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Definições contemporâneas dos conceitos de intolerância e de tolerância

2. Considerações acerca dos conceitos de tolerância e de intolerância 1 Introdução

2.3. Definições contemporâneas dos conceitos de intolerância e de tolerância

Veremos, nesta seção, algumas definições de intolerância e de tolerância. Inicialmente, apresentaremos as definições de intolerância propostas por intelectuais e por pesquisadores. Em seguida, passaremos às considerações sobre a noção de tolerância com os mesmos autores.

Umberto Eco, filósofo e semioticista, afirma que o antissemitismo, o racismo pseudocientífico, o fundamentalismo religioso, entre outras, são “posições teóricas” que pressupõem, para sua existência, uma determinada doutrina, a qual ele chama de “doutrina da diferença”. A intolerância existe anteriormente a essas “doutrinas da diferença”, porque é definida por Eco como uma predisposição natural que todo ser humano tem, ainda na infância, de rejeitar o que é estranho e lhe desagrada50. Ao mesmo tempo, as “doutrinas da diferença” dependem da intolerância, tal como definida pelo autor, porque elas mobilizam intolerâncias difusas existentes na sociedade. Eco (2000: 17- 19) cita, como exemplo, o antissemitismo. Essa forma de intolerância contra o povo judeu só pode se formar, como uma doutrina e uma teoria, porque já existia uma imagem negativa do judeu ao longo do tempo.

Para o autor, as formas clássicas de intolerância não são as piores, porque podem ser facilmente identificadas e combatidas. A pior forma de intolerância é a que ele identifica como “intolerância selvagem” (2000: 17-19). Essa intolerância extrema está presente no indivíduo e é caracterizada por um ódio descontrolado, irracional e aparentemente sem motivo. A intolerância selvagem não conhece limites nem pode, segundo o autor, ser explicada ou entendida, mas ao mesmo tempo deve ser a principal forma de intolerância a ser combatida.

50 Eco (2000: 17) identifica a educação como uma forma de se diminuir essa tendência natural à rejeição

Já a antropóloga Françoise Héritier (2000) procura as causas da intolerância, entendida pela autora como a exclusão e a eliminação de grupos sociais, na rejeição ao outro, a partir de uma ideia de pureza e de unicidade (de qualquer natureza) constituinte da identidade. É a ideia de pureza e de unicidade que orienta as formas que levam ao desaparecimento da figura da alteridade. A definição de Héritier mostra, assim, que o objetivo final da intolerância é eliminar aquilo que supostamente motiva sua própria existência: a alteridade, o outro, a diferença. Como afirma a própria autora:

Um arraigado mecanismo de intolerância e do racismo, inerente à questão da pureza do sangue, consiste na convicção de que os outros não pensam, não sentem, não reagem como nós (qualquer que seja esse ‘nós’), que nos consideramos a essência da humanidade e da civilização (2000: 24).

Por isso, para a autora, o outro é sempre transformado em um objeto, ou seja, perde seu estatuto de sujeito, de ser humano. Essa transformação implica uma operação de hierarquização da categoria humana, ou seja, aquele que é visto como outro e como diferente é automaticamente classificado negativamente (ou seja, é considerado de baixo valor em uma determinada “escala social” construída pela própria intolerância). Segundo a autora, “[...] a lógica da diferença não deveria acarretar, automaticamente, nem a hierarquia, nem a desconfiança, nem o ódio, nem a exploração, nem a violência” (Héritier, 2000: 27).

O filósofo Paul Ricoeur, (2000: 20) vai descrever duas características necessárias para a existência da intolerância: a primeira é a reprovação das crenças e convicções do outro; a segunda, o poder ou a capacidade de impedir o outro de exercer e de viver suas convicções e crenças. Há, assim, de um lado, uma interpretação negativa do outro pelos elementos que o constituem e, de outro lado, uma possibilidade de acabar com esses mesmos traços. Sem essa conjugação de elementos (reprovação e capacidade de impedir), é impossível que a intolerância exista. Mas esse é apenas um dos aspectos da intolerância desenvolvido por Ricoeur. O outro aspecto é o da dimensão institucional da intolerância. Por isso, Ricoeur afirma que a intolerância passa a ter uma existência pública a partir do momento em que ela é assumida por um Estado e passa a fazer parte de uma política que impõe, pelo poder que o

sustenta, uma forma de punição pública baseada em uma “visão particular do bem“ (idem). A partir do momento em que essa “visão particular do bem” cede lugar para uma perspectiva mais pluralista, a tendência é que a intolerância também abra espaço para a coexistência de diferentes crenças e convicções (Ricoeur, 2000: 20).

