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Tipologia do discurso sobre a imigração

3. Princípios teóricos: elementos para análise da interação entre identidade e alteridade no espaço social brasileiro

3.2. Tipologia do discurso sobre a imigração

Falar sobre o imigrante é colocar em discurso uma alteridade que fica a meio caminho de ser um objeto ou um sujeito. Isso ocorre porque o imigrante é, ao mesmo tempo, ator e tema de um discurso. Se o Outro de um discurso não apresenta uma completa passividade, característica de um objeto, o agir, o pensar e o sentir da alteridade são construídos e delimitados por um enunciador que precisa refrear a própria dinâmica da alteridade para delimitar os seus contornos (representação) e, assim, poder definir sua própria identidade. É ainda por meio desses discursos que se torna possível examinar o modo como uma sociedade constrói sua própria imagem, seus valores e seus estilos de vida.

Os discursos sobre a imigração e os imigrantes possuem uma variedade de temas e de figurativizações. Eles podem tratar da imigração de um modo geral ou de um indivíduo que tenha feito algo considerado digno de destaque ou dado sua singela contribuição para o país e para a sociedade. Além disso, esses discursos tratam também do trabalhador imigrante, do estudante vindo junto com seus pais, dos artistas estrangeiros que passam a morar no Brasil, entre outras possibilidades.

A totalidade desses discursos pode ser organizada de forma a estabelecer uma tipologia dos discursos sobre a imigração, clarificando a organização desse universo discursivo que gira em torno dessa peculiar figura da alteridade.

Dessa maneira, tomando emprestadas as noções de totalidade e unidade, partitiva e integral, desenvolvida por Greimas e Landowski (1981) e posteriormente retomadas em um trabalho de Denis Bertrand (2007), propomos a seguinte tipologia dos discursos sobre a imigração:

A unidade integral está na base dos discursos que tratam do indivíduo imigrante. Esses discursos constroem geralmente a história pessoal desse indivíduo. O mais frequente é ocorrer a debreagem interna (dar a palavra ao imigrante). A partir daí, o discurso do imigrante toma a forma de um percurso no qual ele conta suas motivações para vir ao Brasil, suas impressões, expectativas e quais os modos usados para superar diversos obstáculos postos em sua vida. Além disso, em geral, o imigrante menciona sua relação com o Brasil e a imagem que ele possui dos brasileiros. Há, por fim, um predomínio forte da figurativização e da iconização dos atores nesse tipo de discurso:

Em agosto do ano passado, o boliviano Edgar Guzman Huanca, na época com nove anos, estava indo muito bem na escola e já falava português melhor do que os pais, que haviam trocado a Bolívia por São Paulo em 1990. Hoje Edgar não aprende nem fala português, pois foi obrigado a voltar para a Bolívia e viver longe da família após ter sido expulso da escola onde estudava (Jornal Zero Hora, 1º. de setembro de 1994: 40)62.

À noitinha, a fome apertou e Kudama desceu para comprar pão. Antes de voltar, todavia, o trem partiu, levando os desesperados Yassuda e Nagasi, que choravam com pena do amigo. Kudama também chorou muito, até que resolveu dormir num banco da praça da República, onde ficou até à hora do fechamento dos portões (Pagote e Moraes, 1958: 22).

Do lado da unidade partitiva, a presença da figurativização continua presente, mas sem a iconização do tipo discursivo anterior. Esse discurso trata da imigração e do imigrante de uma maneira “mais ampla”, construindo um determinado papel temático para desenvolver sua isotopia. Esse percurso temático e figurativo, por vezes, pode resvalar na estereotipia e na cristalização de determinadas imagens associadas à imigração. Esse é o caso dos discursos que associam a ideia de que judeus são ótimos comerciantes, os japoneses são estudiosos e os italianos e os espanhóis, trabalhadores incansáveis, entre outros percursos:

Os vestibulandos costumam dizer que não passa de brincadeira a ideia de que os estudantes de origem asiática conquistam mais vagas nas melhores universidades. Mas o mito pode causar ainda mais expectativa em quem já está bastante preocupado com a concorrência no vestibular (Folha de S. Paulo, 05 de setembro de 2002: Página especial 3).

Na totalidade integral, os discursos circunscrevem-se a um único grupo, como a imigração japonesa, alemã, italiana, espanhola etc. ou simplesmente referem-se à imigração ou aos imigrantes, de forma genérica. Esses discursos poderiam ser também chamados de “as grandes narrativas”, pois trabalham os traços mais gerais da história da imigração de um determinado grupo:

Para impedir que elementos estrangeiros no Brasil venham perturbar a nossa soberania ou serem fatores dissociativos ou enfraquecedores do espírito da nacionalidade é preciso cuidar-se da assimilação do alienígena e de seus descendentes. Daí decorre a necessidade imprescindível de associar-se ao problema imigratório o de assimilação (Côrtes, 1947: 6).

Por fim, a totalidade partitiva trata de uma coletividade temática: a família, a escola, a comunidade, a associação, o hospital, o clube etc. voltados para os imigrantes. Esse tipo de discurso se refere a coletividades menores e a atividades específicas de determinado grupo imigrante:

O papel da família na educação nipônica é muito importante, e à total autoridade paterna cabe formar o espírito de disciplina e obediência nos mais jovens. Esta parte da educação foi e é cumprida pelos ‘issei’, e para complementá-la apareceram as escolas japonesas, com professores, currículos e programas iguais aos do curso primário japonês. Antes da guerra essas escolas funcionavam abertamente, com seus 6 anos de ensino, tanto em zonas

rurais como urbanas, onde houvesse um número de japoneses suficiente para mantê-las (Cardoso, 1959: 103-104).

Evidentemente, diante da complexidade constitutiva dos discursos, muitas vezes é possível observar uma mistura de tipos, mas sempre com o predomínio de um sobre os demais. Essa tipologia, contudo, não é suficiente para explicar como se estabelecem as relações entre imigrantes e a sociedade e o Estado brasileiros nem as imagens produzidas nessas relações. A interação entre identidade e alteridade será explicada de outra forma. Como veremos a seguir, o princípio que servirá de base para a interação será a formação dos valores.