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Descentralização de políticas e as demandas de capacidade estatal municipal

TERRITÓRIOS, POLÍTICAS E PROGRAMAS

Capítulo 2 A SITUAÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL NO CONTEXTO DA DESCENTRALIZAÇÃO DE POLÍTICAS

2.2 Descentralização de políticas e as demandas de capacidade estatal municipal

Conforme Secretaria de Relações Institucionais (SRI) (2008, p. 7), a descentralização de políticas e as competências comuns repercutem nas administrações municipais e, na maioria, ainda inexiste capacidade de gestão para desempenharem esses papéis. Ademais, as disparidades populacionais são enormes: 89% dos municípios com até 50 mil habitantes possuem 33,62% da população nacional, ao passo que os 38 maiores somam quase 30% (56 milhões de pessoas) e 2514 municípios com até 10 mil habitantes são 45% e detêm apenas 6,82% da população. A tabela 2.1 mostra os grupos de municípios por porte populacional.

Tabela 2.1 - Municípios brasileiros segundo grupos de habitantes e quantitativos intervalares no ano de 2014 Grupos de

habitantes (por mil)

Número de municípios Porcentual Quantidade de habitantes Porcentual sobre população total Brasil 5570 100,0 202.758.031 100,0 Até 5 1243 22,31 4.213.982 2,07 De 5 a 10 1216 21,83 8.640.642 4,26 De 10 a 20 1382 24,81 19.773.216 9,75 De 20 a 50 1080 19,38 32.828.038 16,2 De 50 a 100 348 6,21 24.149.021 11,9 De 100 a 500 261 4,68 53.456.406 26,4 De 500 a 1000 22 0,39 15.149.719 7,47 + 1000 17 0,31 44.547.007 21,9

Para Franzese e Abrucio (2013), para além da estrutura legal, a configuração socioeconômica e administrativa dos governos locais também é extremamente heterogênea e muitos deles têm pouca capacidade de exercer sua autonomia. Pode-se ver essa realidade com base nos indicadores socioeconômicos apresentados na tabela 2.2 que, decerto, impactam em respostas distintas diante de diferentes níveis de capacidade estatal municipal.

Tabela 2.2 - Indicadores socioeconômicos municipais segundo grupos de habitantes no ano de 2010 Grupos de

habitantes (por mil)

Índice de Gini Renda per capita (R$)

% pop. com acesso inadequado a água e esgoto sanitário IDHM Brasil 0,494 862,00 9,2 0,66 Até 5 0,466 648,00 5,22 0,67 De 5 a 10 0,484 572,10 8,31 0,65 De 10 a 20 0,504 544,97 12.36 0,64 De 20 a 50 0,516 613,00 12,34 0,65 De 50 a 100 0,518 744,23 9,89 0,69 De 100 a 500 0,506 994,87 3,61 0,74 De 500 a 1000 0,545 1.215,14 1,69 0,77 + 1000 0,601 1.563,60 1,83 0,78

Fonte: elaboração própria base no Atlas do Desenvolvimento Humano (PNUD), 2010. Nota: Valores de renda per capita atualizados pela variação do IPCA de 2011 a 2014.

Para Losada (2013), a desigualdade econômica e administrativa entre os municípios é um obstáculo para consolidar o pacto federativo arquitetado com a nova ordem constitucional e a descentralização de políticas. Essa disparidade revela distintas condições de organização e capacidade institucional que, em geral, é mais fraca nas localidades até 50 mil habitantes. Esse segmento ainda é o mais dependente das transferências intergovernamentais para a sua sustentabilidade, o que amplia a importância de promover suas capacidades estatais.

Para MF (2005, p. 470), a consolidação da descentralização depende do aumento da capacidade organizativa e fiscal dos municípios, pois não é viável que sejam financiadas unicamente pela ampliação da sua participação na receita dos impostos federais e estaduais e por níveis crescentes de endividamento. Nesse cenário, a questão é saber se as relações intergovernamentais são capazes de criar mecanismos de cooperação que evitem dois riscos opostos, mas complementares: o "autarquismo municipal" (Abrucio, 2005) e a tendência a adotar regras uniformes que desconsideram a desigualdade entre os municípios.

Para Abrucio (2010), os resultados da municipalização das políticas foram muito díspares, além de aspectos negativos como a dependência financeira da União na grande maioria dos governos locais, a escassez de recursos para dar conta das demandas dos cidadãos e a baixa capacidade administrativa, o que implica dificuldade para formular e implementar os programas governamentais. Este é um "paradoxo federativo": "quando as cidades recebem

auxílio e não desenvolvem capacidades político-administrativas podem perder parte da autonomia; mas, caso fiquem sem ajuda ou não queiram tê-la, podem se tornar incapazes de realizar a contento as políticas públicas" (ABRUCIO, 2010, p. 45). Seria equivocado afirmar que a questão da interdependência federativa não foi tratada pela Constituição de 1988, pois:

Definiram-se de medidas de combate à desigualdade entre os entes, principalmente de cunho financeiro; na manutenção de um grande poder legislativo para a União propor políticas nacionais; e na proposição de que haveria mecanismos e instrumentos de cooperação entre os níveis de governo para a produção de políticas públicas, tema que foi destacado em algumas políticas, e de maneira geral pelo artigo 23. Pela primeira vez na história, foi criada uma engenharia institucional que levava em consideração à complexidade da federação brasileira (ABRUCIO, 2010, p. 48).

