• Nenhum resultado encontrado

I. A DINÂMICA CONSTITUTIVA DA VONTADE

3. A VONTADE NA PÓS-MODERNIDADE

3.2. JEAN BAUDRILLARD: A TRANSMUTAÇÃO DO DESEJO

3.2.4. Vontade ilusória x vontade da ilusão real

As reflexões anteriores de Baudrillard quanto ao desejo e à vontade não o impediram de tecer uma certa elaboração metafisicamente compreensiva quanto ao tema. Baudrillard opta em dizer que o mundo como tal é uma imperfeição radical pois, “se tudo tivesse sido perfeito, muito simplesmente o mundo não existiria. O que nos assegura da existência do mundo é seu caráter acidental, criminoso, imperfeito. Ele não pode ser dado senão como ilusão.”205 Ora, se este é o dado fundamental, o acidente do mundo, tudo o que se afasta da verdade deste dado será um fantasma justificativo.

A partir desta compreensão básica, podemos ter duas reações humanas episódicas possíveis: por um lado, a que desejará estabelecer causalidades, inteligibilidades (fantasmas), ordem, verdades, o ser, a ‘realidade’, ciência, metafísica, etc. E por outro lado, a que desejará perseguir esta ilusão básica do mundo, seu niilismo, o aparente, as aparências, as ilusões, o ludíbrio objetivo, o devir, a mudança. Baudrillard aponta que ambas as vontades estão subordinadas a uma vontade maior, suprema, mais profunda – a vontade ilusória presente em tudo, na própria base de toda realidade, potência suprema, devastadora do mundo. Tudo o mais que reagir a esta vontade suprema que empurra, puxa e devasta tudo, será uma ilusão de menor instância, reparadora, um suplemente

artificial, um excesso secundário, supérfluo, pois nunca equivaleremos por um ato da vontade à irrupção acidental do mundo.206

O mundo já possui ordem e desordem por si próprio e não necessita de projeções extras. Em outras palavras, não podemos transformá-lo mais do que ele se transforma a si próprio. Já há uma instabilidade, uma reversibilidade natural no mundo e este caráter básico coloca nosso senso de transgressão e de destruição fora de nosso alcance. Nossa vontade de destruição nunca equivalerá à destruição acidental do mundo. Nossa destruição é artificial. Não podemos acrescentar nada ao nada do mundo porque fazemos parte dele. Tampouco podemos acrescentar algo a sua significação porque ele não a tem. O excesso pertence ao mundo a não a nós. O mundo é excessivo e soberano.

Num certo sentido, o mundo nos educa e nos protege da ilusão de nossa vontade que geralmente se expressa no desejo e na crença. Nossa vontade pode correr o risco de ser comparada a uma gravidez nervosa ou a uma prótese desnecessária. Assim, a vontade não é de outra ordem senão a do desejo.207 A vontade procura despeitar o caráter acidental do mundo e se insere como um encadeamento inesperado, mas no entanto, perpetua o acontecimento do mundo e lhe precipita o curso.

A proposta de Baudrillard para a vontade é que ela abrace para si tanto o gratuito como o trágico e procure furtar-se ao máximo do ditame da decisão. Se assim for, reencontrar-se-á com o universo onde tudo é feito de acidentes felizes ou infelizes. Não experimentará nem falta, nem remorso e se tornará sensual. Contentar-se-á em declinar a sua vontade e o seu desejo, num respeito ao enigmático da existência, visto que esta nos foi dada como prêmio de consolação e não deve ser acreditada. Portanto, a vontade é aquilo que não devemos admitir. Foi nos dada como uma ilusão a um sujeito autônomo. Igualmente, o real é aquilo que não devemos admitir pois foi-nos dado como simulacro.

