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Quadro da tolerância e da intolerância e suas gradações

2. Considerações acerca dos conceitos de tolerância e de intolerância 1 Introdução

2.5. Quadro da tolerância e da intolerância e suas gradações

Nesta seção, apresentaremos mais algumas definições dos conceitos de intolerância e de tolerância. Essas definições possuem a peculiaridade de apresentar certa gradação, o que nos permitirá chegar a um denominador comum das diferentes definições vistas até agora. Por isso, retomaremos também algumas das concepções apresentadas para tentar conjugá-las com possíveis gradações da intolerância e da tolerância.

Bobbio (2003: 189-191) apresenta uma gradação da noção de tolerância. A primeira, da qual já falamos, é a considerada um “mal menor”, pois ela aceita o erro como forma de se chegar ao caminho da verdade, já que a história da humanidade mostrou, segundo o autor, que o combate violento contra o erro não necessariamente o elimina, mas antes reforça sua existência. A segunda forma de tolerância tem por objetivo a manutenção da convivência civil. Para isso, ela utiliza os mecanismos de persuasão (no lugar da opressão) para convencer o outro de seus erros. A terceira forma defende o respeito à pessoa. Essa tolerância coloca a “moral do respeito” antes da “moral da coerência” (que coloca a verdade acima de tudo).

Para compreender o alcance que a existência do pluralismo de crenças nos dias atuais tem sobre a própria ideia de crença e convicção, Ricoeur (2000: 21-22) apresenta uma gradação do conceito da tolerância nos seguintes moldes: a) “se tolera o que se desaprova mas não se pode impedir” (grifo do autor); b) “vontade de compreender as convicções contrárias, sem, no entanto, aderir a elas”; c) “direito ao erro, associado à ideia de que cada um tem o direito de viver segundo suas convicções” (grifo do autor); d) “parte da verdade pode estar em outro lugar que não nas convicções que fundamentam as tradições em que fomos educados”. O autor parte de uma postura passiva (já que se aceita algo que se desaprova, mas cuja existência não é possível impedir) para uma ativa, do desejo de compreender o outro, passando pela questão do direito (universal, a princípio) de todos e das convicções e suas relações com a relatividade da verdade.

O cientista social americano Michael Walzer (1999: 16-17), de modo semelhante a Ricoeur, apresenta também um continuum da tolerância. A primeira, surgida no contexto religioso dos séculos XVI e XVII, refere-se à

aceitação da diferença para preservar a paz. A segunda, igualmente passiva, é a da indiferença à diferença. A terceira é um reconhecimento dos direitos do outro, mesmo quando esse outro exerce seus direitos de modo desagradável. Por fim, a quarta forma de tolerância está ligada a uma disposição em ouvir o outro. Da mesma forma, Walzer parte de um comportamento mais passivo (da aceitação e da indiferença) para uma atitude mais ativa, que é a do reconhecimento dos direitos de todos e uma disposição para se escutar (e também perceber) o outro.

A prática tolerante deve ser, também para Aurélio, a do reconhecimento do outro. Nesse momento, o autor apresenta uma gradação nas formas de reconhecimento. O autor parte de uma concepção do verbo conhecer, entendido como uma relação entre sujeito e objeto e nada mais do que isso. O conhecer é insuficiente para a tolerância, porque ele está baseado em “normas lógicas” que acabam por apagar o outro. Por isso, ele acrescenta a essa gradação o verbo compreender, no qual a intersubjetividade começa a aparecer, porque passa a ter uma relação simétrica entre o eu e o outro. No entanto, isso ainda não é suficiente para a tolerância almejada pelo autor, porque o ato de compreender acaba, de alguma forma, deixando de lado alguns traços constitutivos do outro para que esse “eu” possa compreender o outro. Por isso, o reconhecimento, como uma relação mais envolvente entre as duas identidades colocadas em jogo, é a forma de tolerância por excelência para o autor. Dessa forma, reconhecer é reconhecer o lugar do outro, seus valores, suas opiniões e seu estilo de vida (Aurélio, 1996: 217-219).

Com o reconhecimento, não haveria mais a possibilidade de se reduzir a pessoa a um objeto ou a um ato de concessão que exige, como contrapartida, a eliminação de alguns traços constitutivos da alteridade. Com o reconhecimento, haveria a possibilidade de a alteridade apresentar-se de modo completo, sem fraturas ou recortes, para que o eu possa interagir de modo completo. Nas palavras do autor “[...] a razão tolerante fundamentar-se-á, como já dissemos, no reconhecimento do outro enquanto pura alteridade” (Aurélio, 1996: 219-220). E como seu estatuto de alteridade não pode ser reduzido, o outro não pode ser assimilado e deve participar da discussão e da negociação das normas e das regras de convivência entre identidade e alteridade.

