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Organização municipal e administração local no pós-1988

4.2. As “novas instituições” e o cotidiano da política

4.2.1. Organização municipal e administração local no pós-1988

Já mostrei como nos anos 1990 ocorreram mudanças administrativas nos municípios brasileiros em virtude da nova constituição que mudou algumas atribuições municipais e das mudanças no cenário macroeconômico nacional principalmente a partir de 1994 quando foi criado o Plano Real. O aumento das atribuições municipais no que diz respeito à gestão de importantes políticas públicas como saúde e educação, bem como a introdução do concurso público como forma de recrutamento de pessoal para as instituições estatais impactaram a forma como a política local era conduzida. Além disso, as restrições financeiras que se seguiram à estabilização da moeda em 1994, bem como a entrada em vigor da LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal exigiram adaptações na conduta das elites políticas locais.

Em Paripiranga, a primeira grande mudança do período ocorreu com a emancipação do distrito de Adustina em 1989. A pesquisa não obteve dados que mostrem a variação nas receitas municipais do período, mas é evidente que a perda de mais da metade do território foi um prejuízo para o município. Basta observar, no período, que à medida que Adustina passa a destacar-se no cenário nacional pela produção de grãos, em especial o feijão, e Paripiranga definha-se, só recuperando seu protagonismo nos anos 2000, quando o incremento de tecnologia permitiu que o milho fosse produzido em escala, mesmo nas pequenas propriedades e em áreas de relevo irregular.

344 O desentendimento de Dr. Zé Carlos com o PSDB começou na eleição da mesa diretora da Câmara em 2009

quando os dirigentes do partido buscaram um entendimento com a bancada governista enquanto seu candidato a prefeito em 2008 trabalhava para eleger um candidato oposicionista.

O então prefeito Clarival Trindade lutou judicialmente contra a emancipação345 depois desta ser aprovada em plebiscito pela população da área envolvida346, mas não obteve sucesso. Clarival estava em sua segunda administração e o município tentava se adaptar também a outras mudanças introduzidas desde os anos 1970. A feira e a rodoviária, tinham mudado de endereço e com elas toda a dinâmica urbana da cidade tinha se transformado. O comércio demorou a adaptar-se ao novo desenho urbano da cidade e a agricultura estava-se remodelando, em virtude do fim do “ciclo da batatinha”. Com efeito, as realizações de Clarival no período não foram muito expressivas347.

No plano institucional, Paripiranga vivia um ajuste impulsionado pela Constituição de 1988. Na Câmara era elaborada a Lei Orgânica do Município e instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito348 contra o ex-prefeito José Menezes de Carvalho. As duas

iniciativas marcaram mudanças importantes no cotidiano político e na própria forma de “jogar” o jogo político. A elaboração da Lei Orgânica contou com a participação, mesmo que tímida, da sociedade o que foi um marco para alguns atores sociais, sobretudo o sindicato dos trabalhadores rurais e as pastorais católicas (voltarei a este ponto na próxima seção). Já a CPI marcou a consagração de uma forma de fazer política que se fortaleceria no período, a saber, a “judicialização”.

A administração que sucedeu a de Clarival Trindade, isto é, a gestão de José Vieira Sobrinho (1993-1996), conviveu com o impacto do novo contexto e sem contar com a habilidade política do antecessor. Conforme conta Renivaldo Pimentel Lima, que era o vice- prefeito e uma das pessoas influentes na administração:

Houve um plano de emergência de FHC que arrombou conosco [...]. Você receber 320 mil e baixar pra 200, então se você pagasse o comércio não podia pagar os funcionários [...]. E havia um descontrole tão grande da administração que Zé de Nezinho pagava 10 vezes à mesma pessoa (15/11/2013).

345 O prefeito Clarival requereu à Procuradoria Geral da República que representasse junto ao Superior Tribunal

de Justiça pela inconstitucionalidade do processo emancipatório alegando que o plebiscito foi realizado apenas com a população da área emancipada o que, na percepção do prefeito, violaria “o princípio da autonomia municipal” (SANTANA, 2008, pp.88-90).

346 O plebiscito foi realizado em 8 de janeiro de 1989 e o resultado foi o seguinte: Total de votos apurados:

1.653; votos “sim”: 1.628; votos “não”: 07; votos nulos: 14; votos brancos: 04. Em seguida foi promulgada a lei estadual que efetivou a emancipação (Lei nº 4.851 de 05 de abril de 1989), convocadas eleições municipais e finalmente instalado o novo município com a posse do prefeito dos vereadores em 1º de janeiro de 1990 (SANTANA, 2008, pp.88-90).

