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Desenho institucional de programas e o efeito nas assimetrias federativas de acesso

TERRITÓRIOS, POLÍTICAS E PROGRAMAS

1.3 A dimensão da cooperação federativa por meio de programas

1.3.1 Desenho institucional de programas e o efeito nas assimetrias federativas de acesso

Programas frequentemente deixam amplas áreas de discricionariedade para a direção de seus administradores, o que acaba por produzir efeitos intergovernamentais. Por exemplo, na utilização dos recursos, o formalismo das regras (go by the book) pode gerar adesões subnacionais aquém da demanda potencial. Pode ser que a ênfase dos gestores federais recaia sobre não-conformidades (como obstáculos legais ou o apego às regras), que poderiam ser equacionadas pela implantação do programa, mas acabam transformando-se em obstáculos

para o seu acesso. Como também pode ser que as normas relativas às ofertas de apoio financeiro estimulem um programa em direções opostas aos seus objetivos se alguns entes são mais habilitados para candidatar-se (WRIGHT, 1988). Nesse caso, a discricionariedade das burocracias federais à frente de programas influi para gerar “poderosas alianças intergovernamentais autocentradas entre officials de agências públicas”. Como essa ação produz efeitos políticos, importa identificar os atores que conduzem esse processo e o seu lócus institucional: profissionais que dialogam com suas contrapartes subnacionais ou “tecnocratas” que moldam iniciativas ofertadas aos entes? (WRIGHT e STENBERG, 2007).

Esse é um aspecto importante na interação entre unidades federativas, pois, como são geralmente autônomas, podem voluntariamente decidir participar ou não nos programas federais. Para analisar essa situação, Wright (1988, p. 263-264) propõe um modelo baseado nos fatores de fornecimento e demanda (demand and supply factors). Duas questões são essenciais: a) do lado do governo federal, a oferta de fundos por meio de programas orientados a potenciais beneficiários; b) do lado da demanda, governos locais respondem a requerimentos e exigências administrativas para avaliar se irão ou não buscar esse apoio.

Este modelo serviu de base para uma pesquisa em cidades americanas com mais de 25 mil habitantes (em dois períodos: 1967-1972 e 1972-1977) que orientou-se por duas perguntas: quais as características socioeconômicas dos novos entrantes no sistema de ajuda federal? Estes diferiam daqueles "experimentados" (old hands) no jogo da ajuda? Concluiu-se que a adesão se deu nas "melhores" (better-off cities) em termos de capacidades administrativas e fatores políticos estratégicos. Não foram fatores de carência socioeconômica que desencadearam o acesso bem-sucedido dos governos locais aos programas (WRIGHT, 1988). Apesar de favorecer aqueles mais pobres no segundo período, o estudo mostrou como programas federais podem, a depender de suas exigências, ampliar ainda mais a distância entre os mais e os menos habilitados. Assim, a equação entre necessidades e capacidades locais pode ser inversa: quem menos precisa tem mais condições de acessar os programas.

Desse modo, pode se conformar uma dinâmica de gestão intergovernamental que pouco incide sobre assimetrias federativas já existentes, além de influir de forma diferenciada nas apostas que cada ente tem sobre os benefícios que decorreriam da adesão às políticas federais. Conforme Agranoff (2007, p. 282; 2001), enquanto alguns governos locais parecem estar jogando esse jogo, nem todos o fazem. Alguns não se integram nas políticas por não terem habilidades, mas seja quais forem as circunstâncias, esse é o jogo cooperativo disponível. Ainda que as oportunidades estejam dadas a todas para serem “fortemente engajadas” um “notável número de governos locais não o faz”, pois:

muitas aquisições de técnicas envolvem intrincados problemas legais e tributários, e nem todas as localidades escolherão - ou serão capazes - de utilizar eles [grants]. Mas quase toda grande cidade poderia, e os menores lugares poderiam, se a permissividade legal fosse acompanhada por assistência técnica [...]. (GRODZINS, 1984, p. 349).

Para Pressman (1975), a carência de “capacidade de absorção” municipal é um sério obstáculo para receber apoio federal. Segundo Peterson (1995), esse seria um preço a pagar pelo federalismo para garantir que os governos locais prestem serviços de qualidade. Mas como não há federalismo sem algum nível de cooperação, importa saber se as condições inseridas nos programas federais se propõem a pagar esse preço pela modernização gerencial dos governos locais. Pode ser que a "lei da crescente cooperação" ou "acomodação mútua" (Grodzins, 1984) na implementação de um programa não seja obtida se suas regras forem percebidas como pouco aderentes por localidades menos qualificadas. Segundo (Elazar, 1987, p. 67; 1994; Agranoff, 2001), o processo federal inclui buscar parcerias e se apoia em técnicas (administração e gestão), visando obter a cooperação dos entes em torno de programas. O desafio é alinhar a autonomia política e legal dos governos subnacionais em favor da concepção e implantação de programas de forma mais cooperativa (AGRANOFF, 2001).

