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I. A DINÂMICA CONSTITUTIVA DA VONTADE

5. VONTADE E DESEJO – situando os termos

Assim como ocorre no pensamento de Tillich, em vários momentos temos a nítida impressão de que para Ricoeur a vontade é o voluntário, possuindo assim um sentido mais estrito ou até mesmo circunscrito à dimensão humana de dar sentido e ordem à realidade . É o que notamos quando a vontade é apresentada como “o que traz ordem à multiplicidade do involuntário”134. Em

outros momentos, Ricoeur considera a vontade como sendo todo o conjunto dos elementos que fazem parte e atuam intrinsecamente na dinâmica do querer – o voluntário e o involuntário, a totalidade, uma vez que tais elementos são inseparáveis e se relacionam incondicionalmente. Assim, a vontade em Ricoeur é o conjunto todo de elementos que caracterizam sua dinâmica: a necessidade, os motivos (involuntários ou voluntários), os projetos, a escolha/decisão, o esforço, empenho ou exercício, a ação (considerada sob o ponto de vista da vontade), o caráter e o consentimento (confirmação do querer, sempre necessária e contínua em todo decorrer do processo), etc.135 A vontade é uma constante gestação, articulação e regeneração de sentidos, nos quais todas as suas dimensões estão envolvidas ou implicadas.

133 IDEM. Ibid., p. 324 a 325 134 IDEM. Ibid., Op. cit., p. 9

135 IDEM. Ibid., pp. 8 a 20. Na descrição introdutória de seu método, Ricoeur reitera a noção de conjunto e de

conectividade em todas as esferas que compõem o querer ou a vontade (p. 8). Salienta a impossibilidade de fragmentação da estrutura da vontade como um todo, critica os reducionismos psicologistas e naturalistas, enfatiza a inerência do corpo como parte integrante da vontade (p. 15) e mesmo a implicação do mistério como parte desta estrutura. “Dizer ‘eu quero ou tenho vontade’ significa, ao mesmo tempo, que ‘eu decido’, ‘eu movo meu corpo’ e

O mesmo tratamento estrito e amplo também ocorre em Tillich. Às vezes se refere à vontade como uma dimensão estrita, singular ou identificada como desejos pessoais. É o caso da menção que faz na sua obra Dinâmica da fé.136 Contudo, em muitas outras ocasiões, trata a vontade como uma realidade abrangente, dinâmica, constituída de variadas dimensões, esferas e elementos, e que, apesar da distinção necessária que devemos fazer destes níveis, palavras como vontade ou intencionalidade devem ainda ser mantidas.137

Em sua crítica aos reducionismos, Ricoeur salienta em primeiro lugar que uma facticidade nunca é mera facticidade, ou o que comumente chamamos de empírico. O “empírico” sempre tem aparecido para nós ou como quase que um “deus” (positivismo), ou com desdém (romantismo, idealismo, existencialismo). O empírico-factual tem que sair destas armadilhas e não pode ser consignado a se reduzir a estados de degradação da vontade e seus disfarces nas sombras da paixão, como quis a tradição.138 “Nós vamos ocorrendo na vida com tudo o que somos e com tudo o que

vamos nos tornando.” Isto é o empírico no sentido amplo e mais correto.

Como explicação é estabelecer ou reduzir um fenômeno a fatores causais, não é correto fazer uma explicação da vontade. Tentar explicar a vontade nos faz cair em equívocos ou reducionismos, como por exemplo: “Há o involuntário e depois surge um construto chamado vontade”. Mas a vontade não é um construto. Não podemos explicar a vontade, mas podemos compreendê-la por meio de uma descrição de sua dinâmica. Descrever a dinâmica da vontade é compreendê-la.

A dinâmica da vontade nos faz perceber que há uma diferença entre desejo e vontade, mesmo em situações em que a execução da minha vontade não esteja em meu poder, seja porque dependa estritamente dos eventos ou da vontade de um outro. Em ambos – no desejo e na vontade – sei claramente do que precisa ser feito e até com uma idéia ávida, e se a execução não está em meu poder, a vontade pode ser assemelhada com desejo ou até ser confundida, pois ambos estão dependentes de uma execução alheia. Neste estado de coisas, tanto o desejo quanto a vontade estão condicionados a uma ação ou circunstância além de si. Por exemplo: projeto um passeio, mas se o tempo estiver bom; projeto um jogo, mas depende da vontade de um outro. Freqüentemente, a relação entre desejos, projetos, sentidos e decisões são extremamente complexas para um entendimento fácil. Não há como seguirmos muitos modelos, tipologias ou normas de forma fácil. Contudo, é a relação com o sentido, sempre presente em qualquer caso, mesmo os mais incomuns,