O sociólogo Sérgio Paulo Rouanet (2003: 10)51 apresenta a seguinte definição de intolerância: “a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, ao seu estilo de vida e às suas crenças e convicções” e ainda “a intolerância se caracteriza pela incapacidade de descentramento, de empatia com o ponto de vista do outro”. Se um dos traços da intolerância é a “incapacidade de descentramento”, consequentemente leva-nos a pensar que outro modo de entendê-la é por meio do forte apego aos valores que definem um indivíduo intolerante (no caso, os valores são aqueles apontados por Héritier: a pureza e a unicidade).

O filósofo e historiador Norberto Bobbio afirma que a tolerância e a intolerância não são completamente idênticas na esfera religiosa e política e na esfera social. Para ele, a tolerância e a intolerância no âmbito religioso e político envolvem a questão da crença e da produção do discurso da verdade. Nas interações sociais, a tolerância e a intolerância relacionam-se com a questão da diferença. Como afirma Bobbio, os defensores da tolerância religiosa ou política se defrontam frequentemente com a seguinte questão: “como são compatíveis, teórica e praticamente, duas verdades opostas?”. Já os indivíduos que se manifestam em favor da tolerância nas relações sociais precisam sempre mostrar que um mal-estar gerado pela diferença é fruto de um preconceito52 irracional (Bobbio, 1992: 186-187).

Bobbio faz ainda uma espécie de resumo sobre as diferentes perspectivas que a tolerância e a intolerância podem assumir no âmbito do convívio social. Dessa forma, ele propõe que tanto a intolerância como a tolerância vão possuir um traço positivo ou negativo:

51 Contudo, o autor atribui somente à razão o postulado da tolerância. Como se viu em Aurélio (1996), a

própria razão se converteu em fonte de intolerância. Além disso, nesta seção se verá que há também um tipo de tolerância não necessariamente associada à razão.

52 Preconceito é, segundo Bobbio, uma opinião errônea (mas considerada verdadeira) acolhida

- tolerância positiva53: “Entendida desse modo [mal menor ou mal necessário], a tolerância não implica a renúncia à própria convicção firme, mas implica pura e simplesmente a opinião (a ser eventualmente revista em cada oportunidade concreta, de acordo com as circunstâncias e as situações) de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio, já que a perseguição, como a experiência histórica o demonstrou com frequência em vez de esmagá-lo, reforça-o” (Bobbio, 1992: 206);

- intolerância positiva: “severidade, rigor, firmeza, qualidades todas que se incluem no âmbito das virtudes” (Bobbio, 1992: 210);

- tolerância negativa: “indulgência culposa, de condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor da vida tranquila ou por cegueira diante dos valores” (Bobbio, 1992: 210);

- intolerância negativa: aquela que se fecha em suas certezas, que não se abre para a perspectiva do outro, construindo então uma imagem negativa daquele que não tem as mesmas perspectivas do intolerante.

Tratando dos elementos que caracterizam a intolerância, o antropólogo Harris Memel-Fote (2000) apresenta três temas, com seus respectivos exemplos, considerados por ele indissociáveis na relação entre o “mesmo” e o “outro”:

a) quanto ao objeto: o “outro” é sempre o estrangeiro, de nacionalidade, de raça, de etnia, de religião ou de língua. O “mesmo” é o concidadão, o irmão de etnia, o congênere, o correligionário (p. 47);

b) quanto aos motivos: o “outro” é sempre o inimigo (nunca o adversário) e, por isso, deve ser eliminado. Quando o “mesmo” passa, por qualquer motivo, a ser partidário dos valores do “outro”, é considerado um traidor ou, no mínimo, cúmplice do inimigo;

c) quanto às manifestações, o que predomina é o ódio e o medo: o ódio que motiva a eliminar o “outro” e o medo de ser eliminado pelo outro.

