fachada de lutadoras e causam espanto. Ambas as situações podem se inserir no que Goffman (2011) entende por ―preocupação com a fachada.‖ (respeito próprio) que o indivíduo constrói no processo de interação com os demais e a preocupação com a linha (o padrão mediado por atos verbais ou não com o qual um indivíduo expressa sua opinião sobre uma dada situação, e por meio desta emite uma avaliação sobre os demais participantes e a si mesmo).

Sob perspectiva de assumir ou não a condição de trabalhadoras assalariadas os depoimentos de Aparecida e Dolores, podem indicar dois caminhos que estão inseridos em uma mesma análise de Goffman (2011) e que dizem respeito ao processo de interação e preservação da fachada, ―[...] quanto à sociedade, se a pessoa estiver disposta a estar sujeita a um controle social informal – se esta estiver disposta a descobrir, a partir de dicas e olhadelas e pistas cuidadosas qual é o seu lugar e mantiver esse lugar – então não haverá nenhuma objeção a que ela mobílie esse lugar do jeito que quiser, com todo o conforto, elegância e nobreza que sua sagacidade obtenha para ela. Para proteger esse abrigo, ela não precisa trabalhar duro, nem se juntar a um grupo, nem competir com alguém; ela precisa apenas tomar cuidado com os juízos expressos aos quais ela se coloca numa posição de testemunhar. Algumas situações, atos e pessoas terão que ser evitados; outros menos ameaçadores, não devem ser levados muito longe. A vida social é uma coisa ordenada e não atravancada, porque a pessoa voluntariamente fica longe dos

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lugares e tópicos e momentos em que ela não é desejada e onde poderia ser depreciada.‖ (Idem: 47-48).

Ao assumir a fachada de pessoa com deficiência, ou surda, vivendo com o auxílio do governo e sob o controle informal da sociedade no sentido de ter reconhecida a sua fachada de que não pode ser uma pessoa produtiva em razão de sua limitação, a pessoa em tais condições construirá linhas de participação nos grupos sociais com os quais se relaciona ou se manterá afastada, o máximo deles, para evitar os constrangimentos que coloquem em risco a sua fachada ou sofrer discriminações. Entretanto, ao agir assim, contribuirá para reforçar o estigma daquele que vive na dependência da sociedade e que para ela não contribui de forma produtiva.

Construir e assumir a fachada de pessoa com deficiência, mas inserida no processo produtivo, e ao contrário do que Goffman (2011) colocada, terá que trabalhar duro para participar de algumas atividades empresariais. Dolores relata o que ocorria com ela nesse sentido, quando estava sendo treinada em uma empresa que trabalhava antes de vir para o Sistema FIEP: [...] algumas não gostavam de me

ensinar. Elas queriam que você pegasse a orientação dada na hora. Então tinha duas que, até eu aprender, sofri muito com elas. [...]. Mas a Cláudia, que era a encarregada de me ensinar era muito ruim. Gritava, me xingava de burra e de outras coisas.21

Esse trabalhar duro, apontado por Goffman (2011), inclui entender as olhadelas, as dicas e pistas relativas à escolha realizada pela pessoa com deficiência que poderão ser contraditórias, estimulantes ou desestimulantes. No processo produtivo, por exemplo, poderá estar colocando em ameaça outros que com ela concorrem por uma determinada vaga ou cargo, e estes, poderão desenvolver estratégias e linhas de defesa, muitas vezes depreciativas, baseadas nos estereótipos que procuram reforçar o estigma da deficiência ligado à ineficiência, à incapacidade, baseados no temor que desenvolvem diante de uma pessoa com deficiência ou surda.

Em ambos os caminhos, a pessoa deficiente ou surda sofrerá o controle informal dos grupos sociais em que está inserida. Porém existe ainda outro tipo de controle a que estão sujeitos os deficientes e os surdos denominado por Goffman

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(2011) de controle formal. Quando as pessoas com deficiência recebem o auxílio do Benefício de Prestação Continuada (BPC), esse tipo de controle é exercido diretamente pelo Estado. Quando opta por se inserir no processo produtivo, o controle é exercido, indiretamente pelo Estado mediante a legislação prevista para a criação de vagas de emprego nas empresas; os registros periódicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), além da fiscalização exercida por esse órgão estatal para verificar se as empresas estão ou não cumprindo as normas jurídicas. De forma direta essas pessoas são controladas pelas empresas que as contratam e acompanham seu desempenho, produtividade e desenvolvimento. Em muitos casos, as pessoas com deficiência ou surdas são alocadas em um lugar ou posição abaixo da sua própria capacidade profissional apenas para se cumprir a legislação.