Uma questão chave nessa engenharia institucional reside na baixa capacidade administrativa local, ainda que Kerbay (2001) aponte que um dos efeitos da delegação de poder decisório recebida pelos municípios tenha sido a adoção de mecanismos de modernização gerencial. Mas não há garantia intrínseca à autonomia dos governos locais que os torne responsáveis, comprometidos com as necessidades dos cidadãos e determinados a administrar com eficiência. Esta autonomia pode gerar resultados opostos, sobretudo na gestão fiscal não tão responsável (ARRETCHE, 2003, p. 335). Por isso, torna-se relevante avaliar se a descentralização andou junto com o aumento nas capacidades estatais municipais. Buscar uma síntese entre duas questões parece ser a visão de Melo (1999): após 1988, o municipalismo passou a ser defendido sob enfoques diferentes e bases ideológicas: como princípio democrático e como princípio de engenharia administrativa visando constituir eficiência na prestação dos serviços públicos.

Autores como Melo (1996) e Souza e Carvalho (1999) argumentam na direção do comentário acima, pois a demanda gerencial dos municípios tornou-se um efeito não antecipado da descentralização que aprofundou-se à medida que as atribuições continuaram a ser assumidas localmente. Este problema não se resolve apenas com o argumento da eficiência alocativa dos recursos federais como única dimensão de modernização gerencial. Faz-se necessário considerar a baixa qualidade das burocracias locais diante do hiato formado entre as novas responsabilidades que a descentralização ensejou e suas capacidades instaladas. Para Abrucio (2005), Souza (2005), Affonso (1996) e Kugelmas e Sola (1999), a descentralização convive com a existência de municípios com precária estrutura administrativa, e o seu êxito é condicionado pelas limitações institucionais e financeiras locais para responder aos encargos assumidos. Nos termos de Melo (1996), um dos efeitos perversos da descentralização são burocracias locais sem capacidade institucional para prover

adequadamente bens e serviços sociais. Como no Brasil a descentralização também se baseia em competências comuns entre as três esferas de governo, as capacidades estatais municipais são um componente relevante na dinâmica das relações intergovernamentais.

Para tanto, a “falta de capacitação das unidades subnacionais para assumir novos encargos” (Affonso, 2000, p. 129) deve estar na ordem do dia. Segundo Arretche (1996), as politicas implementadas pelo governo central, durante o regime militar, ampliaram as capacidades administrativas dos governos subnacionais como decorrência da expansão da atividade estatal, o que serviu de apoio para a descentralização após 1988. Contudo, este processo engendrou novas demandas de capacidade institucional que não tiveram continuidade, gerando uma falha sequencial entre suas exigências e a realidade administrativa e gerencial na grande maioria dos governos locais (entrevista 10).

Ainda que os municípios sejam entes autônomos, em termos administrativos não reúnem essas capacidades, pois o fato de disporem de mais recursos financeiros e poder politico não teve correspondência direta com a melhoria da gestão. Conforme Souza (2002), em países com sérias desigualdades regionais, como é o caso do Brasil, mesmo mecanismos redistributivos como FPM são insuficientes. Por outro lado, a União ampliou seu papel regulador ao definir como e onde os governos locais devem investir recursos (por exemplo, com o Fundef, posteriormente com o Fundeb ou a EC 29/2000 sobre os montantes a serem investidos no SUS). Nesse contexto mais ainda a questão da modernização da gestão municipal se torna relevante, pois crescem as exigências para alocar os recursos de forma eficiente, afora os requerimentos de eficácia e efetividade nas políticas públicas.

Por isso, “a redefinição do papel dos governos locais tem sido acompanhada também por inovações na gestão administrativa stricto sensu” (FARAH, 2006, p. 70). Ou seja, o federalismo cooperativo pode funcionar melhor se a esfera local organizar um sistema de gestão adequado às características das responsabilidades assumidas com a descentralização21. Para Abrucio (2005) e Spink, Ward e Wilson (2008), visando melhorar a coordenação federativa, a União deveria auxiliar a criação de capacidades administrativas nos municípios. Assim seriam fortalecidos os elos entre as burocracias federal, estadual e municipal e a qualidade na implementação das políticas públicas.

É preciso considerar que “carências de ordem financeira estão comumente associadas a carências de capacitação técnico-administrativas, acentuadas [...] com a desativação ou

21 Mesmo autoras como Arretche (1999) e Souza (2004), que argumentam em favor da centralidade do desenho institucional das políticas sociais como variável decisiva para incentivar ou constranger a descentralização em função das estratégias indutivas do governo federal, também reconhecem a relevância explicativa das limitações administrativas e financeiras dos municípios frente às atribuições que assumiram.

redução do apoio institucional da União e dos estados aos governos locais” (SOUZA e CARVALHO, 1999, p. 204). Por essa razão, a gestão descentralizada demanda que as prefeituras dominem um arsenal técnico-gerencial que não possuem, e difundam uma ideia de planejamento para gerar "condições ótimas" em termos de recursos humanos e capacidade institucional. É preciso agregar capacidade gerencial na ponta da execução sem o que, do ponto de vista federativo e da coordenação intergovernamental, serão os maiores municípios dotados de mais condições que seguirão vocalizando suas demandas (NOGUEIRA, 1997).

Essas exigências de capacitação e qualificação da gestão pública municipal têm sido um dos mais difíceis obstáculos para que as políticas públicas possam alcançar a população das diversas regiões do Brasil. Conforme Lofrano (2010, p. 6), melhorar a capacidade de gestão municipal não depende apenas dos esforços das administrações locais, pois requer o aprimoramento do modus operandi dos órgãos do governo federal. E, nesse caso, a coordenação intergovernamental se torna um tema importante no que se refere às políticas de gestão pública, sobretudo quando se observa a complexidade dos arranjos institucionais descentralizadores. Fortalecer a capacidade da gestão tornou-se condição imperativa para combinar os novos papéis dos municípios e sua inserção em um contexto em que foi ampliada a delegação de responsabilidades advindas do governo federal.22 A próxima seção descreve a realidade da gestão municipal com base em quatro dimensões.

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