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1.3. Configuração socioeconômica e política: mudanças e permanências

1.3.1. Democracia e política local

Ao analisar o impacto do novo contexto político-institucional pós-redemocratização sobre o cotidiano da política, alguns estudos, sobretudo no campo da antropologia da política, têm levantado questões fundamentais que retomam e atualizam a discussão lançada por Victor Nunes Leal, Maria Isaura Pereira de Queiroz e outros. Interessados em apreender o sentido atribuído à política pelas pequenas comunidades, estas pesquisas de um modo geral interpretam a política do interior como uma política dominada pela lógica da “temporalidade” e da “reciprocidade” ou simplesmente como uma política de “facções”.

A questão da “temporalidade” é central, pois indica uma “visão de mundo” predominante nestes contextos. Como observam Palmeira e Heredia (2010b, p.8):

Ao contrário de uma sociedade divididas em partes (instituições, instancias, esferas) ou dimensões, deparamo-nos com uma sociedade que comporta “tempos” (de plantar, de colher, de festas, da Quaresma, da política) que se contrapõe ou se opõem todos a um certo cotidiano.

Portanto, o tempo da política, assim como o tempo de plantar e o tempo de colher, marca mudanças profundas no cotidiano da comunidade. Com efeito, além da delimitação cronológica da atuação dos políticos, o princípio temporal subverte o cotidiano de toda a comunidade e “atualizam” aspectos importantes da vida social94. Segundo Moacir Palmeira

(2006), a noção de que existe um tempo para a política faz com que em períodos não eleitorais – portanto, períodos não políticos – só a atuação do governo, seja considerada “legítima”. Com efeito, a atuação de militantes políticos esquerdistas e dirigentes de movimentos sociais e sindicais95, geralmente vista com desconfiança pela população.

94 É neste sentido que a antropologia propõe “pensar os processos de escolha e representação enquanto

elementos que criam e recriam, produzem e são produzidos pelos valores, crenças e relações sociais dos quais são parte integrante” (HEREDIA, TEIXEIRA e BARREIRA, 2006, p.13).

95 No caso dos sindicatos rurais, Palmeira (2010) observa, todavia, que houve uma expansão de sua importância

para os pequenos municípios desde os anos 1970. A partir da redemocratização teria ocorrido uma tendência de ingresso de dirigentes destes sindicatos na política o que exigiu uma espécie de “divisão de trabalho entre as tarefas sindicais e aquelas de caráter político” (p.159). Além de uma expressa proibição da atividade política nos

Nessa perspectiva, as eleições – particularmente as eleições municipais que, no dizer de Palmeira (2006), constituem uma espécie de matriz da agenda eleitoral – são momentos em que os alinhamentos sociais e políticos de uma comunidade se ajustam ou se redefinem mobilizando valores e interesses. Os comícios96 marcam o início do tempo da política constituindo-se, portanto, numa espécie de ritual de passagem. Como assinalam Palmeira e Heredia (2010b, p.65): “A partir de cada comício, esse produto de trocas entre os comícios que são as acusações e as promessas, mas não apenas eles, transformados em temas de conversa, embebem de política o cotidiano da comunidade”.

Por conseguinte, a decisão sobre em quem votar implica para o eleitor em escolher de que lado está na composição social, e isso lhe obriga a levar em consideração qual lado lhe oferece melhores possibilidades de recompensas atuais ou futuras. Nas palavras de Palmeira (2006, p.144): “A confiança do eleitor num político (e, portanto, a possibilidade de adesão) passa por sua capacidade de prestar favores, de dar assistência, de beneficiar a comunidade, de cumprir as promessas feitas ou o que é compreendido como promessa”. Esta “lógica” da “reciprocidade” diz, portanto, que se paga com o voto o favor prestado pelo político (VILLELA e MARQUES, 2002).

De acordo com Barreira (2006), a consolidação do sistema de “dádivas” tem relação, paradoxalmente, com os aperfeiçoamentos dos sistemas de votação e com a coibição da violência nos processos eleitorais. Nas palavras do autor: “Com a diminuição das possibilidades de fraudes eleitorais e das ameaças físicas, surgem, em contrapartida, as gratificações, as benesses e os benefícios” (BARREIRA, 2006, p.154). Portanto, ainda

sindicatos durante o regime militar, os sindicalistas se deparariam agora com uma concepção de política ainda predominante em comunidades tradicionais que separa a atividade sindical da atividade eleitoral.