Os depoimentos, as falas das pessoas com deficiência ou surdas entrevistadas, neste estudo, expressam uma necessidade de estarem empregadas. As palavras de Eliane são bem ilustrativas nesse sentido: Antes de começar a

trabalhar eu me sentia muito rejeitada pelas demais pessoas. Logo no início da minha deficiência, foi muito difícil. Também o foi nos dois anos e meio a partir do momento que comecei a trabalhar. Depois comecei a me sentir mais à vontade no meio das outras pessoas [...].22 Relacionando com a visão de serem ―úteis‖ para a sociedade, as pessoas com deficiência ou surdas, são muitas vezes caracterizadas com a preguiça, vadiagem, falta de vontade, falta de empenho, inclusive, de procurar um emprego. Consequentemente passam a se sentir na obrigação de se vincular a uma atividade produtiva. Mas dentre estas o emprego é a mais valorizada, principalmente nas sociedades capitalistas, onde se espera que as pessoas necessariamente desenvolvam algo produtivo e não seja um peso, estorvo, ou sanguessuga para a sociedade.

Outrossim, as pessoas com deficiência ou surdas, têm que conviver com os graus de competitividade onde as relações sociais se medem pela eficiência. Desse modo, devem apresentar sempre resultados, quando se está inserido nas empresas, provando que tem condições de estar lá e ocupar uma vaga. Se não fizer isso, não obterão sucesso e se não se mostrarão pessoas produtivas, sendo alijadas do processo.

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O termo deficiente não deve ser aplicado à pessoa na sua totalidade, viés que infelizmente acontece no processo produtivo, podendo condenar uma pessoa nessas condições ao que Goffman (2008) designa por ―carreira moral distorcida‖. A deficiência deveria ser compreendida como a indicação de uma limitação para uma determinada atividade, mas não para todas. Infelizmente as pessoas nessas condições passam a ser vistas como totalmente incapazes.

Em razão das exigências e da rapidez na obtenção de resultados nas empresas, a visão em relação às pessoas com deficiência e às surdas é a de que não conseguirão atender às exigências e não conseguirão alcançar as metas nos mesmos patamares das chamadas pessoas normais. Relaciona-se, destarte, eficiência humana e pessoal com normalidade física. Quando alguém com deficiência ou surda está empregada e consegue obter desempenho igual ou acima das demais, desde que respeitadas as limitações, a maioria destas demonstra surpresa pelo resultado alcançado pelas pessoas com deficiência ou surdas. Geralmente, o que embasa esse discurso que trata da admiração, do exemplo, da melhoria do clima organizacional ao se trabalhar com uma pessoa com deficiência ou surda é a visão estereotipada de que essas pessoas não conseguiriam, por sua deficiência, alcançar os resultados que alcançam.

No caso das pessoas surdas, a compreensão da sua condição remete à igualdade com os chamados normais, em termos de sentimentos e dificuldades pelos quais passam. Na visão de Luiza, ser uma pessoa surda é ser normal como

qualquer outra, ter sonhos, objetivos, dificuldades. Quanto à barreira de comunicação, existem várias maneiras de conseguirmos nos comunicar com as pessoas além dos sinais, por exemplo, escrita e gestos.23 O depoimento expressa

que, com relação aos surdos, a grande barreira, a grande fraqueza que impede o maior relacionamento com o mundo dos ouvintes, ainda é a língua, a comunicação, o mesmo comenta Joana na sua entrevista: [...] o que às vezes é complicado

quando a pessoa conversa comigo e fala rápido, não consigo fazer a leitura labial, então peço que escreva, então entendo e respondo escrevendo também.24 Em outro

momento, trata situações de treinamento, eventos, ou reuniões coletivas, nas instituições do Sistema FIEP, quando as pessoas surdas não contam com a presença de um intérprete em LIBRAS. Tento fazer leitura labial, observo os slides

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Depoimento colhido por mim em 10 de agosto de 2010, na cidade de Curitiba–PR.

