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I. A DINÂMICA CONSTITUTIVA DA VONTADE

3. A VONTADE NA PÓS-MODERNIDADE

3.2. JEAN BAUDRILLARD: A TRANSMUTAÇÃO DO DESEJO

3.2.3. O desejo de declinação da vontade

Em suas reflexões mais recentes sobre a questão da vontade, Baudrillard aponta que vivemos hoje uma declinação generalizada das vontades; ou seja, a dinâmica volitiva do homem contemporâneo consiste em abdicar de sua vontade própria e de um sentido próprio para si.194 Para que isto aconteça, devo fazer com que o outro tome o lugar do meu querer, ou seja, que o outro queira por mim. Quero o que o outro quer.

193 IDEM. Ibid., p. 138

Ocorre, contudo, que, como esta atitude tornou-se generalizada, o outro faz também o mesmo que eu. Isto traz como conseqüência que o querer passe a se instalar num outro lugar que não o meu e nem o do outro. A vontade passa a vir de outro lugar – do estranho: um “outro” além de mim e do outro. Surge o “outro estranho”, o “outro de todo lugar”, de todo acontecimento, de toda ocasião. Não o outro de carne e osso, a quem poderia dirigir-me como um alguém, mas o “outro” suposto, que catalisa a declinação de todas as vontades. Este “outro estranho” possui o artifício e o poder de estar supostamente presente em qualquer um que não seja eu mesmo. O resultado é a vontade- como-outro de forma suposta. Não se sonha mais os próprios sonhos, mas o que os outros sonham. Não se crê por si mesmo, mas se crê nos que crêem.195 O essencial do querer fica invertido como o imperativo a sermos incorporados à forma estranha de qualquer acontecimento, de qualquer objeto ou fortuidade, visto que nunca saberemos qual é nossa vontade própria. Se a vontade não possui sua sombra, seus próprios vestígios, torna-se imperativo que adotemos alguém para seguir ou que tenhamos alguém a nos seguir.

É como se o querer, o poder e o saber não fossem abandonados, mas relegados a uma segunda instância. Somos capazes de ver somente aquilo que já foi visto por outros, por meio de telas, fotos, vídeos, reportagens. Que a máquina enxergue por nós, e quem sabe, que os computadores decidam por nós. E assim como o desejo deixa de ser uma necessidade, o prazer deixa de ser uma satisfação.

A este respeito, Baudrillard salienta que torna-se difícil analisar realidades cont emporâneas como a mídia e o mundo da informação por meio de categorias tradicionais da filosofia do sujeito como a vontade, a representação, a escolha, a liberdade, o saber e o desejo, pelos simples fato de que na mídia e na corrente da informação tais categorias são tornadas contraditórias e o sujeito não tem como manter a sua soberania.196 Na dimensão das categorias filosóficas aprendemos sobre a lei moral que acaba nos sendo um imperativo nos dizendo que sempre saberemos quais são a nossa vontade e o nosso desejo. Mas na dimensão da informação, este princípio ora é ignorado, ora é distorcido, embaralhado, retirando de todo sujeito o direito de dispor do seu próprio corpo, do seu próprio desejo, escolha e liberdade. Mas, segundo Baudrillard, este senso moral perdeu seu élan para a mídia e para a tecnicidade porque ele sempre foi um ideal do filósofo no mundo hipotético. Sob o ângulo do mundo prático, o senso moral também é um alienação, num certo sentido, pois requer do indivíduo que ele se pense como outro.

195 IDEM. Ibid., p. 176

O universo midiático na verdade foi um resultado de uma estratégia secreta da massa pretensamente alienada que consiste na recusa da vontade,197 ou seja, um desafio involuntário que recusa qualquer exercício da vontade, do saber e da liberdade como pregada pela filosofia. Como esta recusa não pode ser mais chamada de revolução, podemos chamá-la de devolução massiva, ou uma delegação massiva de poder e de responsabilidade. A visão de Baudrillard é surpreendentemente otimista quanto a este fenômeno. Esta delegação massiva a aparelhos políticos, intelectuais, técnicos e operacionais, não é praticada por alienação ou servidão voluntária, mas em nome de uma outra “filosofia” soberana da não-vontade, de anti-metafísica cujo segredo consiste em que as massas – o homem – sabem profundamente que não têm de se pronunciar sobre si mesmas ou sobre o mundo, e que não precisam querer nem saber ou desejar, exceto viver em uma corrente da transferência do desejo para outrem. Esta desilusão do próprio desejo, da própria vontade é uma estratégia de investimento irônico em direção aos outros. Uma forma de empurrar uma “batata quente” para frente continuamente, e se houver alguém que se julgue destemido o suficiente para segurá-la, a dor de fazê-lo será só dele.

