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Público/privado e pluriculturalismo como situações de nascimento da tolerância

2. Considerações acerca dos conceitos de tolerância e de intolerância 1 Introdução

2.4. Público/privado e pluriculturalismo como situações de nascimento da tolerância

contextos social e cultural necessários para que a tolerância possa efetivamente ser praticada.

2.4. Público/privado e pluriculturalismo como situações de nascimento da tolerância

Além dos limites para a atuação da tolerância, enquanto forma de se combater a intolerância e sua existência, há outras maneiras de se pensar nas condições mais apropriadas para o surgimento e fortalecimento da tolerância. Tópicos como as relações entre o público e o privado, as noções de multiculturalismo ou pluriculturalismo podem ser maneiras de se compreender como a sociedade pode também gerar e gerir valores tolerantes, talvez como uma resposta à intolerância difusa mencionada por Eco.

Rouanet propõe, como uma forma de solucionar os conflitos gerados pela intolerância, a distinção clássica entre público e privado: “a democracia moderna não exige a supressão das especificidades de línguas, de religião, de cultura. Ela exige apenas que essas especificidades sejam mantidas na esfera privada e que, como cidadãos, todos os indivíduos obedeçam aos princípios gerais estabelecidos na constituição” (Rouanet, 2003). Em outras palavras, o bem comum e coletivo deve estar acima dos valores individuais e privados, que, por seu turno, não devem sofrer a interferência da dimensão pública. Deve-se, então, ter os limites bem definidos entre o público e o privado para se preservar os direitos individuais contra ingerências públicas e para se evitar uma desigualdade de direitos para grupos sociais distintos. Além disso, os limites de atuação do privado devem também ser geridos e estabelecidos para não se projetarem na esfera pública. Como a noção de público e privado é definida no bojo da civilização ocidental, para aumentar o alcance dessas

propostas, é preciso ainda verificar como essas noções são compreendidas e vividas nas sociedades orientais.

Na mesma linha proposta por Rouanet, o sociólogo Dominique Schnapper mostra que as nações democráticas devem articular a seguinte equação entre o público e o privado: identidades específicas no plano privado, mas igualdade e universalidade do princípio público da noção de cidadão. Nas palavras do autor, “a nação democrática tem por princípio e por ambição fazer com que vivam juntos cidadãos iguais enquanto cidadãos, mas também indivíduos portadores de histórias e de culturas específicas” (Schnapper, 2000: 143).

Dessa forma, indivíduos que pertencem a um ou a alguns grupos sociais (por meio de afinidades étnicas, culturais, religiosas, linguísticas etc.) são considerados todos iguais em questões públicas. Em outras palavras, todos os indivíduos, considerados cidadãos no plano público, possuem direitos e deveres que os nivelam sem distinção. Por isso, para o autor, o multiculturalismo faz parte do plano privado, no qual a liberdade de escolha deve ser total. Mas o multiculturalismo tem também um limite determinado: ele não pode, em hipótese alguma, ameaçar a existência da universalidade, da igualdade e da unidade do espaço público (ibidem). O autor ainda afirma que as fronteiras entre o público e o privado estão sempre em constante “negociação” e não deve ser apenas obrigação do Estado determinar essas fronteiras, pois se deve contar também com a participação da sociedade nesse processo (Schnapper, 2000: 144-146).

Depois de definir os limites da tolerância, Monica Canto-Sperber elabora dois princípios para a sua aplicação56: a) a neutralidade, como forma de impedir que um modo de vida se torne hegemônico e prejudique a existência de outros modos de vida distintos (esse princípio deve, principalmente, estar presente no Estado, que não deve interferir, dentro da lei, no “estilo” de vida de determinados grupos e, também, não deve privilegiar um determinado modo de vida, ou seja, o Estado deve tratar igualitariamente os grupos sociais); b) o pluralismo, para preservar a multiplicidade e as divergências de opinião e para se combater o processo de homogeneização característico dos Estados

56 Os dois princípios propostos por Canto-Sperber servem justamente para evitar o que Ricoeur chamou

modernos (Canto-Sperber, 2000: 94-95). Em outras palavras, deve ser garantida ao indivíduo a sua liberdade de pensamento e de expressão, que, contudo, deve também ser limitada para que não haja tratamento desigual entre os grupos ou os indivíduos, o que poderia produzir a imposição de um ponto de vista único em detrimento da diversidade de opiniões.