Nessa linha, para Elazar (1994), ainda que o federalismo cooperativo opere partilhando programas, a barganha sobre suas regras pode gerar incentivos à "cartelização e monopólio de acesso"15 . E esse pode ser um resultado quando governos que possuem mais capacidades politicas e estatais reforçam suas posições na arena federativa onde a politics se decide e as policies são formuladas. Governos que continuamente trabalham juntos tendem a reforçar seus vínculos; já os menos habilitados costumam ocupar posições secundárias. Aqueles detentores de quadros profissionais qualificados, estrutura administrativa organizada e boas práticas de gestão orçamentária melhoram suas condições de operar cooperativamente com as agências federais (GRODZINS, 1984). Mas isso pode contribuir para gerar assimetrias de acesso aos programas e reforçar desigualdades já existentes entre os entes subnacionais.

Outra face desse problema é a fragmentação de programas federais, pois esse pode ser mais um estímulo à barganha de governos subnacionais que possuem mais capacidades

15 Para Ostrom (1974, p. 17), não é correto julgar o federalismo pela carga negativa ou positiva de suas classificações. Por exemplo, tratar os rótulos dual” ou “competitivo” como se fossem polos ruins e contrapostos

ao adjetivo “cooperativo”. A “cooperação, sob algumas condições, é equivalente a conluio e pode ser prejudicial

para o bem-estar agregado das pessoas”. Kinkaid (1990, p. 151) segue essa linha: “competição pode ser vista

como um corretivo para a excessiva cooperação, o que pode gerar conluio e ineficiência”. Em uma perspectiva

diferente, Skocpol (2002) argumenta que análises dessa natureza são melhor construídas quando inseridas em arenas de políticas, pois esse é o contexto onde conceitos gerais adquirem aplicação concreta. Essas são advertências a serem consideradas para analisar programas federais e seus efeitos nos governos subnacionais.

políticas e administrativas para agirem em contextos de autoridade mais dispersa (PRESMAN, 1975, p. 113-114). As assimetrias federativas de acesso podem aumentar se governos locais “empreendedores” e dotados de condições prévias se beneficiam de vários programas ao terem mais de uma "entrada". Mas, para agir com essa desenvoltura, é preciso dominar certas habilidades que não são manejadas de forma similar por todas as localidades.

Como “tal capacidade não é, de maneira alguma, universalmente assegurada”, alguns governos locais podem ganhar em dobro, ao passo que outros podem ficar com menos do que necessitam. Sobretudo, essa é a realidade de programas em que o acesso é voluntário e a avaliação de custos e benefícios pode dificultar adesões locais e, desse modo, resultar em perda de cooperação intergovernamental. Por isso é importante identificar se o sistema possui “avenidas para significativas interações”, já que essas são vias essenciais para que a cooperação federativa seja abrangente (AGRANOFF, 2001).

Pode ser que regras (as "amarras" criticadas pelos governos locais, conforme Pressman (1975)) sejam apropriadas de forma diferente pelos entes, caso demandem condições prévias que podem ser frágeis ou inexistirem. Alguns governos locais podem não se ajustar aos programas formulados de forma centralizada se as suas regras não são vistas como estímulos à cooperação (DERTHICK, 1972). Uma decorrência desse processo é o "risco de não obediência" inserido nos programas de assistência federal, caso suas exigências tornem difícil o seu cumprimento por governos subnacionais que buscam candidatar-se a eles. Isto pode gerar perda de oportunidade e baixa eficácia pelos temores dos custos inseridos e/ou penalidades decorrentes do descumprimento de suas obrigações. "Os requerimentos colocados sobre a assistência aos destinatários requer trade-offs entre esses mandatos, dado que o destinatário é consciente da aplicabilidade de uma exigência particular" (WRIGHT, 1988, p. 93). Portanto, governos subnacionais têm apenas a aparência de:

making significant policy choices, but the choices seemed few and elusive. The chief choice was deciding whether to participate in federal assistance programs. Once that choice was made, a larger array of more limited choices opened to those who entered the federal assistance arena. These choices were constrained chiefly, if not exclusively, by nationally specified rules of the game (WRIGHT, 1998, p. 98).

Um resultado dessa “cooperação coercitiva", no sentido de regras pouco amigáveis, pode ser uma ação “com um cálculo ampliado” (Wright, 1988) dos entes quando comparam os custos de não cumprir as regras dos programas com os seus benefícios potenciais. Nesse contexto, o termo “calculador” (ou estratégico) é empregado em três sentidos: a) avaliação antes de empreender uma ação; b) antecipar efeitos das ações previstas; c) computar em

unidades monetárias a relação entre custos e benefícios. Um segundo tipo de cálculo é o “jogo da fórmula”: a ponderação sobre as regras inseridas em programas federais e o que elas possibilitam de barganha, flexibilidade e ajustes (WRIGHT, 1999).