347 Sua principal glória na segunda gestão foi receber o arcebispo primaz do Brasil, Dom Lucas, em 1991 quando

a Câmara concedeu-lhe título de cidadão paripiranguense (1º de dezembro de 1991).

348 A seção de instalação da CPI ocorreu em 03 de abril de 1990. O objetivo era inviabilizar politicamente o ex-

Portanto, as turbulências no cenário nacional, que afetou o repasse de recursos para os municípios, juntamente com a desorganização da gestão municipal, fez Paripiranga entrar no período de caos sem precedentes. Um exemplo da tensão entre os marcos institucionais do período e a cultura política local viu-se quando da realização de um concurso para provimento de cargos na administração municipal. Paripiranga teve seu “Regime Jurídico Único” para os servidores aprovado na Câmara em 29/12/1993 (Lei Complementar 03/93) e em seguida realizou um concurso público. Ocorre que o prefeito queria usar o concurso para efetivar seus afilhados políticos e, portanto, enfrentou problemas na justiça, terminando com a nulidade do concurso. Conforme conta Renivaldo Pimentel Lima (15/11/2013): “[...] não saiu porque viraram de cabeça pra baixo [...] Ele dizia que era o prefeito e quem mandava era ele”.

A situação administrativa caótica do município foi amenizada pela atuação do então desembargador Ruy Dias Trindade que, na presidência do Tribunal de Justiça da Bahia, chegou a assumir o cargo de governador do estado entre 2 de abril de 1994 2 de maio de 1994. Durante o período de um mês à frente do executivo estadual o interlocutor de Paripiranga junto à elite carlista tratou de realizar obras no município e rearticular a política local: “Doutor Ruy ajudou muito, esse fórum, a delegacia... Ele tinha muita influencia, tanto que de quinze em quinze a gente era recebido por Luiz Eduardo em Salvador ou até em Brasília” (Renivaldo Pimentel Lima, 15/11/2013).

Com efeito, a transição do município no período que se segue à entrada em vigência de um novo marco institucional e administrativo no país foi dramática e gerador de grandes tensões políticas. A partir de 1997 o município passa a conviver com uma nova tensão fruto da introdução de supostos mecanismos racionais de gestão e relacionamento entre administração e sociedade. A gestão de José Menezes de Carvalho (1997-2000) se portou como consolidadora da nova agenda administrativa brasileira ao realizar concursos públicos (que efetivamente recrutou pessoal para os cargos municipais) e criar o “Código Tributário” que modernizou o Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU. Estas mudanças geraram reações contrárias da população. Os eleitores mais entusiastas não se conformavam em ter que se submeter a um concurso para alcançar um emprego na administração do prefeito que ajudaram a eleger. A população da sede, que havia votado em massa no novo prefeito em virtude do descaso do anterior com a limpeza pública, não se conformava em ter o IPTU elevado e cobrado como não ocorria antes.

Todavia, a maior tensão foi gerada pela mudança no relacionamento entre o prefeito e seus principais auxiliares com a população. Acostumada a conversar com o prefeito em sua residência, na rua ou na prefeitura a qualquer hora, a população encontrava agora um prefeito

pouco acessível. Além de não receber a população em sua residência o prefeito impunha regras para atender a população na prefeitura: os interessados tinham que procurar a prefeitura em dias determinados, pegar uma senha e aguardar sua vez de ser atendido. A mudança gerou descontentamento porque a população sentia-se “humilhada” com a formalidade. O resultado foi uma derrota em 2000 quando o prefeito disputou a reeleição contra um jovem político que atuava no vácuo deixado pela administração, isto é, a assistência das pessoas, e assumiu a candidatura a 25 dias do pleito quando o então candidato do PFL, Rerivaldo Pimentel Lima, renunciou ao posto sob pressão (a seguir voltaremos a essa questão).

As duas administrações de Carlos Alberto Andrade de Oliveira (2001-2004 e 2005- 2008) foram marcadas pela inversão do modelo introduzido pelo antecessor. Interrompeu a cobrança do IPTU, não realizou mais concursos e atendia a população tanto em sua residência quanto na prefeitura. Todavia, a mudança custava um preço alto porque o cenário político- institucional era adverso a esta cultura política. Ao tempo que dispensava a cobrança do IPTU, incrementava os gastos com contratação de cabos eleitorais, sem concurso, para exercerem funções públicas e, sobretudo, fazia “assistencialismo”349. Por isso, o prefeito

enfrentou problemas com o Tribunal de Contas e o Ministério Público.