Ocorre que a corrente do mundo decisionista criou um império que se amplia sem cessar, a ponto de já não sermos mais livres para não querer. Temos que querer mesmo quando não o desejamos. No mundo atual encontramo-nos na absurda situação de dever decidir acerca das coisas que não sabemos nada nem queremos saber. O desejo, a liberdade, a escolha, se tornaram uma forma acabada pelo próprio senso que proclama que a vontade é ilimitada sob a ilusão de uma

206 IDEM. Ibid., p. 33 207 IDEM. Ibid., p. 34

determinação individual própria.208 Para Baudrillard, na ‘lógica’ do universo, tanto na biologia quanto no âmbito das vontades humanas reina a mesma ordem, a saber, uma regulação que é ao mesmo tempo aleatória e automática. Tanto as vontades no universo quanto a distribuição dos sexos na nascença e a opinião de milhões de indivíduos – tudo conduz a uma mesma natureza estatística. Neste sentido, torna-se inútil querer substituir a vontade do homem ao curso aleatório das coisas visto que, no fim, sempre restará a glória e o fracasso último da ordem natural.209

O que é característico no homem é que ele deseja querer, da mesma forma como deseja crer e deseja poder. Isto ocorre porque a idéia de um mundo sem vontade, sem crença e sem poder nos é insuportável. Mas queiramos ou não, na maioria das vezes, a concretização das coisas ocorrem e nossa vontade apenas as verifica. Neste sentido, para Baudrillard, a operação involuntária do desejo precede qualquer idéia excedente de vontade. A vontade sempre sofre de uma metalepsia. Ela não é anterior, mas posterior. O que geralmente ocorre é uma encenação retrospectiva ao acontecimento, como nos sonhos. Os acontecimentos possuem, portanto, um elemento fatal, aniquilador, inadvertido.

Mas apesar deste caráter irredutível dos acontecimentos, também é fato que não podemos deixar de desejar, de querer. Quanto a isto, Baudrillard diz o seguinte:

“Porque é que deveríamos desejar? Não podemos não o fazer. É preciso que contribuamos pelo desejo ou pela vontade para o cumprimento de um mundo com que eles não têm nada a ver. É o nosso contributo involuntário para o nosso próprio destino. No homem, esse impulso é tal que, segundo Nietzsche, com medo de nada desejar, ele prefere o desejo do nada – tornando-se assim, através da manifestação de uma vontade sem objeto, o agente mais seguro dessa continuidade do nada que é o prolongamento do crime original”210

Em outras palavras, Baudrillard parece indicar que, a se levar a sério o caráter cômico da vontade humana, os termos da pergunta filosófica deveriam ser invertidos: ‘Por que é que há nada em vez de alguma coisa?” A questão torna-se então, não “De onde vem a ilusão?”, mas “De onde vem o real?”. Como é que este efeito de “real” é possível? Para o homem, este é o verdadeiro enigma.. Dito de outro modo, se o mundo fosse real, por que motivo é que ele não era desde há muito tempo racional? Se tudo é afinal ilusão, como é que torna-se possível engendrar um discurso do real e do racional? O real, tornado inteligível, coloca à razão, que dele faz parte, uma questão insolúvel: o que é que faz com que possam funcionar os conceitos de realidade, de objetividade, de

208 IDEM. Ibid., p. 35 209 IDEM. Ibid., p. 36 210 IDEM. Ibid., p. 36

verdade, de causalidade, de identidade? Ou seja, novamente a pergunta: ‘Por que é que parece existir alguma coisa em vez de nada?’ Por que é que há vontade em vez de não-vontade?211

Diante deste quadro, Baudrillard afirma afinal que tal vontade não procede. Não há vontade nem real. Não há coisa alguma. Há nada, ou seja, tudo o que há é uma perpétua ilusão de um pressuposto objeto não captável e de um sujeito que crê captá-lo. A ilusão de uma coisa e de uma causalidade racional. Esta ilusão é confortante para o nosso intelecto, mas inimaginável em qualquer outro universo que não do âmbito humano, como por exemplo, o universo microfísico. Segundo Baudrillard, portanto, a ordem da vontade e a ordem do mundo são irreconciliáveis. O único senso de ligação que há é o senso insistente da significação que persiste lidar com o mundo por meio do que ele significa para nós. O mundo, por sua vez, continua em sua continuidade secreta, não sendo nada e não significando nada. Nem mesmo é possível uma dialética entre estas duas ordens. Elas são irremediavelmente incomunicáveis.