E quem são os que se prontificam a segurá-la? Os tenentes do conceito, do desejo e do gerenciamento – a saber, os publicitários, os informatas, os políticos, os intelectuais.198 Na ótica das massas, estes são aqueles que sempre estarão lá para lhes dizer o que querem, e elas assumem alegremente este jogo massivo de transferência de responsabilidade exatamente porque, pura e simplesmente, não é evidente nem interessante saber, querer, poder, desejar. Mas entre todos estes “tenentes” impositivos, os mais audaciosos são os filósofos. Foram eles que criaram este senso ignóbil de imperativo de escolha que, ao fixar o homem ao exercício da sua vontade, nada mais faz que mergulhar o homem no desespero. Pode até ser lisonjeiro para a consciência presumir-se como aquela que sabe e aquela que quer; mas nunca conseguirá ser sedutora, atraente, como o é o inconsciente, a consciência obscura, mas contudo vital, da qual todo desespero da vontade depende para ser feliz. O que mais fascina a consciência não é o seu poder de saber, mas o não saber o que quer, o estar livre da escolha e ser desviada de sua própria vontade objetiva.

Assim, para Baudrillard, vale mais a pena entregar-se a qualquer veleidade insignificante do que ficar dependurado na própria vontade ou na necessidade de escolher:

“Não só as pessoas não têm, certamente, desejo de que se lhes diga o que querem, como não têm sequer, certamente, desejo de sabê-lo, e também não é certo que tenham desejo de querer. Face a uma tal solicitação, é o seu gênio maléfico que lhes sopra, no fundo, que devam entregar-se ao aparelho publicitário, ou informativo, com a preocupação de

197 IDEM. Ibid., p. 81 198 IDEM. Ibid., p. 82

as ‘persuadir’, de lhes fabricar uma escolha (ou à classe política, com a preocupação de ensinar as coisas). A massa sabe que não sabe nada e não tem desejo de saber. A massa sabe que não pode nada e não tem desejo de poder. Censuramos-lhe violentamente esta marca de estupidez e de passividade. Mas não é, de modo algum, assim: a massa é muito

snob – delega soberanamente a faculdade de escolher noutra qualquer pessoa, por uma

espécie de jogo de irresponsabilidade, de desafio irônico, de não-vontade soberana, de manha secreta.”199

Dessa forma, para Baudrillard, o papel dos políticos, dos intelectuais e todos os herdeiros das luzes filosóficas é o de gerirem por procuração o enfadonho negócio do poder e da vontade. Em sendo assim, a massa alivia-se de sua “necessidade de transcendência” e lucra maior prazer e, como bônus ainda ganha o espetáculo de assistir as peripécias que exibem aqueles que se propõem a segurar a “batata” o mais tempo possível. Expectadores dos privilegiados, isto é tudo que as classes estatutárias terão por parte das massas. Fará isso, as massas serão indiferentes e desprezíveis até o fim. Baudrillard perscruta o palpite de que o nosso verdadeiro inconsciente esteja talvez no poder irônico da desistência, do não-desejo ao contrário, do não-saber, do silêncio, que poderá talvez absorver todos os poderes e expulsá-los, expulsar todas as vontades, todas as luzes. Sob esta perspectiva, o inconsciente pode ser visto agora, não como feito de pulsões próprias e recalcadas e sim como uma alegre expulsão de todas as estruturas constrangedoras do ser e da vontade. A massa, para Baudrillard, é detentora de uma estratégia delusiva, ilusiva, alusiva, correlativa de um inconsciente finalmente irônico, alegre e sedutor.

O efeito desta dinâmica é a perda do mistério na vontade e o surgimento de um modelo cúmplice de desaparecimento: o outro é necessário para que eu desapareça como vontade. Trata-se de uma forma de obrigação simbólica que se estabelece. Uma forma enigmática de ligação e de desligação. Todos desaparecem, mas sob a efígie paradoxal da individualidade. Todo este mecanismo, observa Baudrillard, não tem nada de inocente.200 Ele é criado a fim de que a responsabilidade de assumir a totalidade das condições de vida não fique a cargo da autarquia individual, como queriam o cristianismo, a modernidade e o existencialismo, mas seja circulada e transferida a todos. Ao indivíduo deve restar apenas o que é seu: o seu segredo e seu mistério201, que está em outro lugar que não na vontade.