Importante observar que, diferentemente do passado, quando esse tipo de prática envolvia cabos eleitorais e redes de “parentelas”, a assistência era individualizada e diretamente prestada pelo prefeito ou seus familiares. Além disso, essa assistência quase sempre priorizava a doação de dinheiro em espécie, o que tornava as relações mais fluidas e as fidelidades menos duradouras. Com efeito, para manter o prestígio junto aos eleitores e evitar que “formadores de opinião” fizessem críticas, o prefeito procurava nunca negar a quem fazia um pedido e costumava afastar-se da cidade por vários dias seguidos para evitar gastos excessivos.

Como a LRF, que entrou em vigor durante sua primeira administração, impunha diversos limites à gestão pública, o prefeito enfrentou dificuldades jurídicas. Mas sua habilidade política permitiu que concluísse os dois mandatos. Foi a habilidade política que permitiu ao prefeito, por exemplo, transferir para os vereadores de oposição o ônus de uma demissão em massa de servidores contratados. O fato gerou protesto e um dos vereadores acusados pelo prefeito quase foi linchado pelos funcionários demitidos350. Além disso, no

plano estadual, o prefeito contava com a força protetora do carlismo cuja influência no

349 Doação de dinheiro, cestas básicas, material de construção, medicamentos e outros bens à população.

350 O incidente ocorreu em outubro de 2002 com o vereador Gilson Andrade Cruz (PTB) que foi surpreendido

em sua residência por centenas de pessoas enfurecidas. Gilson foi retirado por policiais militares que o conduziram com segurança para outro município juntamente com sua família.

judiciário e em instituições como o Tribunal de Contas dos Municípios, o que evitou maiores problemas ao longo dos oito anos que esteve à frente da prefeitura de Paripiranga.

Documento 3 – panfleto apócrifo publicado em 2007 com críticas à administração do prefeito Carlinhos.

Fonte: Arquivo pessoal do autor.

Em 2008, Carlos Alberto conseguiu eleger seu sucessor. Esse, no entanto, promoveu algumas mudanças na administração e no estilo de governar. Realizou concursos públicos, criou uma nova secretaria para executar programas sociais voltados à área rural (a secretaria

da agricultura e meio ambiente) e aproximou-se do governo estadual para potencializar investimentos e contrapor-se ao trabalho da oposição, sobretudo do PT, que já estava sob a liderança do médico Dr. Zé Carlos. A maior mudança introduzida pelo prefeito George Nascimento, todavia, foi na assistência à população que marcara a administração de seu antecessor.

Logo que foi eleito George Nascimento concedeu uma entrevista à emissora de rádio local onde deixou clara a mudança que pretendia imprimir na administração em relação ao antecessor. De estilo direto e pouco polido, o prefeito pronunciou frases como: “na minha residência não atenderei” e “quem tiver em sua residência e disser assim: deixe eu tomar um banho e ir ali à prefeitura pedir um saco de cimento... eu digo não vá, não perca o seu tempo”. Com o pronunciamento, que gerou protesto na população, sendo usado intensamente pela oposição nas eleições seguintes, o prefeito George Nascimento iniciou uma inflexão no estilo de administrar e, ao mesmo tempo, construiu as condições para o controle quase autocrático da política local.

A “política do varejo” do seu antecessor, que priorizava o assistencialismo e o relacionamento direto com cada eleitor, foi substituída por uma “política do atacado” baseada na cooptação de comerciantes e principalmente de políticos351. Por outro lado, a administração recrudesceu nas práticas de perseguição a adversários que não cediam a sua política de cooptação. Portanto, configurou-se um cenário onde as alternativas são submeter- se ao mandonismo e gozar de vantagens como contratos de fornecimento à prefeitura (no caso de empresários) e cargos públicos (no caso de lideranças políticas ou mesmo funcionários já lotados na prefeitura) ou opor-se a ele e sofrer perseguição.

Um exemplo de perseguição a empresas ocorreu com a própria emissora de rádio do município. Alinhada com a situação de 2001 a 2008, quando sua proprietária (Wanilda Aquino Trindade, viúva de Clarival Trindade) ocupou o cargo de vice-prefeita, a emissora mudou sua relação com a prefeitura a partir de 2009 quando incluiu em sua grade um programa jornalístico de forte viés político apresentado pelo novo líder oposicionista, o médico Dr. Zé Carlos. A partir deste período, a prefeitura fez várias investidas para tirar o programa do ar e, não alcançando sucesso, cessou a verba de publicidade dispensada para a

351 Desde a posse em 2009 o prefeito começou a costurar uma aliança com ex adversários. Começou atraindo

para sua base três vereadores oposicionistas (Jeronimo Evangelista de Carvalho e Melquiades Matias Fontes Filho do PP e Givaldo Cardoso Santos do PSDB) e o próprio candidato a prefeito do PT em 2008, Sergio Freire Celestino. Em 2012 George atraiu para sua campanha de reeleição outro candidato a prefeito em 2008, Gilmar Maranduba Costa Conceição (PMDB), e o ex-prefeito José Menezes de Carvalho (PTB). Além disso, conseguiu neutralizar o ex-prefeito escolhendo sua mãe como candidata a vice-prefeita.

rádio. A prefeitura também pressionou os empresários governistas a fazerem o mesmo e gerou dificuldades financeiras para a rádio.