Jean Baudrillard possui um teor analítico que oscila entre a descrição e a ironia, fazendo com que da união destas se produza um impacto maior na abordagem sem perdas para a compreensão. Ele é um tanto mais cauteloso e apenas ligeiramente menos indulgente quanto à vontade. Apenas em sua faze mais recente Baudrillard se debruça sobre a condição ontológica da vontade, numa visão fatalista conseqüente da perspectiva de seus trabalhos anteriores que se ocuparam com o quê o homem se tornou no mundo contemporâneo. Apesar de mostrar as peripécias e proezas da atitude contemporânea em tentar diluir o peso da responsabilidade através de uma declinação contínua da vontade pessoal e sua conseqüente transferência às mãos do outro como uma corrente sem fim, acaba considerando tal atitude como bem mais humana e mais aceitável. Sua crítica, apesar de culminantemente cínica, fatalista, não o impede de se render a um otimismo subjacente: a declinação da vontade, a circulação da responsabilidade, a apologia da fruição e fluidez do desejo, e a perpétua transferência das formas volitivas levarão a bom termo a nossa sorte.212

ó

ó

ó

Acompanhamos até aqui as peculiaridades envolvidas no drama da vontade e sua trajetória até nossa contemporaneidade. Conforme indicado atrás, nossa tese quanto aos rumos trilhados nesta trajetória pleiteia que a vontade sofreu um processo paulatino, mas determinado, de desmoronamento. Mas não como um desmoronamento aleatório, acidental, fortuito, e sim uma

211 IDEM. Ibid., p. 38

gradativa mudança intencional com vistas à redução da vontade ao nível do desejo. Antes de situarmos melhor esta questão, entendamos os elementos que queremos apontar neste processo de redução:

a) A pós-modernidade, apesar de se apresentar como uma fluidez efêmera e labiríntica de um grande número de tendências, manifestações e anseios, acabou desembocando em uma base concatenadora comum, a saber, a busca de redução da vontade ao nível do desejo;

b) A partir desta base, as tendências pós-modernas supõem ter alcançado afinal uma indistinção entre vontade e desejo;

c) A implicação desta base para a fé reside no fato de que, com o abandono da crença nas propostas meta-narrativas e o subseqüente descrédito de suas competências para encaminhar os anseios de libertação, foram os desejos que passaram a assumir, ou devem assumir, toda a dinâmica e todas as esferas da estrutura volitiva. Este é o “projeto” libertador da aspiração pós-moderna. A fé em construções históricas foi substituída pela fé no desejo. Para a pós- modernidade, é o desejo que liberta e tem o poder de nos arrancar das polarizações que a história ocidental inscreveu no desejar, e o ápice de expressão desta polarização controladora sobre o desejo foi exercido pela modernidade.

Conforme a trajetória da pós-modernidade, vimos que desde o início houve um elenco enorme de desejos, vontades e intenções. Apesar de reunir um número expressivo de complexidades, a crise da vontade na contemporaneidade pós-moderna esteve desde o início mergulhada num dilema central e tenso, tendo diante de si a encruzilhada entre a crença e a descrença, entre a reinvestida ou a desilusão, a renovação da confiança ou a desilusão total, radical, final. Mas em torno de que? O que estava em cheque era a civilização praticamente em sua totalidade. Inicialmente, houve os que insistiam na possibilidade da renovação e recondução. Almejavam alvos definidos de transformações e superações de realidades, como a recuperação dos impulsos essenciais da modernidade, não importando as diferentes maneiras em que isso era buscado. Para estes, desde a década de 30, ainda havia sentido a criação de vanguardas que pudessem ratificar os verdadeiros ideais do modernismo, reaver suas verdadeiras bases e recobrar suas questões mais caras e críticas, enfim, colocar o espírito da modernidade de volta nos eixos nas mais variadas áreas.

Acreditava-se no poder da ação e sua capacidade para criar coisas novas objetivamente. Foi assim que Onís sonhou seu ultra-modernismo. Foi nessa fé que se sonhou com a descolonização do

terceiro mundo, pois vários países estavam conquistando tardiamente suas independências.213 E assistimos grandes manifestações dos anseios para reverter, na maioria dos países, o processo que fazia aumentar mais e mais as quantidades de povos que já nem mais podiam ser considerados pobres e oprimidos, mas sim relegados e excluídos. E foi com entusiasmo que a contracultura, a esquerda estudantil, o movimento antibelicista e o movimento pelos direitos civis dos negros creram no poder da mudança. E só se podia crer em tais realizações porque, antes de tudo, a vontade acreditava-se em si mesma. Foi nesta confiança que apareceram clamores a que se reduzisse a valorização do tecnologismo para que preocupações mais essenciais ou esquecidas pudessem reocupara seus lugares, apesar de muitos estarem apaixonados pelo que a técnica prometia. Também surgiram desejos de busca por uma democracia autônoma e independente que pudesse aflorar a partir de dentro da própria democracia velha. Foi a fé na ação que movia a busca a uma sociedade nova além do comodismo. Também as teorias e pensamentos eram utilizados como ferramentas de ajuda nos projetos da vontade.

