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A dissonância entre os feds e os locals e seu impacto sobre a adesão aos programas

TERRITÓRIOS, POLÍTICAS E PROGRAMAS

1.3 A dimensão da cooperação federativa por meio de programas

1.3.2 A dissonância entre os feds e os locals e seu impacto sobre a adesão aos programas

Na análise dos programas federais na cidade de Oakland, Pressman (1975) apresenta a visão dos feds e dos governos locais. Para os primeiros, funcionários municipais não veem o quadro completo e só observam a realidade local, o que justifica que os programas sejam formulados sem a sua participação. Os governos locais estão interessados nos recursos, mas não exatamente nos programas. Suas limitações provêm de não poderem garantir sua parcela local, pois com seus níveis de arrecadação tributária tendem a ser mais cautelosos em termos orçamentários. Para os feds, governos locais são constraint-seekers para justificar barreiras e repassar a responsabilidade às agências federais pela não adesão aos programas. Como resultado, a estreiteza de objetivos dos governos locais reduziria o alcance das ações federais e acabaria influenciando que a gestão municipal pouco se altere.

Na visão dos municípios, os feds estão longe da realidade local para compreender suas particularidades, levando a falhas de concepção que desconsideram as heterogeneidades federativas (DERTHCIK, 1972). Programas federais estão mais preocupados em gastar recursos de forma apropriada, enquanto municípios desejam economizá-los. Funcionários federais são ingênuos, pouco práticos e otimistas irrealistas sobre o alcance dos programas, pois ignoram as capacidades locais para pôr em prática seus objetivos. Imaginam "links", "coordenação" e "progresso" onde essas questões não existem. Já o governos locais reclamam de mudanças nas regras dos programas federais, o que gera desconfiança em face de normas consideradas instáveis que também são constrangidas pela legislação e procedimentos burocráticos que os tornam mais inflexíveis nos padrões de execução (PRESSMAN, 1975).

Esse é um problema, pois a divisão de autoridade entre níveis de governo não permite imposição, mas requer indução à base de condições vinculadas, ainda que seja provável que os interesses do governo federal e suas contrapartes locais não coincidam. O "doador" federal busca mover recursos, informação e assegurar controle para as ações serem executadas conforme suas premissas. Os "destinatários" buscam atrair verbas, garantir seu fluxo contínuo e o desejo de autonomia sobre os objetivos pretendidos pelo doador (PRESSMAN, 1975). Esta situação manifesta o relacionamento conflitivo entre doador e destinatário, pois:

[...][F]ederal funds have not coming to cities without strings attached; the federal donor supply detailed instructions on the way money is to be used. Because the dependence involves giving up of some decision-making authority to the donor (for

example, a city’s changing hiring or planning or accounting practices to conform to

programs. Thus, there is a real tension between the recipient’s objective of attracting funds and its desire for autonomy (PRESSMAN, 1975, p. 124).

O conflito entre esses objetivos políticos e organizacionais frequentemente conduz ambos atores a terem diferentes visões sobre as políticas de financiamento, pois suas regras de acesso e forma de implementação são objeto de controvérsia. Pode-se gerar uma situação paradoxal na qual pequenos municípios, e que mais demandam esse tipo de suporte, sejam os que mais receiam ficar dependentes do governo federal. Esta avaliação pode decorrer de obrigações amarradas aos programas, como por exemplo, a perda de receitas locais em caso de malogro na sua implantação. Esse é um tipo de situação em que o comportamento defensivo pode impactar as escolhas dos governos municipais, sobretudo se precisam prestar contas à sociedade local em caso de perda de recursos decorrente da adesão aos programas.

Por outro lado, governos locais menos necessitados e mais afluentes podem ser os que mais aderem aos programas, pois possuem melhores condições de pagamento e os custos das verbas federais disponibilizadas são proporcionalmente menores em seus orçamentos. Essas localidades tendem a exercer melhor sua autonomia em se tratando de aderir a esses programas. Assim é, pois seu risco econômico (retenção de receitas ou carência de recursos financeiros) e político (prestar contas localmente) é comparativamente menor. Essa é mais um forma de expressão da assimetria federativa, em especial quando o acesso é voluntário.

