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1.2. Poder e política na “Nova República”

1.2.2. Poder local e gestão municipal

O regime republicano no Brasil e seu sistema federalista têm tido dificuldade de constituir um poder local75 baseado numa articulação mais equilibrada de fatores endógenos

(disputas e articulações entre os atores sociais locais) e exógenos (interconexões entre estes atores locais e atores ou fenômenos externos). Se de 1889 até 1930 o compromisso oligárquico selou a dependência municipal em relação ao estado, a Era Vargas aprofundou a ausência de autonomia municipal via supressão das eleições. Mesmo a onda democratizante de 1946 não foi capaz de garantir autonomia aos municípios, embora tenha restituído as eleições e melhorado a situação financeira76. A “modernização conservadora” levada a cabo pelos militares no pós-64 teve o mérito de romper o isolamento local e possibilitar a emergência de novos padrões e procedimentos administrativos, mas não diminuiu a dependência do poder local sobre as esferas estadual e federal (KERBAUY Apud SILVA, 2008). Por conseguinte, os fatores exógenos continuaram a ter maior peso que os endógenos na configuração do poder local.

O processo de redemocratização dos anos 1980, por sua vez, gerou a expectativa de se produzir uma mudança mais efetiva do ponto de vista das aspirações municipalistas. A

75 Toma-se aqui o poder local na acepção de Fischer (1993), isto é, como um conjunto de redes sociais

articuladas e superpostas, mediante relações tanto de cooperação quanto de conflito, em um espaço definido pela configuração destas mesmas relações. Nas palavras da autora: “[...] invariavelmente a análise do 'local' remete ao estudo do poder enquanto relações de forças, por meio das quais se processam as alianças e os confrontos entre atores sociais, bem como ao conceito de espaço delimitado e a formação de identidades e práticas políticas específicas (FISCHER, 1993, pp.10-11)”. Assim, poder local não se confunde com poder municipal nem se limita ao poder político e, portanto, deve ser analisado sob a ótica das relações sociais que tanto define seu escopo espacial quanto seu alcance estrutural. Ao tomar o poder local neste sentido, tem-se que ele se define e se movimenta nas relações que os agentes sociais (econômicos, culturais e, claro, políticos) locais estabelecem entre si e com os agentes de outras esferas. A noção de poder local busca captar as relações políticas que emergem da modernização e, portanto, ela procura atualizar a imagem do interior do Brasil que sempre foi associada ao coronelismo (SILVA, 2008).

76 Como lembra Victor Nunes Leal (2002), a Constituição de 1946 equacionou melhor a questão econômica dos

municípios ao instituir mecanismos de “participação” na arrecadação federal. Eexemplo são os 10% do Imposto de Renda arrecadado pela união no âmbito do município que começou a ser repassado às municipalidades.

constituição de 1988, ao tornar o município ente federado e garantir-lhe a execução de políticas públicas, efetivou parte destas demandas e promoveu uma maior descentralização administrativa no país. O quadro a seguir resume a evolução da participação municipal no bolo tributário brasileiro a partir da década de 1960.

Quadro 1 – Distribuição do Bolo Tributário (%)

Ano União Estado Município Total

1960 59,4 34,0 6,6 100

1980 69,02 22,2 8,6 100

1988 62,03 26,9 10,8 100

2000 57,3 25,9 16,9 100

Fonte: elaborado com base em Andrade (2004)

Observa-se que desde a redemocratização a participação dos municípios no bolo tributário aumentou, principalmente a partir da Constituição de 1988. No entanto, as mudanças introduzidas pela nova constituição não alteraram a dependência dos pequenos municípios em relação aos governos estaduais e, sobretudo, federal. Dados de 1999 do BNDES, publicados por Andrade (2004, p.215) mostram que nos municípios com população abaixo de 30 mil habitantes, as receitas próprias não ultrapassam 3% do total de receitas correntes. A mudança está no fato de que estes recursos não dependem da vontade política uma vez que são transferências previstas em lei.

Outra mudança significativa está relacionada às atribuições visto que os municípios, mesmo os menores, passam a ser implementadores de políticas públicas e isso produz impacto sobre o comportamento da elite política. Para Andrade (2004), a criação do SUS, por exemplo, transferiu ao município a administração da saúde e isso provoca desgaste político, pois é o prefeito que passa a responder ao cidadão. Dito de outro modo, ao tornarem-se gestoras de políticas públicas as prefeituras passam a ser alvos da cobrança da população77. Além disso, outras mudanças como o fortalecimento do Ministério Público e a Lei de Responsabilidade Fiscal78 têm provocado alterações políticas, inclusive no que diz respeito ao comportamento da sociedade, que passa a contar com mais instrumentos de controle e fiscalização.

77 É comum ouvir nos chamados “meios populares”, quando da prestação de um serviço de má qualidade ou

simplesmente da inexistência de um serviço, que “o dinheiro vem” e “ninguém sabe o que tá sendo feito dele”.

78 A Lei de Responsabilidade Fiscal foi introduzida em 2000 pela Lei Complementar nº 101 com o objetivo de

impor um controle dos gastos do governo nos níveis federal, estadual e municipal. A LRF determina, entre outras coisas, que os gastos com a folha de pagamento não extrapole 60% das receitas no caso dos municípios.

A partir de 2003 houve um aumento da participação das municipalidades na gestão do Estado brasileiro. Como assinala Reis (2010), no governo Lula ampliaram-se as “transferências voluntárias”, isto é, os convênios celebrados com municípios79. Em parte,

essas transferências se devem às mudanças em políticas públicas que conferem aos municípios papel fundamental na execução e gestão, como no caso da educação80. Por outro lado, os municípios pequenos do interior, particularmente do Nordeste, têm se beneficiado também de uma melhoria da situação econômica da população, via política de valorização do salário mínimo e através de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família81.

Outras políticas voltadas a segmentos de baixa renda, como programas de eletrificação rural, de financiamento da agricultura familiar e de convivência com a seca, têm também alterado o modo de vida das comunidades rurais. Enfim, as mudanças institucionais e administrativas desencadeadas pela redemocratização e consolidadas na última década têm aumentado a autonomia das municipalidades em relação aos governos estaduais e nacional, bem como das populações interioranas em relação aos mandões locais.