Mas, assim como ocorreu na falácia da promessa tecnocrata de que, com a expansão da tecnologia, o homem teria cada vez maior tempo livre para gastar consigo mesmo, quando na verdade acabou-se fazendo com que o homem preenchesse todo tempo livre ganho com mais

199 IDEM. Ibid., p. 82

200 IDEM. A transparência do mal – ensaio sobre os fenômenos extremos. Op. cit., p. 179 201 IDEM. Ibid., pp. 176 a 177

tecnologia; da mesma forma subsistimos hoje sob a alegação de que a transferência da vontade possibilitará que cada indivíduo se libere de volta ao seu próprio mistério e sedução. Mas no fim, adverte Baudrillard, “não sobra muito espaço para a sedução, já que hoje o outro não tem mistério para si mesmo na medida em que todo o mundo está diabolicamente ‘ciente’ de si mesmo e de seu próprio desejo.”202 Isto torna a liberação por meio da declinação da vontade, uma falácia. Mas, no entender de Baudrillard, esta falácia não se deve ao mecanismo como tal e sim à persistência do mito moderno de que tudo que vem do sujeito, e não do outro, é melhor. O mito nos faz crer que o poder, a vontade, o saber, o desejo – tudo o que ocorre, se vindo do sujeito, e por ele, é bom, é autêntico, é liberdade. O que vier de outra parte é inautêntico, alienação, perda de liberdade.203

Se esta crítica procede, toda vontade de liberação e de emancipação atualmente, que vise a uma autonomia maior, ou seja, a uma percepção aprofundada de todas as formas de controle e coerção sob o signo da liberdade, será vista como uma forma de regressão, pois o próprio é negativo.

A estratégia da vontade contemporânea é crer que é sempre melhor ser controlada por outrem do que por si mesma. É melhor ser oprimido, explorado, perseguido, manipulado por outrem do que por si mesmo. Da mesma forma, é melhor ser feliz, ou infeliz, por outrem do que por si mesmo. Em suma, na vida, é melhor depender de algo que não depende de nós. Esse paradigma da vontade contemporânea tem como pressuposto a fé de que, ao fazer assim, me libero de qualquer servidão. Não tenho que me submeter a algo que não depende de mim, inclusive minha própria existência. Dessa forma, libero-me da vida e libero-me da morte. A sutileza da vontade contemporânea, para Baudrillard, é o fato de crer que não vivemos de nossa própria vontade, de nossa própria energia, mas da vontade de transferi-la, de devolvê-la ao outro como forma estratégica. Assim, “quem entrega a outrem o fato de querer, de crer, de amar, de decidir, não está usando de renúncia e sim de estratégia: fazendo dele o seu destino você lhe subtrai a energia mais sutil. Entregando a algum signo ou acontecimento o cuidado de sua vida, você lhe subtrai a forma.”204 É como a estratégia da criança que, ao aceitar ou se submeter complacentemente à bandeira de que ela não tem vontade própria, move-se no universo adulto como uma presença sutil e mortífera. A criança é o outro do adulto, porque é o destino, a forma infusa mais sutil do adulto e, ao mesmo tempo, nega-o de modo inexorável, movendo-se com a graça de quem não tem nenhuma vontade própria.

202 IDEM. Ibid., p. 177 203 IDEM. Ibid., p. 178 204 IDEM. Ibid., p. 179

Estas considerações aproximam Baudrillard do cinismo, tanto individual como o das massas. A atitude cínica aqui é caracterizada como a estratégia de deixar-querer, deixar-crer. Esvazia-se a si mesma da própria subjetividade e palavra, de sua própria essência. Para Baudrillard, a vontade cínica deixa que creiam que ela é alienada, porque aquele que deixa pensar é sempre superior àquele que pensa e que faz pensar. O cínico é como aquele que tem um artifício que lhe é congênito ou um estado de ser. O cínico sabe que ser homem não é despojar de sua máscara – quando por trás dessa máscara não há rosto nenhum. O que o cínico espera do homem é que tome consciência do artifício de seu estado, de que está condenado ao artifício, e que o confesse. O cínico contemporâneo quer acrescentar sua máquina particular ao sistema de máquinas e objetos maquinados, com um pouquinho mais de simulação e de facticidade, e com isto, consegue frustrar a maquinação. Quando todos buscam um suplemento de alma, o cínico busca um suplemento de máquina. Quando buscamos um suplemento de significado, o cínico busca um suplemento de artifício de reproduzir com exatidão a banalização do mundo. O cínico é cada vez menos desejo e cada vez mais próximo do nada do objeto.