Essas escolhas ainda podem ter efeitos desiguais se os benefícios para os dois grupos de municípios não forem o mesmo em termos de prioridade e relevância. A autonomia local pode ser afetada, pois pode ser que existam, conforme Pressman (1975, p. 123), “efeitos da dependência particularmente severos para os destinatários”. Dependentes duplamente: pela demanda que existe para um programa e pelas dificuldades de acessá-los. Nesse quesito não há apenas o dilema do controle e da autonomia, mas o que esse autor chama de “batalhas sobre diretrizes ou condições sobre o uso da ajuda”. Com efeito, regras de acesso a programas podem ter consequências políticas se impactam desigualmente o acesso dos governos locais.

Por essa razão, para Agranoff e McGuire (2004), a visão de custos antecipados, responsabilidades requeridas e ausência de apoio técnico podem influir nas decisões de adesão dos entes. Mas se os dois primeiros fatores são premissas consideradas "duras" para o último item, e resultam de obrigações contratuais, talvez o processo de ajuda seja posto em segundo plano, mesmo que essa necessidade persista. Esse jogo gera cooperação ou conflito, a depender dos “mandatos” ou “imperativos funcionais” dos programas que afetam as escolhas em nível subnacional. Por isso, “it must be understood that if subnational

jurisdiction agree with and is likely to benefit from a federal program or policy, it is more

likely to go along with and engage in some form of collaborative management”

(AGRANOFF, 2001, p. 47).

Os prováveis resultados dessas diferentes, eventualmente contraditórias, perspectivas entre doador e destinatário são duas “síndromes” que buscam minimizar esse problema de forma ineficiente. Conforme Downs (1967, p. 216-218), uma é a síndrome da violeta murcha que ocorre quando agentes locais têm poucos incentivos para se aproximarem do governo federal e estreitam/reduzem o escopo e o alcance de seus objetivos ao avaliarem estrategicamente custos e benefícios. As vantagens da interdependência são postas em segundo plano e dão lugar a comportamentos mais defensivos, mas deixam inexploradas as possibilidades que poderiam ocorrer com a utilização dos programas federais ofertados.

A outra é a síndrome do super-homem, caracterizada pela concepção centralizada de programas federais que, na prática, desconsidera as particularidades federativas ao definir regras uniformes, amplos e “glamorosos objetivos" a serem atingidos por ações e metas “ousadas", mas que contém interdependências apenas projetadas teoricamente. "Inflação de altos objetivos" que, para Derthick (1972, p. 93-94), aproxima a ambição da concepção com as falhas na implementação. O afastamento da política e da administração municipal facilita aos federal policy makers formularem objetivos inovadores, já que os fardos serão locais.

Nessa linha, Wright (1988, p. 22-23) destaca que muito das relações intergovernamentais se propaga por padrões nacionais que fazem os "reguladores" verem funcionários de governos subnacionais como pouco mais que midllemen. A esses caberia implantar objetivos de programas nacionais, pois como as relações intergovernamentais são concebidas de forma hierárquica os entes subnacionais estão "abaixo" (WRIGHT, 1998, p. 38). Aplica-se a Lei de Miles ("onde você está depende de onde você se senta") às relações intergovernamentais, pois os interesses da União e dos entes podem ser diferentes ou conflitantes. A pesquisa de Kane (1984) mostra essa questão: gestores federais são vistos como atores distantes para compreender a realidade local e são irrealisticamente otimistas sobre a forma de resolver problemas municipais. Do lado oposto, os governos locais podem ser mais pessimistas diante de programas que demandam o atendimento de exigências de acesso e custos associados. E assim é porque os produtores federais de políticas:

[T]end to believe that they have [this] duty. Theirs are the obligations of leadership. And, believing that they have the duty to show the other governments what ought to be done, federal officials have developed the strategy of the "demonstration", the single project or program that can be put forth as a model for government conduct generally. Though the tangible benefits are restricted to a particular local, if the

project is conceived of as a demonstration the intangible benefits of it can be distributed universally: everyone can share in the symbolic returns from a showing of what the public goods requires (DERTHICK, 1972, p. 94-95).