A perseguição a servidores públicos foi outra prática intensificada nesta gestão. Sendo a maior parte dos funcionários oriundos de concurso público e, portanto, imunes a demissões desmotivadas. Além disso, a prefeitura passa a lançar mão de outros artifícios como desvio de função e deslocamento, principalmente com professores e demais servidores da educação. Como o município tem escolas distribuídas em diversos pontos de seu território, sendo algumas de difícil acesso e com condições materiais precárias, a transferências dos servidores para pontos mais distantes da sede funciona como uma forma de punição e, portanto, de perseguição política. Por conta da intensificação desta prática nos últimos anos, os servidores da educação acabaram organizando duas greves (2010 e 2011), algo que não ocorria no município desde 1996 quando houve um caos com atrasos de salários e demissões em massa.

Ademais, estas mudanças institucionais aqui referidas ainda dão margem para diversas práticas mandonistas. O Tribunal de Contas, por exemplo, que é um instrumento que em tese busca garantir maior racionalidade na administração pública, tem servido também de instrumento para controle das elites locais pelas elites regionais. A esse respeito o depoimento de um dos principais personagens políticos locais do período é eloquente:

A pior coisa que eu vejo nesses governantes aí é que eles são amarrados pelo Tribunal de Contas. Zé Menezes mesmo por causa de processos vivia lá atrás de deputado... eles também quando pegam uma bucha dessas não resolvem, eles ficam ali, olhe, aguentando pra ter o cara na mão (Renivaldo Pimentel Lima, 21/05/2013).

Os prefeitos José Vieira Sobrinho, José Menezes de Carvalho, Carlos Alberto Andrade de Oliveira e George Roberto Ribeiro Nascimento tiveram a maioria de suas contas aprovadas com ressalvas. Todavia, quando a Bahia já vivia sua transição pós-carlista o prefeito Carlos Alberto teve suas últimas contas reprovadas pelo TCM e com a vigência da Lei da Ficha Limpa352 teve seus direitos políticos cassados.

Um dos efeitos mais imediatos da redemocratização na vida dos municípios diz respeito à crescente autonomia do aparelho policial e do judiciário, bem como a presença do ministério público. Este último, por exemplo, entrou em atrito com o poder executivo entre os

352 A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010) é fruto de um projeto de lei de iniciativa popular que

reuniu cerca 1,3 milhão de assinaturas e foi aprovado pelo congresso em 2010. A lei torna inelegível por oito anos o político que tiver mandato cassado, renunciar para evitar cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado, mesmo que ainda exista chance de recurso. A Lei da Ficha Limpa foi objeto de contestação, mas o Superior Tribunal Federal a considerou constitucional e garantiu sua vigência a partir das eleições de 2012.

anos 1997 e 2000 quando o promotor Gildásio Rizério de Amorim353 desenvolveu ações contra a política municipal de educação que tiveram repercussão nacional354. Descontente com o promotor, o prefeito José Menezes de Carvalho promoveu audiências na Câmara para pressioná-lo, organizou abaixo-assinado e intercedeu junto às autoridades políticas estaduais para transferir Gildásio do município sem, no entanto, alcançar sucesso.

Todavia, em 2000, movido por esses ressentimentos em relação ao prefeito, o promotor foi um dos entusiastas da candidatura oposicionista encabeçada por Carlos Alberto (PFL) e, a partir da vitória deste, Gildázio mudou sua postura. Com efeito, nos últimos anos o promotor teve uma atuação mais discreta no município, embora tenha movido ações civis públicas contra a administração municipal relacionadas às questões sanitárias como o fechamento dos “matadouros”355.

Portanto, esse novo quadro marca um maior equilíbrio entre elites políticas e instituições, conforme assinalado por Dantas Neto (2007). Ao contrário do período autoritário em que as instituições eram facilmente manipuladas, principalmente em sua versão regional, o carlista, onde o poder se estruturava numa hierarquia personalista que tinha no topo o próprio ACM. Com efeito, essa maior autonomia das instituições torna o jogo político mais complexo e o poder de mando mais limitado.