Para o autor, essas questões assentam-se em duas categorias imutáveis para o indivíduo intolerante: a identidade exclusiva e a alteridade

53 Veremos, adiante, que a tolerância positiva é dividida em três partes graduais, segundo proposta de

absoluta. É por isso que, para o intolerante, o outro não pode ser aceito em seu grupo, não se pode manter qualquer contato ou relação com o outro e, ainda, o outro deve ser exterminado para se eliminar a ameaça de dissolução da identidade do grupo. Uma resposta a essas categorias absolutizadas, como propõe o autor, seria a identidade e a alteridade relativas, que poderiam produzir “associações e alianças de etnias, de raças, de crenças, até de classes sociais” (Memel-Fote, 2000: 51).

Uma das maneiras de se exemplificar as consequências de uma relação entre a identidade exclusiva e a alteridade absoluta pode ser vista em um trecho de Arkoun. Ele mostra quais são os valores que estão na base de uma postura intolerante: “bem/mal, certo/errado, belo/feio, material/espiritual, mortal/imortal, imanente/transcendente”, “histórico/místico, sagrado/profano, religioso/político, Igreja/Estado, espiritual/temporal etc.” (Arkoun, 2000: 198- 199).

Vimos, aqui, algumas características de um indivíduo intolerante. Elas podem ser resumidas pelos seguintes traços: uma identidade exclusiva, com forte apego a valores de unidade e de pureza, rejeita (por ódio ou medo) a presença da alteridade, que deve ser excluída ou, em seu limite, eliminada.

Para tratar da tolerância, começamos com a definição apresentada pela UNESCO, a partir de sua Declaração de Princípios sobre a Tolerância (publicada originalmente em 1995). A Declaração apresenta a seguinte definição de tolerância: a aceitação do pluralismo, isto é, “a harmonia na diferença” que serviria como condição para o desenvolvimento social e econômico dos povos (UNESCO, 1997: 11).

Essa noção de “harmonia na diferença” decorre do conhecimento, da comunicação e da livre expressão de pensamento, de consciência e de crença. Ela deve, segundo a Declaração, ser aplicada aos campos da ética, da justiça e da política por indivíduos, grupos ou Estados com o intuito de substituir uma “cultura de guerra por uma cultura de paz” (UNESCO, 1997: 11).

Essa harmonia não é, como se pode pensar em um primeiro momento, consequência de uma postura passiva. A tolerância é uma atitude ativa baseada no reconhecimento dos direitos universais a que todo homem tem direito. Ao se adotar a tolerância, deve-se, por conseguinte, rejeitar toda forma dogmática para se privilegiar normas construídas por instrumentos regulatórios

internacionais dos direitos humanos que visam a um caráter universal. Por isso, não é possível tolerar injustiças sociais ou formas de perseguição ao outro. Além disso, a postura tolerante deve aceitar que o outro tenha o direito a escolher a melhor forma de viver(UNESCO, 1997: 11-12).

Podemos ainda acrescentar à “harmonia na diferença” outro elemento. Segundo Héritier, a tolerância caracteriza-se pela fidúcia, em que deve “reinar a confiança e a tolerância em relação ao outro” (Héritier, 2000: 26), já que “todos os humanos sem exceção são definidos como homens” (grifo da autora, 2000: 27). Se considerado esse último postulado, poderíamos, ainda segundo a autora, pensar em uma “hipotética ética universal” (idem).

Monique Canto-Sperber (2000: 90) mostra o vínculo entre “as avaliações morais e a determinação de agir”, ou seja, a relação entre as interpretações e o fazer dos sujeitos. Pode ser considerado bom tolerar algo que se desaprove, mas essa tolerância não pode ultrapassar determinado limite moral, pois seria perigoso tolerar o mal, por exemplo. A autora define, assim, três limites para a tolerância: a) qualquer ato ou comportamento que pode ameaçar a existência da própria tolerância (por essa razão, não pode ser tolerado); b) o que pode ferir a liberdade, os interesses e o direito do outro; c) a existência de certos traços sociais em comum (que, se ultrapassados, suspenderiam a própria existência da tolerância para se fazer justiça) (Canto- Sperber, 2000: 91-93).