Um dos efeitos decorrentes de ambas síndromes é a dificuldade de se constituírem relações intergovernamentais mais cooperativas, pois riscos são calculados pelos atores políticos. No caso da violeta murcha, para Downs (1967, p. 219), incumbentes políticos podem agir de forma mais conservadora, já que “tem um interesse em preservar o status quo, pois desejam sustentar os elementos que os colocaram no exercício do cargo quando tomam decisões". Em relação ao super-homem, trata-se de gerar regras que, ao custo da ineficiência de escala de um programa, podem dificultar sua implantação e execução orçamentária. De uma forma ou outra surgem “constrangimentos estruturais” que limitam a capacidade de ambos os níveis de governo alcançarem seus objetivos de forma cooperativa.

Nessa relação há uma distância espacial (centro e periferia nos termos de Riker) e afastamento político (a forma como cada nível de governo se vê na interação com o outro). O doador está distante geograficamente e em percepção, o que causa um confronto entre as duas síndromes, pois uma se baseia no que deveria ser o comportamento dos atores e a outra diz respeito às ações factuais que os afastam da eficiência desejada. Para Pressman (1975, p. 127), ocorre o "efeito das imagens contrastantes":“seen from the federal superman perspective, local caution appears as excessive timidity; seen from the local shrinking violet perspective, federal enthusiasm appears as recklessness. Thus, images are influenced by as

actor’s place in the aid process".

Outra forma de aproximar as visões é reconhecer os "diferentes campos de jogos" (differential game playing) entre os entes: esses mutuamente desconhecem ou são pouco simpáticos aos objetivos e interesses do outro, ainda que o programa seja o mesmo, o que pode ter como efeito gerar inação e ineficiência na sua implementação. Estas mútuas imagens diferem conforme o tipo de organização federal e a experiência que os gestores em ambos os níveis de governos possuem nesses vínculos. Para Grodzins (1984, p. 122), nesses contextos é essencial superar os "paroquialismos" mútuos entre as diferentes unidades de governo. Nos termos Wright (1988), a "Lei da Perspectiva dos Participantes": como gestores federais e subnacionais percebem-se mutuamente no jogo intergovernamental? Há três perspectivas:

a) Pirâmide invertida: o nível federal julga suas posições amplas frente ao localismo estreito de pipsqueak mayors (prefeitos insignificantes) ou fly-by-night city managers (pouco confiáveis em temas financeiros, o que requer regras de acesso mais rígidas).

b) Visão do diamante: os estados veem suas posições como abrangentes para os problemas, mesmo estando no "meio" das relações intergovernamentais, mas identificam as concepções federais como estreitas e percebem as visões locais de forma limitada.

c) Ampulheta: como símbolo para os governos locais, pois veem que podem partilhar iniciativas com o nível federal, mas identificam os estados com concepções mais estreitas e vistos como gargalos no interior das relações intergovernamentais.

Mesmo que Wright e Downs apresentem distintas metáforas, quando consideram os vínculos entre os níveis federal e local, abordam a possibilidade de inexistir uma imagem coincidente entre ambos. A sobreposição de figuras geométricas não gera um desenho político nítido de relações intergovernamentais, já que um efeito dessas imagens contrastantes é gerar um "campo de jogo diferencial" entre as esferas de governo. Uma consciência dos múltiplos jogos é um dos pré-requisitos para a performance das relações intergovernamentais e bem- sucedidas negociações no seu interior (WRIGHT, 1988, p. 246). Afora as dissonâncias que podem existir entre o nível central e subnacional, o desenvolvimento de uma gestão local mais eficiente é outro aspecto que influi na dinâmica do federalismo. Isso porque em um sistema político que requer cooperação e integração entre os seus entes, melhorar suas capacidades estatais se apresenta como uma demanda relevante para os programas federais.

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