Ademais, quanto maior for a exigência de regras a cumprir, mais burocratizado, ineficiente e ineficaz pode se tornar o sistema federal. Uma consequência desse processo é gerar, nos governos locais, "problemas organizacionais" (Pressman, 1975) que se configuram como barreiras para obter esse apoio. A questão é saber se esse preço do federalismo vale o que se cobra diante das consequências sobre a cooperação intergovernamental, pois exigências de acesso podem gerar induções negativas que afastem os entes interessados. Por isso, a calibragem entre regras e incentivos de adesão importa não apenas para obter mais cooperação, mas também pela possibilidade de reduzir as desigualdades federativas.

Segundo Wright (1988, p. 232), a adesão de governos locais aos programas federais costuma obedecer os seguintes passos e procedimentos: a) interesse como função de necessidade percebida vs. disponibilidade de financiamento; b) capacidade administrativa para desenvolver a candidatura e a estimada probabilidade de sucesso nesse processo; c) agências federais avaliarem as candidaturas, por meio de extensos e complexos critérios, visando medir necessidades, capacidade de implementação, inovação e benefícios.

Em pesquisa realizada com gestores municipais americanos, Kane (1984) avaliou os aspectos que mais dificultaram o acesso aos programas federais para o repasse de recursos financeiros. Estes foram: clareza das interpretações de normas dos federal grant administration, falta de prontidão das agências em ajudar a explicar as normas, a papelada envolvida na solicitação, processo de aprovação e tempo de tramitação desses três itens. Essas questões geram o que Pressman16 (1975, p. 120-125) chama de “expectativas não cumpridas” na avaliação dos governos que são potenciais destinatários dos programas, pois creem existir uma distância entre a promessa e a performance da ajuda federal. Assim, “diretrizes administrativas podem apresentar aos participantes oportunidades bem como problemas”.

O mesmo vale para avaliar se os requerimentos federais inseridos na administração de programas de grants and funds beneficiam as capacidades administrativas (padrões de gestão de pessoas e organização dos governos locais). Conforme a pesquisa acima, as respostas “não, exceto em certas circunstâncias” e “não, de modo nenhum” somaram quase 75%. Esse estudo mostrou que a maior parte dos administradores municipais optou contrariamente à adesão aos

16 Este obra de Pressman segue a pesquisa anterior realizada em Oakland que resultou no conhecido livro Implementation de autoria de Jeffrey Pressman and Aaron Wildavsky (1973) e se tornou uma referência seminal no campo de estudos de implementação de políticas públicas.

programas em função das características de suas regras de acesso.

Para Agranoff e Radin (2014, p. 13), se as demandas legais e formais dos programas federais são revertidas em desenhos mais hierárquicos, podem não surgir métodos apropriados de planejar arenas intergovernamentais com mais possibilidade de barganha. Essa situação, para Elazar (1972, p. 219-221), costuma gerar "squeak points" (pontos de rangido) que decorrem do controle burocrático em ações concebidas sem consulta prévia. Esta centralização pode criar pouco alinhamento aos interesses locais e dificultar a obtenção de vínculos federativos mais cooperativos (DERTHCIK,1972). Para Pressman (1975), a busca de controle dos níveis superiores e a intenção de autonomia das esferas mais baixas de governo constituem vários trade-offs no interior dessas relações, e esses podem determinar o perfil de uma política e sua operacionalização por meio de programas. Esses são aspectos que influem e/ou dificultam a assimilação subnacional de certas iniciativas federais.

É nessa linha que, para Grodzins (1984, p. 66), "o escopo do plano e a ação de administradores nacionais em direção aos problemas afeta enormemente a atitude com a qual administradores [subnacionais] engajam-se em atividades de planejamento". Segundo Agranoff (2001, p. 39), a ideia “de governos capazes trabalhando juntos como um meio de manter a federação” pode se deparar com a distância entre o formato de programas e a dificuldade de aderência pelos entes subnacionais". Por isso, para Wright e Stenberg (2007, p. 452-453), "o desafio da administração pública consiste [...] em direcionar os “evangelhos da eficiência” para os fins constitucionais do governo limitado”. Este é um desafio para compatibilizar a autonomia política dos entes com a melhora na sua eficiência gerencial.

Empiricamente, a questão é identificar quem decide e controla as regras de acesso a essas políticas/programas, pois isso determina o escopo, rigidez/flexibilidade e as condições da barganha e negociação entre os níveis de governo. Esse é um ponto essencial para analisar o give and take (Pressman, 1975) e o processo de intercâmbio entre governos autônomos, bem como o grau em que programas intergovernamentais são alinhados entre os entes federados. A hipótese é que todos os níveis de governo significativamente participam em todas atividades de governo como critério de análise da cooperação federativa. Mas, nesse particular, a visão da esfera central pode se deparar com diferenças na maneira que os níveis subnacionais compreendem os programas existentes. As distintas percepções e leituras sobre os programas podem gerar dificuldades na sua implementação e alcance de resultados.

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