Por essa razão, o pluralismo de ideias, de opiniões e de valores deve ser mediado por normas sociais cujo consenso deve sempre ser buscado por meio da discussão e do debate no espaço público. Ao menos essa é a proposta do sociólogo alemão Wolf Lepenies, que acredita que o estabelecimento de uma normatividade consensual pode ser um meio eficaz de combate à intolerância (Lepenies, 2000: 118).

O jurista canadense Irwin Cotler propõe uma espécie de “cidadania planetária”, que serviria de base para que o respeito à liberdade de crença seja defendido, mas somente se as religiões não infringirem certos preceitos “universais”: “o morticínio, a tortura, a escravidão, o expurgo étnico, a violação e o racismo não podem ser defendidos por nenhuma crença que respeite a humanidade e a religião” (Cotler, 2000: 63).

A imposição de limites, como o de Cotler acima, coloca em evidência a oposição entre universalismo e relativismo. Se o relativismo cultural tem o mérito de eliminar classificações antropológicas hierarquizadas, como as culturas “primitivas” em posição inferior às “civilizadas”, quando levado ao seu limite, ele impediria qualquer tipo de tolerância, uma vez que, se tudo fosse válido por causa do que defende um relativismo cultural mais radical, a compreensão de culturas diferentes não seria possível, porque os valores seriam incomensuráveis, ou seja, tudo seria possível e nada teria um aspecto positivo ou negativo (Kawada, 2000: 148-149).

Além disso, grupos minoritários presentes nos países desenvolvidos teriam seu “estilo de vida” aceito pela sociedade majoritária em nome do relativismo cultural, uma vez que a sociedade “respeitaria” (na verdade, suportaria) as especificidades desses grupos (Kawada, 2000: 149). No entanto, essa atitude da sociedade majoritária poderia provocar a manutenção, por exemplo, da pobreza e das precárias condições de vida desses grupos por causa de um “respeito” que é, na verdade, uma passividade implícita que está presente no conceito de relativismo cultural.

De qualquer forma, é por causa do relativismo cultural que grupos minoritários podem resistir às tentativas de imposição de culturas nacionais e reafirmar suas tradições em outros espaços que não são os de sua origem (Kawada, 2000: 150). É nesse ponto que o relativismo cultural deve ser incentivado para preservar os valores dos grupos minoritários, a partir do que o autor chama de “princípio de não intervenção” ao mesmo tempo em que não se deve transformar o relativismo cultural em um princípio universal (Kawada, 2000: 150). Por isso, Kawada defende também o relativismo cultural em sua dimensão subjetiva:

É bem melhor, sem dúvida, deixar de lado qualquer pretensão ao universal e, sempre que se assumir uma posição, seja qual for a força dessa convicção, admitir com toda a lucidez seu caráter fundamentalmente subjetivo e empenhar-se sempre na busca de uma subjetividade intercultural de um nível superior (Kawada, 2000: 149).

No entanto, a tomada de posição, a que se refere o antropólogo japonês Junzo Kawada, dentro do relativismo cultural, exige ainda outros cuidados. Reconhecer o direito a toda e qualquer forma de ação ou de opinião, sem qualquer tipo de limite, é apontado pelo dramaturgo Wole Soyinka como uma forma de conciliação e de compromisso que permitiriam o revisionismo de nossos dias (Soyinka, 2000: 132). Se seguíssemos a lógica do relativismo cultural mais radical, opiniões que colocam em dúvida a existência do holocausto ou de qualquer outra forma de extermínio, por exemplo, deveriam ter sua validade reconhecida.

Vimos, nesta seção, que os limites da tolerância, como forma de se evitar o surgimento da intolerância, envolvem sua definição, suas relações entre o público e o privado e a existência de valores relativos em contraposição a valores universais, que regulariam a existência dos primeiros. A seguir, veremos algumas definições que apresentam uma gradação dos conceitos de tolerância e de intolerância para, no final da próxima seção, propor uma síntese desses conceitos.