Dessa forma, no reconhecimento, a identidade deve colocar-se no lugar do outro, porque é a partir dessa atitude que se chegará a normas mais justas, decorrentes dessa troca de pontos de vista (Aurélio, 1996: 221). Apesar da impressão inicial do predomínio da subjetividade nesse tipo de tolerância, o autor ainda diz que colocar-se no lugar no outro é também uma atitude pública, uma vez que participam desse ato todas as formas de juízo determinadas coletiva e publicamente (Aurélio, 1996: 222). Dessa forma, a subjetividade é, em alguma medida, condicionada aos valores e aos comportamentos advindos do coletivo.

Apresentamos, a seguir, um quadro com as diferentes gradações dos conceitos de intolerância e tolerância, a partir dos diferentes pontos de vista dos autores citados neste capítulo57:

Tolerância ativa Tolerância moderada Tolerância branda Solidariedade ou reconhecer Disposição ou compreender Aceitação ou conhecer Intolerância ativa Intolerância moderada Intolerância branda Extermínio Discriminação Rejeição

Cada elemento desse quadro deve ser pensado da seguinte maneira, a partir dos conceitos-chave:

A tolerância branda é um ato que não exige qualquer ação ou esforço do sujeito para aceitar ou conhecer o outro, ou seja, é o movimento inicial para uma aproximação entre os pontos de vista da identidade e da alteridade. A intolerância branda é o estabelecimento de uma distância por meio de uma rejeição à existência do outro. Na coluna da moderação, há um esforço da identidade em direção a uma compreensão das razões da alteridade, enquanto a intolerância é uma forma de discriminação, na qual a alteridade é socialmente rebaixada. Já na forma plenamente ativa, temos a solidariedade e o

57 Com base na proposta de Bobbio, nos limitamos à tolerância positiva e à intolerância negativa para

reconhecimento (nos termos de Aurélio) como uma forma cuja atividade é mais forte e presente, na qual se exige e se cobra do sujeito uma atitude mais enfática em relação ao outro, à alteridade. Já a intolerância extrema é a forma historicamente mais conhecida: a do extermínio do indivíduo, fazendo-o desaparecer completamente, ou mesmo do genocídio, no caso de a intolerância se estender a uma coletividade.

Por fim, podemos realizar uma síntese comparativa dos pontos de vista dos autores citados, em relação à intolerância e à tolerância:

a) o que é diferente deve ser eliminado, exterminado ou, ao menos, posto à distância para não “contaminar a pureza” do grupo intolerante (Rouanet, Héritier, Eco). Uma forma de se evitar isso está na defesa da tolerância, no espaço público, como uma pauta de princípios de igualdade (discutida pela sociedade), tratando a todos como cidadãos, sem a possibilidade de ingerências no plano privado (em relação a crenças, valores e línguas de indivíduos ou grupos minoritários) (Rouanet, Schnapper, Lepenies, Cotler);

b) na relação com o outro, o intolerante crê em suas certezas e valores, em uma identidade excludente e em uma alteridade absolutizada, elementos que orientam sua interpretação; por isso, tudo o que diverge das convicções do intolerante (e que pertence à alteridade) é considerado negativo e deve ser eliminado, excluído, segregado ou ainda transformado em um objeto (Memel-Fote, Héritier, Canto-Sperber, Arkoun, Cardoso);

c) a intolerância e o preconceito aparecem de forma difusa na sociedade e têm uma origem inata ao próprio indivíduo (Eco);

d) a intolerância e a tolerância podem apresentar diferentes gradações (além de um aspecto positivo e negativo) sem perder, contudo, sua pertinência, seja para combatê-la (no caso da intolerância), seja para praticá-la (a tolerância) (Bobbio, Ricoeur, Aurélio, Arkoun, Walzer); e) qualquer tentativa de combater a intolerância deve evitar a existência de

uma postura intolerante; por isso, deve-se ir além da tolerância e pensar em novas formas de sociabilidade e de respeito à diferença (Rouanet, Aurélio, Canto-Sperber), como o pluralismo do espaço público, a

relativização das categorias de identidade e alteridade (Memel-Fote, Canto-Sperber, Kawada, Soyinka);

Após a apresentação de um quadro com as gradações dos conceitos de intolerância e de tolerância e de uma síntese com as principais características desses conceitos, veremos, na próxima seção, algumas formas específicas de intolerância na interação entre identidade e alteridade.

2.6. Três questões particulares da intolerância: racismo, xenofobia e