136 TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo, Editora Sinodal, 1970, pp. 27 a 29

137 Cf. TILLICH, Paul. Teologia sistemática. Op. cit., pp. 155 a 158; Perspectivas da teologia protestante nos séculos

XIX e XX. Op. cit., pp. 167 a 168

que nos permite certa compreensão e “normatividade”.139 Aliás, são exatamente tais casos

incomuns, que nos levam à consideração de instâncias extremas, os que nos possibilitam estabelecer a relação entre o projeto e sua execução mais claramente. A este respeito, Ricoeur acrescenta algumas distinções concernentes ao voluntário:

• Comportamentos automáticos (puramente impulsivos ou de ação explosiva) são voluntários quando a consciência pode reconhecer até uma intenção extremamente implícita neles, a ponto de podemos dizer, após o fato, que é um projeto potencial de uma ação adiada (ou que havia sido adiada). Isto expresso de forma negativa equivale a dizer que a demora (ocorrida) na execução do projeto não é necessária para a existência de uma decisão – a decisão ocorreu de qualquer modo;

• Inversamente, como no caso de uma ação adiada indefinidamente, a ponto de tornar-se um simples desejo, uma tal intenção permanece ainda uma decisão autêntica quando a ação que ela projeta parece estar dentro do poder de seu autor; ou seja, pode ser executada sem demora. Execução efetiva não é necessária para a existência de uma decisão.140

Os aspectos de distinções em torno de vontade e desejo nos fazem ver que “o desejado” não é a mesma coisa que querer. Esta distinção pode ficar mais clara na seguinte descrição que Ricoeur oferece sobre a estrutura tríplice da vontade:

(a) O desejado é aquilo sobre o qual decido – o projeto que formo: contém a direção da ação a ser feita por mim de acordo com minhas habilidades.

(b) Mas o projeto é irreal ou um tipo de irrealidade. Inscrevê-lo no real através da ação é a segunda estrutura da vontade. Aqui surge a relação entre atuar e ação.

(c) Contudo, há ainda um outro nível: a vontade não se resume apenas num projeto vazio e sua execução prática. Ela também se constitui no reconhecimento da necessidade que ela não pode propor nem mudar. Isto chega à nossa atenção por um desvio ao involuntário – para o que a vontade é uma resposta.

A estrutura tríplice da vontade, segundo a descrição ricoeuriana, pode ser observada no quadro ilustrativo a seguir:

139 IDEM. Ibid., p. 40 140 IDEM. Ibid., p. 41

ESTRUTURA TRÍPLICE DA VONTADE

Estes elementos estruturais agem em sentido e operação de forma conjunta, inter-relacionada e ininterrupta, ainda que, num feixe de instante, um ou outro esteja mais em evidência. A vontade é uma constante gestação, articulação e regeneração de sentidos em torno do que é estipulado como faltando em nós.

DECIDO/decisão/escolha

A decisão genuína requer a possibilidade da ação. (Aqui se encontram o voluntário: intenção do eu a algo, habilidade, hábito de algo e esforço como movimento interno intencional que se propõe a algo ou a uma mudança, e o involuntário:)

AJO (ação, movimento)

A ação é uma expressão/encarnação de uma vontade. É na ação que nos experimentamos como unidade e podemos ser inteiros. Agir sem ser inteiro não é ação, mas fuga do ato

CONSINTO

(consentimento)

Confirmação do querer (do que se quer e seu sentido) sempre necessária e contínua em todo o decorrer do processo.

PROJETO

de ação

(objeto da decisão)

MOVIMENTO VOLUNTÁRIO (execução)

Além de sua estrutura intencional típica, o movimento voluntário também implica uma referência especial às habilidades um tanto submissas que são seus órgãos, assim como previamente os motivos eram as razões para a decisão.

O que torna a fenomenologia ainda possível no nível da ação é o fato de que a ação é

extensão/encarnação de uma vontade. Uma mudança é efetuada no mundo.

Aqui estão presentes o esforço/exercício efetivo: necessidade da vontade de vencer a inércia do corporal pela ação. O esforço emite reações e retornos contínuos à consciência, e esta por sua vez, terá que subjugar também a inércia para tornar possível novas dinâmicas de pensamento. Assim, no esforço não é possível o pensamento esvaziado ou desencarnado, mas somente um Cogito encarnado.