Do outro lado ficaram os céticos e descrentes. Nas ruínas escabrosas de sangue e dor deixadas por duas grandes guerras, nada mais restava como digno de crédito, nada mais a fazer a não ser desiludir-se totalmente: nenhum sentido predominante de verdade era mais possível ou digno de confiança. Não havia como continuar a crer no nacionalismo, muito menos no industrialismo, na tecnocracia, cada vez mais desenfreada e cruel. Foi com este desgosto que se desiludiu o historiador Toynbee. Olson também afirmava que não havia mais nenhum caminho a não ser no espaço da individualidade: só nos resta o valor da semente presente na individualidade. A rigidez das normas deve ser substituída pela prática contínua da crítica.

Isto tudo foi o que observamos na trajetória de anseios desde as primeiras ocorrências difusas e profusas do que se chamava ‘pós-moderno’ e que, passa a passo, foram se delineando e adquirindo contornos mais nítidos no apogeu de seu movimento. Houve os que, como Fiedler, alimentavam grande expectativa a que se chegasse a uma espécie de amálgama entre a seriedade moderna e o novo desinteresse, entre a luta e o descaso, entre a lucidez e a alucinação, entre arte e vida cotidiana. Mas nem mesmo isso aconteceu. A descrença por fim triunfou. Mas há várias maneiras possíveis de descrença e desilusão. O sociólogo Wright Mills a batizou de impulso cego, conformista, disposto a abandonar não só a razão mas também a liberdade. Perdia-se a chance de recriar a autonomia e independência da democracia. Surpreendentemente, ao invés de perdurar a estagnação econômica, o período pós-guerra deu lugar a um grande aumento da prosperidade, que para Howe, foi o elemento que faltava para o atolamento completo dos verdadeiros ideais modernos

e seu enterro final na ficção da prosperidade, do consumo, da promiscuidade dos valores com o comércio. A publicidade se tornou um superpoder capaz de absorver e transformar qualquer elemento cultural em lucro e mercadoria. O pós-moderno, por sua vez, efetuou sua cartada final ao se atolar em seu próprio popularismo, pragmatismo e indeterminismo. Foi o que Hassan acabou confessando:

“O pós-modernismo carece, na verdade, de um pragmatismo mais consistente e ágil, íntimo com os desejos humanos, com a astúcia de nossas crenças. Mas o próprio pós- moderno mudou, dando, a meu ver, uma guinada errada. Encurralado entre a truculência ideológica e a ineficácia desmistificadora, preso no seu próprio popularesco, o pós- moderno tornou-se uma espécie de zombaria eclética, a lascívia refinada de nossos prazeres roubados e descrenças fúteis.”214

Seja como for, se há ainda alguma tensão ou situação de dilema presente na pós- modernidade, ela foi transposta para a dinâmica do desejo. A trajetória da pós-modernidade culminou numa junção intensa entre a busca de prosperidade ou bem-estar e a busca do vulgar, da liberação dos instintos mais básicos. Em outras palavras, presenciamos o renascimento do desejo – mas não o desejo pretensioso, de sentido amplo e construtor de grandes perspectivas, mas o desejo de investimento pessoal, promissor em seu caráter libertador, circunstancial e imediato. Não o desejo visionário, mas o desejo festivo que vive do cultivo de suas próprias irrupções impulsivas do mundo cotidiano. Não o desejo realista, naturalista, atraído pelo verde, mas o desejo hiper-real, eufórico e espetacularmente tecnologizado, cibernético, virtualizado, computadorizado, midiático, imagético, televisivo. Nas palavras de Hassan, é o desejo distribuído pela tecnologia da sedução e da força, que violenta os desejos que poderiam ser locais.”215 A reserva de oposição crítica moderna ficou para trás, exceto o ímpeto de crítica ao erudito e à tradição e a apologia do popular que deve saquear a alta tradição.

