• Nenhum resultado encontrado

Três questões particulares da intolerância: racismo, xenofobia e intolerância linguística

2. Considerações acerca dos conceitos de tolerância e de intolerância 1 Introdução

2.6. Três questões particulares da intolerância: racismo, xenofobia e intolerância linguística

Essa seção apresentará algumas formas de relação entre identidade e alteridade baseadas na intolerância. Tratar-se-á nesta seção do racismo, da xenofobia e da intolerância linguística, questões que interessam mais de perto ao nosso trabalho.

Segundo Santos (1984: 38-41), o racismo é uma doutrina que visa afirmar a superioridade racial de um determinado grupo sobre outros grupos. Essa tentativa de se colocar um grupo como superior a outro leva, por conseguinte, a uma hierarquia social, baseada nos traço raciais, que poderá resultar em um sistema desigual de direitos e deveres no bojo de uma sociedade. Essas características teriam, segundo o autor, sido retrabalhadas no contexto social brasileiro, produzindo, assim, um “racismo à brasileira” dotado de marcas específicas que minimizam os processos de segregação social, chegando até mesmo a serem interiorizados pelos que sofrem os efeitos desse racismo. Esse seria um dos efeitos do mito da democracia racial brasileira.

Existem ainda algumas “variantes” do racismo, cuja definição depende da relação existente entre identidade e alteridade. O racismo simbólico, por exemplo, está presente em percepções (imaginárias ou não) de que os valores da identidade estão sob uma eminente ameaça. Assim, o racismo simbólico elabora uma tentativa de se evitar uma suposta mudança do status quo e passa a representar o outro como uma ameaça a esses valores, de modo intencional, ou seja, o outro premeditadamente visaria à mudança dos valores da identidade ou do status quo para benefício próprio (Lima; Vala, 2004: 404).

No racismo ambivalente, haveria uma percepção de que a alteridade está em uma posição inferior ou em desvantagem e, por essa razão, seria considerada também uma ameaça aos valores da identidade, porque políticas públicas se voltariam para diminuir essa desvantagem da alteridade. De um modo geral, nesse tipo de racismo, o sentimento não é o de ódio ou de raiva, mas sim o de nervosismo e o de ansiedade que conduziriam a um maior afastamento da identidade em sua relação com a alteridade (Lima; Vala, 2004: 405). O racismo cordial, traço típico brasileiro, tem por característica uma “polidez superficial que reveste atitudes e comportamentos discriminatórios, que se expressam nas relações interpessoais através de piadas, ditos populares e brincadeiras de cunho ‘racial’” (Lima; Vala, 2004: 407).

Segundo o Dictionary of Race, Ethnicity and Culture, a xenofobia está, quase sempre, associada a alguma forma de racismo, sendo muitas vezes difícil fazer uma distinção desses dois conceitos. No entanto, a xenofobia apresenta algumas especificidades. Segundo o mesmo dicionário, a xenofobia surge do medo de se perder a identidade por causa da presença da alteridade, mais exatamente do estrangeiro. Dessa forma, o estrangeiro é visto como um invasor ou um inimigo ou, em outras palavras, como aquele que veio de fora para ameaçar a estabilidade (de emprego, de valores, de comportamento, de religião etc.) que a identidade acredita ter. Dessa forma, a xenofobia pode ser entendida como uma reação de defesa, individual ou coletiva, que visa à preservação de sua nacionalidade e dos valores que a sustentam (Bolaffi et al., 2003: 330-332).

Trataremos, a partir daqui, de uma forma particular de intolerância, cuja especificidade é a de ser pouco percebida como intolerância e/ou preconceito. Referimo-nos à intolerância e ao preconceito linguísticos. Inicialmente, precisamos distinguir o preconceito da intolerância linguística. Marli Quadros Leite (2008) apresenta a seguinte distinção:

O preconceito é a discriminação silenciosa e sorrateira que o indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro: é um não-gostar, um achar-feio ou achar- errado um uso (ou uma língua), sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o que viesse a ser o bonito ou correto. É um não-gostar sem ação discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário, é ruidosa, explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um discurso

tradição x modernidade, x conhecimento x ignorância, saber x não-saber, e

outras congêneres (grifos da autora, Leite, 2008: 24-25).

Dessa forma, o preconceito linguístico está relacionado a uma imagem negativa formada, a partir da definição dada por Bobbio ao preconceito, por uma opinião errônea adquirida sem reflexão. Já a intolerância linguística apresenta uma formulação mais elaborada a partir do momento em que estabelece oposições que vão rebaixar ou, em seu limite, excluir determinado indivíduo que não se adapta a um determinado padrão linguístico imposto.