Pode ainda ser acrescentada à interpretação, proposta por Canto- Sperber, outra forma de interação entre identidade e alteridade. Assim, Bobbio (1992: 206-207) pensa na tolerância como uma estratégia no embate entre sujeitos: “[...] a tolerância é, evidentemente, conscientemente, utilitaristicamente, o resultado de um cálculo e, como tal, nada tem a ver com o problema da verdade”. A definição de tolerância é, assim, principalmente de ordem prática. O autor mostra um bom exemplo de como se pode pensar na tolerância enquanto uma estratégia: se sou o mais forte, a tolerância pode ser uma astúcia; se sou o mais fraco, uma necessidade (até de sobrevivência); se somos iguais, há uma reciprocidade (se eu persigo, posso passar a ser o perseguido).

Rouanet (2003: 10), para se opor à intolerância, propõe uma nova postura das pessoas, ultrapassando a tolerância para chegar ao que

entendemos ser um reconhecimento mais ativo ou mesmo uma solidariedade: “passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das diferenças. Penso que as diferenças deveriam conversar entre si, rompendo sempre que possível a camisa-de-força da cultura e da religião”. Assim, segundo Rouanet (2003, p. 10), “é preciso passar de uma ética da tolerância, em que as diferenças coexistem, para uma ética do reconhecimento mútuo e da interpenetração”.

No entanto, essa posição da tolerância como uma estratégia entre o mais forte e o mais fraco não pode ser tomada como um consenso: como Arkoun (2000) mostra, a tolerância é de certa forma relacionada a uma posição superior do tolerante que, consequentemente, impede um indivíduo que ocupa uma posição social inferior de ser tolerante em relação ao rico, sendo considerado, ao contrário, submisso ou cortês. O autor ainda critica o que ele chama de tolerância ornamental e de tolerância calculada54. A primeira é definida como uma tolerância que serve apenas para se criar uma imagem pública apropriada, sem maiores consequências no plano prático. Essa tolerância é exercida, por exemplo, por políticos que procuram melhorar sua imagem para obterem uma popularidade maior (Arkoun, 2000: 201). Ele associa ainda essa forma de tolerância ornamental ao conhecido “politicamente correto”, que pode também produzir certos efeitos intolerantes sobre aqueles que não acompanham esse movimento. A segunda forma de tolerância criticada, a calculada, está presente em relações sociais caracterizadas por distintas hierarquias. Dessa forma, essa tolerância está mais próxima de uma forma de compaixão, por exemplo, do rico em relação ao pobre ou do forte em relação ao fraco do que de uma forma mais ativa e justa de tolerância55 (idem). Resumidamente, podemos compreender a tolerância em termos de uma relação entre identidade e alteridade, baseada no reconhecimento de que todo indivíduos possui os mesmos direitos que outros. Além do mais, a tolerância caracteriza-se por haver uma confiança entre identidade e alteridade e uma postura mais ativa, e talvez solidária, da identidade em relação à alteridade.

54 Em alguma medida, a intolerância ornamental e a calculada são também uma crítica indireta à noção de

tolerância como estratégia, tal como proposta acima por Bobbio.

55

Para comprovar a existência dessa forma de tolerância, o autor mostra que, se a relação fosse invertida, não se consideraria o pobre ou o fraco como tolerantes ao rico ou ao forte. Outras formas de se representar essa relação invertida seriam, então, utilizadas: seria o caso de se falar em submissão, respeito ou obediência, entre outras possibilidades (Arkoun, 2000: 201).

Observamos também que a tolerância pode ser usada de modo estratégico e, por vezes, ornamental, sobretudo quando a identidade apresenta uma posição socialmente superior à alteridade. De qualquer forma, o uso da tolerância, nesse último caso, não invalida a busca por uma verdadeira relação harmoniosa e respeitosa entre identidade e alteridade.

Vimos, nesta seção, algumas definições a respeito da intolerância e da