Na prática, isto pode ser observado no mecanismo esquemático desempenhado pelo uso do prefixo pós. O pós do termo pós-moderno não é utilizado para significar uma realidade objetiva, visto não haver mais este interesse. O que se quer expressar com o “pós” por parte daquele que utiliza o termo “pós-moderno”, é a expressão de seu desejo, situado no meio do mar da circunstancialidade ocasional. Não se trata de um prefixo causal, conceitual e de pretensão objetiva, mas um recurso cujo objetivo é provocar um impacto em nome de um desejo, seja ele qual for, coerente ou não, contraditório ou não, já que a coerência não é pré-requisito na lógica do desejo. Assim, quando alguém se declara pós-moderno, está querendo sugerir que a lógica mais importante que o move não é a do conhecimento, nem mesmo aquela da vontade que inclua sentidos de

214 HASSAN, Ihab. The postmodern turn – essays in postmodern theory and culture. Op. cit., p. xvii 215 IDEM. Ibid., p. xvi

totalidade, mas a lógica do desejo – o desejo pressuposto em sua forma mais “pura”, direta e imediata – o desejo pulsional. Como vimos, Hassan logo reconheceu este “mecanismo” básico na pós-modernidade que presume reduzir o vivido à esfera do desejo, cuja redução freqüentemente se manifesta em formas pós-modernas típicas. Chamou-o de “encadeamento pluralista caracteristicamente pós-moderno”.216 Tal mecanismo presente nas mais variadas tendências sob a efígie pós-moderna é o que torna possível reconhecê-las todas sob um único jogo intencional – o de permanecer na indeterminação, na imanência e na imediatez do desejo, e como tal, ele faz muito mais que ser apenas um debate ou tendência artístico-cultural.217 E o paradoxal nisso tudo, prossegue Hassan, é que seja bem provável que outras eras tenham sido tão sensuais quanto a nossa, mas “nenhuma teve uma vontade tão intensa de entender o desejo como imanente ou transformá-lo minuciosamente em um objeto de reflexão.”218

Em Lyotard, a vontade deve dar lugar ao desejo porque é exatamente no desejo que encontramos a imanência. Mas trata-se de uma imanência magnífica, de primeira grandeza, excelsa. O problema é que o desejo, exatamente por seu esplendor de caráter sublime, é tremendamente mais importante e exerce primazia em relação ao que quer que esteja aquém de sua dinâmica. Qualquer tentativa de alocação de um outro senso de vontade como co-determinante da dinâmica do desejo, este deverá ser visto como uma instância inferior, reflexa, de segunda grandeza, de segundo momento. Com relação às intensidade libidinais do desejo, a vontade não tem como querer ou não querer, pois a energia dos desejos é uma realidade em si mesma, que se basta a si mesma, com ou sem sua satisfação. Aliás, é a satisfação que freqüentemente tende a trapacear o desejo, fazendo surgir um suposto senso de falta/ausência.219 O libidinal é primário, mais básico, anterior – de nível zero. Significações, compreensões e efeitos de sentido são secundários, posteriores. Estes, apesar de ainda serem libidinais (pois tudo é sempre libidinal), são resultado de certas dobraduras e atividades na faixa libidinal que a fecha em si mesma, criando a possibilidade de polarizações, de filtragem de impulsos, dividindo-os em interiores e exteriores.

Dessa forma, tais efeitos representativos de sentido não são o ultimamente positivo. Os operadores libidinais mais primários do desejo é que são o ultimamente positivo. A fonte da força motriz da vida é o desejo – a energia libidinal em sua forma mais originária. Assim, não há linguagem ou signo algum que consiga ser capaz de dizer o desejo ou abarcar a força de sua imanência. Não há elementos do mundo real objetivo ou do mundo da representação que consigam

216 IDEM. Ibid., p. 168

217 IDEM. Ibid., p. 71; 72; 89-90 218 IDEM. Ibid., p. 66

determinar o libidinal. Ao contrário, vimos que é a energia libidinal que pode figurar ou des-figurar toda e qualquer realidade. É o desejo, em sua energia libidinal, que tem o poder de instaurar e destituir realidades, e não qualquer outra concepção da vontade. Isto porque é o desejo, e não a vontade, que tem o poder de figurar-se a si mesmo ou desfigurar-se, estabelecer sentidos ou obstruir violentamente o discurso. Esta opção pela primazia das intensidades energéticas do desejo está