96 Os comícios são uma espécie de síntese da política local e, conforme lembram Palmeira e Heredia (2010b),

são encarados como festa pela comunidade. Eles se destinam fundamentalmente a promoverem uma aproximação física entre os candidatos e seus eleitores. Com efeito, nos comícios o que menos importa são os discursos dos candidatos. Vale aqui lembrar Bourdieu quando diz que, por pertencer ao mundo dos políticos que é caracterizado por encenações teatrais de todo tipo, a “linguagem política” é desprezada pela população em geral. Por conseguinte: “Neste ponto, se instauram as relações entre os profissionais e os profanos, os significantes e os significados: os dominados que estão comprometidos com a consciência, ou seja, com a linguagem, encontram-se à mercê dos discursos que lhes são propostos, correndo o risco de sair da doxa para cair forçosamente na alodoxia, em todos os falsos reconhecimentos, aliás, favorecidos pelo discurso dominante [...]. A linguagem dominante destrói, desacreditando-o, o discurso político espontâneo dos dominados: deixa- lhes apenas o silêncio ou a linguagem artificial, cuja lógica já não é a do uso popular, sem ser a do uso erudito – linguagem deteriorada em que as ‘palavras difíceis’ são utilizadas simplesmente para marcar a dignidade da intenção expressiva – e que, incapaz de transmitir algo verdadeiro, real ou ‘sentido’, desapossa seu utilizador da própria experiência que, segundo se presume, tal linguagem deveria exprimir. [...] (BOURDIEU, 2008, pp.430- 431)”. Com efeito: “[...] para escapar da ambivalência ou da indeterminação diante do discurso, resta apenas confiar-se ao que se sabe apreciar: o corpo de preferência às palavras, a substancia e não tanto a forma, e, em vez de conversa fiada, um rosto simpático (BOURDIEU, 2008, p.433)”. Nesta perspectiva, o que se conhecem como “personalismo” consiste no mecanismo pelo qual os partidos conseguem apresentar-se para os eleitores de forma mais compreensível e confiável. É o que ocorre particularmente nos comícios onde, mais do que a mensagem verbal transmitida, importa o desempenho do candidato na tarefa de “personificar” a facção.

segundo Barreira (2006), as dádivas eleitorais se expandiram num contexto em que “o cabresto já não é mais tão curto”, mas também quando se instaurou um “mercado eleitoral” cujo “código moral” diz que crime não é a compra de votos, mas a promessa não cumprida.

Palmeira (2006) ressalta que esta “economia” não é operada entre indivíduos, mas por redes de compadrio ou pertencimento comunitário, que tendem a obstaculizar o chamado “voto consciente”. Assim, as dádivas eleitorais materializariam as mesmas relações de reciprocidade que desde o início da república caracterizam as relações políticas entre os coronéis e suas parentelas. Vilaça e Albuquerque (2003) apontam a prática da “barganha” como o resultado de um aprendizado adquirido ao longo do tempo em que o eleitor “começa a ser exigido, solicitado; descobre o poder de barganha que possui. Passa então, ele mesmo a pedir e exigir. [...] O voto começa a ser favor; de favor se torna objeto de negócio” (p.62). Por conseguinte:

“O voto de cabresto passou, então a voto mercadoria. Votos são trocados por vestido, paletó, chapéu ou sandália. Ou pelo pirão do dia da eleição. Em fase mais recente, voto vale dinheiro. Origina-se, então, todo um complexo mecanismo de mercado, em torno da mercadoria voto, de que não se aumenta enorme especulação a determinar- lhe o preço” (VILAÇA & ALBUQUERQUE, 2003, p.63).

Assim, a barganha do voto teria se mantido no período recente e o dinheiro teria assumido o papel de principal dádiva. Com efeito, os antigos cabos eleitorais vão saindo de cena para dar lugar aos políticos profissionais ou a novas lideranças comunitárias que se formam em torno das facções políticas (BARREIRA, 2006; PALMEIRA, 2006). Assim, embora os operadores intermediários da política tenham se transformado, no topo do processo político local estão as facções, este tipo de configuração política tão associado ao período coronelista.

As facções são agrupamentos políticos formados em torno de um líder (um chefe político) que exerce algum paternalismo na comunidade (PALMEIRA, 2006; PALMEIRA e HEREDIA, 2010b). Encontradas tanto em sociedades tradicionais quanto em sociedades modernas, as facções têm a flexibilidade organizacional e a versatilidade adequadas para uma política marcada pela sazonalidade e pela prática da barganha, seja na lógica do “voto de gratidão” seja na lógica do “voto mercadoria”. As facções se configuram relacionalmente, isto é, na dinâmica das polarizações políticas e sociais que produzem dentro de um determinado contexto cujo antagonismo fundamental é o que se dá entre “situação” e “oposição”.

Nos períodos eleitorais todos os seguidores de uma facção exercem funções, mas nos períodos compreendidos entre eleições, as atividades restringem-se aos chefes ou àqueles que

ocupam postos no governo (quando situacionista). Contudo, Beatriz Heredia (2006) observa que as disputas dentro das facções são constantes, isto é, não obedecem à temporalidade externa a elas, o que implica pensar numa temporalidade e numa lógica política própria aos políticos.

As facções são, portanto, um símbolo do continuísmo e da adaptabilidade que caracterizam a política local no interior do Brasil. Todavia, têm surgido também formas de militância97 social e político que torna o jogo político mais complexo (BARREIRA, 2006; PALMEIRA, 2006; PALMEIRA e BARREIRA, 2012). Assim, é possível levantar a hipótese de que está havendo uma renovação e uma diversificação dos atores políticos nutrindo-se tanto de fatores socioeconômicos quanto de fatores político-institucionais – embora isso não implique necessariamente numa transformação das práticas, pois para se consolidarem como elites políticas, os “novos atores” tendem a se ajustarem ao contexto social.