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ou pergunto alguma coisa para a minha tutora, e ela escreve para eu ler. Em Libras, não tem nada.25

Apesar de Luiza e Joana apontarem a superação da barreira da comunicação entre surdos e ouvintes com outras formas de comunicação (escrita, leitura labial), a situação constrange, nem tanto às surdas, mas também os colegas de trabalho. Essa situação aparece na entrevista da tutora Kátia, que se sente ―mal‖ por tentar se comunicar com uma pessoa surda e não conseguir, ―ter medo de errar os sinais e fazer papel de boba,‖ indicando a necessidade de se oferecer treinamento em LIBRAS periodicamente. Nesse contexto, é necessário entender que para os surdos, a LIBRAS é a sua língua, tendo na língua portuguesa a segunda língua. Quando for possível compreender isso, se modificará o modo de agir em relação aos surdos. Deste modo, o processo de sua inserção no emprego poderá ser facilitado.

A situação de ser pessoa com deficiência e trabalhadora, ao mesmo tempo indica para Aparecida que alguém em tais condições é uma pessoa esforçada, diz ela: O mundo do trabalho é capitalista. [...] Você tem que realizar as coisas para

ontem. Você tem que correr, tem que atingir as metas, tem que “se virar nos 30” para conseguir os resultados esperados. Ninguém vai lhe dizer, “aí, olha você produziu tanto, tá bo”. Nesse mundo do trabalho não tem isso.26

As palavras de Aparecida revelam, conforme explica Aranha (2003), que no modo de produção capitalista, ―[...] as relações de produção são organizadas de forma a utilizar-se mecanicamente do fazer do homem, e não do seu pensar e ativa participação [...].‖ (Idem: 8). Isso pode, segundo a autora, levar o indivíduo a um processo de coisificação, o que implica a ser considerado apenas como uma engrenagem no processo produtivo, perfeitamente substituível quando não corresponder mais aos interesses da empresa.

Para Eliane, as pessoas com deficiência são cobradas tanto quanto as sem deficiência. Você tem que ser taxativo naquilo que eles estão pedindo né, fazer bem

feito e ter o potencial para fazer, porque se você falar “não, olha não tenho condição de fazer”, provavelmente eles vão procurar outra pessoa para fazer por você, ou ajudá-lo. Acho que ajudar não seria tão normal, porque se eu preciso de você para ajudar é porque eu não consigo fazer aquilo que eu tenho que fazer.27

25 Idem.

26 Depoimento colhido por mim em 13 de julho de 2010, na cidade de Curitiba–PR. 27

Aparecida e Eliane demonstram a preocupação de não atender aos interesses da empresa, que se transformam em pressão pelo alcance de resultados, e boa execução das tarefas que lhes cabe. Alcançar metas faz parte do planejamento de uma empresa. Portanto, atinge a todos, indistintamente, na linha de produção ou no setor em que o funcionário está lotado. Metas que geralmente são estipuladas com base em um nível acima do limite da capacidade de produção, considerado como de segurança para o alcance dos índices ideais de rentabilidade da capacidade produtiva instalada, com os quais as empresas trabalham. Com base nisso, mede-se a produtividade individual, e ficar abaixo das metas, indica pressão dos supervisores e dos próprios colegas de equipe. Considerando que muitas empresas, em que as pessoas com deficiência ou surdas são inseridas, operam em diferentes países, a pressão e cobrança pode se tornar ainda mais elevada. Afinal, as várias unidades industriais, de um mesmo grupo, passam a ser medidas e comparadas entre si, e aquelas que não condizem com os retornos esperados, são desativadas ou transferidas para outros locais em busca de melhores condições, menores custos de produção e maior retorno sobre o capital investido. Isso fica claro nas palavras de Sennett (2006) ao tratar do fantasma da inutilidade em decorrência da oferta global de mão de obra.