A intolerância linguística pode estar presente nos seguintes planos: 1) institucional, que envolve as “políticas linguísticas” institucionais como, por exemplo, na proibição do uso de línguas estrangeiras no espaço público (como ocorrera no governo de Getúlio Vargas) ou no uso de termos estrangeiros (como foi o caso da lei Aldo Rabelo); 2) social, relacionada aos diversos tipos de avaliações realizadas sobre o falar do imigrante, tanto em relação à sua língua de origem quanto ao seu sotaque, quando utiliza a língua portuguesa.

Vamos nos restringir ao segundo caso. A intolerância e o preconceito podem ocorrer de duas formas distintas quanto ao objeto visado: uma externa, por avaliar negativamente determinados idiomas estrangeiros, e uma interna, cuja avaliação negativa recai sobre as variantes desprestigiadas da língua portuguesa. Em relação aos imigrantes, essas duas formas de intolerância e de preconceito linguísticos podem coexistir, pois se pode avaliar de forma negativa o uso de determinado idioma estrangeiro em solo brasileiro ou ainda o uso do português pelos imigrantes (Barros, 2004: 4-5). É possível, assim, compreender a intolerância linguística como um fenômeno de discriminação que está diretamente associado às representações da língua e às representações dos usuários de determinadas normas linguísticas.

A representação positiva ou negativa de determinada língua está diretamente relacionada à valorização ou à desvalorização de determinados países estrangeiros. Uma língua estrangeira pode, assim, ser mais bem vista e valorizada em relação à língua nacional (como no caso do inglês e, em menor medida, o francês), assim como outra língua estrangeira pode não gozar do mesmo prestígio perante a sociedade, a depender da imagem que se tem dos países estrangeiros. As línguas desprestigiadas em relação à língua nacional no Brasil são, por exemplo, as línguas africanas, indígenas ou asiáticas, neste

último caso principalmente de países cujas imagens remetem a uma avaliação negativa (como a China, até pouco tempo atrás).

As imagens das diferentes regiões do país e das diferentes classes sociais influenciam nas avaliações das diferentes variantes da língua portuguesa falada no Brasil. Por exemplo, a variante nordestina tem menos prestígio, na região Sul e Sudeste do Brasil, do que a variante carioca ou gaúcha. As críticas em relação ao modo de falar de certos indivíduos, que se “desviam” de um padrão previamente determinado, pressupõem interpretações e avaliações que homologam a variação linguística e a posição social ocupada pelos falantes “julgados” (Lucchesi, 2000: 64). Dessa forma, pode existir uma sobredeterminação que relaciona variante e região, mesmo no caso dos imigrantes e, sobretudo, dos filhos dos imigrantes58.

Sumariando esta seção, podemos afirmar o seguinte: a intolerância linguística ocorre em relação às variantes desprestigiadas e em relação a determinadas línguas estrangeiras com a participação de elementos extralinguísticos, como a classe social ou a imagem que um país estrangeiro tem na sociedade brasileira. Quanto aos imigrantes, a intolerância linguística da sociedade e do Estado brasileiros ocorre tanto no uso de suas línguas de origem (as línguas estrangeiras) como no sotaque presente nos usos que eles fazem da língua portuguesa.

O fenômeno da intolerância linguística deve ser entendido, então, como um problema linguístico, social e ideológico, gerado a partir de uma idealização das formas linguísticas que se transforma em parâmetro de julgamento em relação àqueles que não seguem os padrões normativos (sejam brasileiros de estratos sociais mais baixos, sejam estrangeiros). Assim, a hierarquização social homologa-se a uma hierarquização linguística: aqueles que não utilizam a norma linguística estabelecida socialmente são considerados, quase automaticamente, inferiores, inadequados, ignorantes, estranhos, excêntricos, entre outros59.

58 Por exemplo, um descendente de japonês, a despeito da imagem positiva que existe para o descendente

dessa origem, que resida ou residiu na região Norte ou Nordeste do Brasil, adquiriu a variante fonética daquela região e, assim, poderia enfrentar discriminações por conta de seu “sotaque”, principalmente se estivesse residindo em outra região do país.

59 Segundo Barros (2008), o discurso intolerante apresenta duas realizações distintas, a partir de uma

hierarquização que ele estabelece. Há discursos com uma intolerância primária e uma intolerância secundária. O discurso intolerante pode, assim, apresentar sua intolerância primária (como os discursos

A partir dos elementos apresentados neste capítulo, passaremos, a seguir, à nossa proposta de organização das noções de tolerância, intolerância e preconceito, entendidas como a base para determinadas paixões e formas de interação sob a ótica da semiótica de linha francesa.

racistas, xenófobos, etc.) de forma explícita ou apresentar uma intolerância secundária que serve para camuflar a intolerância primária porque é, entre outros motivos, mais bem aceita socialmente. Como a própria autora mostra, é o caso de discursos que avaliam negativamente a fala dos negros para não explicitar o racismo de base (Barros, 2008: 342). No capítulo seguinte, retomaremos essas ideias para desenvolvermos nossas reflexões a partir de uma perspectiva discursiva, tal como a autora apresenta.

3. Princípios teóricos: elementos para análise da interação entre