MOTIVOS

Um motivo NÃO é uma causa no sentido eficiente -operacional. Não é efetivo e não pode ser entendido separadamente da decisão da qual é motivo. É o porquê no sentido de o que justifica o projeto.

Pode ser racionalizável ou não. Quando não é, apesar de ainda não possuir contornos e sentidos bem definidos, é forte e real o suficiente como um fogo presente na motivação da decisão inserindo conteúdos concretos e atuais. É um porquê original, o primeiro elemento estrutural que une o voluntário e involuntário.. Tanto os motivos racionalizáveis quanto os que não são, geralmente se manifestam involuntariamente, mas no entanto, são eles que tornam possível relacionar um nº. de funções como necessidade, prazer-dor, habilidades pré-formadas (instintivas), emoção, hábito, etc. ao centro de perspectiva do eu (Cogito). (Os motivos não são meramente naturalistas. São motivos de um corpo humano, de um eu quero, que não é mera coisa.)

(Também pode estar presente nos motivos o involuntário absoluto : caráter, inconsciente, o biológico, etc. Este nível absoluto de involuntário é o terminal do ato original da vontade, o que está mais escondido. Geralmente ele gera consentimento.)

O consentimento é uma região crucial e vital de reserva de sentido na vontade. É um extra gerencial. Uma instância última de contínua avaliação, controle de qualidade do processo do querer e auto- entrega a ele. Para o ser humano, não basta apenas querer e significar. É necessário que o querer e seu(s) sentido(s) tenha(m) consentimento, ou seja, nenhum querer, mesmo os mais inegociáveis, deve destituir-me ou subjugar-me por completo. É a reserva de liberdade presente na vontade. Necessidade, emoção, hábito, sentidos, afetos, determinações, ações, tudo deve ser consentido. Sem a reserva do consentimento, correríamos o risco de ficarmos colados ou submetidos definitivamente nas coisas que desejamos ou queremos.

Como indicado anteriormente, a distinção entre as esferas ou níveis presentes na vontade – motivos, projetos, deliberação, decisão, execução etc., – não se dá por questões temporais, mas por questões de sentido. Estes níveis estão o tempo todo intercalados por sentidos e a relação destas esferas podem ser instantâneas.1 Vimos também que, o corpo experimentado, por exemplo, corresponde na verdade a um comportamento da vontade. Na vontade, o corpo objetivo não é uma parte, mas um todo – um todo entre outros todos que se relacionam lateralmente, e não subordinadamente.2 Já as paixões são distorções tanto do involuntário quanto do voluntário, como veremos mais adiante.

Concluímos então que o desejo é a pré-condição de um projeto. E o projeto, por sua vez, é o meio pelo qual o desejo se predispõe a entrar em contato com o “real”. Mas de qualquer forma, dentro do quadro ricoeuriano, desejo é uma palavra que precisa ser situada, pois encerra certas esferas distintas. O desejo ora pode permanecer apenas na esfera dos motivos, ora se encontra não apenas na esfera dos motivos mas também encapsulado como projeto:

DESEJO => motivo

DESEJO => motivo + projeto

Na dimensão da decisão, podemos ter a seguinte perspectiva:

DECISÃO => motivo + projeto + deliberação / escolha – cortar a realidade.

↓ ↓ (desejo) (desejo)

Para Ricoeur, toda esta relação dentro da dinâmica da decisão é extremamente complexa, mas há o sentido sempre e é ele que nos possibilita uma compreensão mínima.3

A vontade como totalidade não é só mero desejo porque ela também participa e se relaciona com a dimensão de nossa concreticidade existencial exercendo também seu papel de “interface” das realidades. Seu caráter multidimensional lhe dá capacidade de não ter necessariamente que se limitar continuamente a um certo domínio da realidade. A vontade é a subjetividade que quer, mas que se conhece e se reconhece como querer, e isto está disponível em cada ato volitivo. Ela é

1 IDEM. Ibid., p. 38 2 IDEM. Ibid., p 15 3 IDEM. Ibid., p. 40 a 41

munida de algo diferente do mero impulso ou desejo cujo ímpeto restringe-se à dinâmica da satisfação. É este caráter global da vontade que impede que a subjetividade seja apenas desejo. A subjetividade é um conjunto de dimensões essenciais. É uma ação em exercício de liberdade, um protesto do indivíduo criativo, da personalidade, do homem envolvido na trágica situação de ter que decidir em seu estado de alienação, e mesmo a fuga da decisão já é uma decisão.