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O corpo revisitado – o corpo portador da necessidade e do mistério

I. A DINÂMICA CONSTITUTIVA DA VONTADE

3. VONTADE COMO INTENCIONALIDADE – a vontade no homem

3.2. A VOLUNTARIEDADE

3.2.3. O corpo revisitado – o corpo portador da necessidade e do mistério

Há uma questão levantada atrás que ficou em aberto: Afinal, de que modo as necessidades, no sentido estrito, se presta à motivação? Como adquirem a condição de motivos? Em termos de qual característica pode a necessidade ser um motivo no qual a vontade pode se basear ao determinar- se?

Antes de tudo, é preciso lembrar que o apetite se apresenta como uma indigência e uma exigência; uma ausência ou uma “falta experimentada de...” e um “impulso direcionado a ...”. A ausência e o ímpeto são experimentados na unidade indivisível de um afeto, de um afeto ativo, como oposto ao prazer e dor que são afetos sensórios. A necessidade é um afeto uma vez que é inteiramente uma indigência cujo impulso se dirige para aquilo que a satisfaz. Mas o que falta à necessidade? E ela se dirige para o quê? Devemos tentar perscrutar o nível da intenção não-ainda- percebida, imaginada ou conceitualizada, mas que não é, contudo, indefinida e sim específica e direcionada.88 A ausência se volta para um outro, um outro específico, embora esta direção não seja dada numa representação ou nem mesmo dada. Mesmo assim, há uma forma na ausência. É como sabermos o que é sem termos uma palavra para ela ou seu objeto em carne e osso à nossa frente, pois deve ser procurado, não em representação, pois não é dado em nenhum modo, nem mesmo como algo que sabemos estar ausente.

O imaginado, por exemplo, não é ausência pois pela imaginação já o torno presente e deixa de ser ausência. Um dado pode estar presente ou em outro lugar. Na ausência, não há ainda “água” ou “pão”. Estes já são representações. O que chamamos de ausência é antes uma ausência inquieta, alerta, uma falta ativa e direcionada. Assim, a necessidade não se restringe em ser apenas uma sensação interior. A palavra interior não implica no direcionamento ao outro que é um aspecto essencial da necessidade e de uma ‘consciência de...’ Quando estou com fome, eu sou uma ‘ausência de...’ e um ‘ímpeto a ...’. Mesmo sem uma imagem de pão, minha fome ainda me levaria além de mim mesmo.89 E a palavra sensação sacrifica o caráter tenso da necessidade que constitui a natureza não derivável básica de um afeto ativo. Psicólogos gostam de ver a necessidade como uma sensação interior sujeita à dinâmica de estímulo-resposta. O absurdo aqui está em procurar uma

88 IDEM. Ibid., p. 86 89 IDEM. Ibid., p. 87

passagem de algum tipo entre o conhecimento empírico do corpo-objeto e a consciência, e também em pressupor que tal passagem é de uma natureza objetiva, embora desconhecida.

Este preconceito deve ser quebrado em toda tentativa de abordar a necessidade. A necessidade não é uma sensação traduzindo um defeito orgânico seguido por uma reação motora. A necessidade é uma ‘falta de...’, que é uma ‘ação para...’. Uma ‘necessidade de...’ não revela meu corpo a mim mesmo, mas, através do meu corpo, revela aquilo que não está aqui e que me falta. Na necessidade sou cônscio do Eu-corpo como uma carência integral. O mundo orgânico são sintomas empírico-objetivos de uma experiência afetiva que pertence à consciência. Esta experiência afetiva tem um objeto intencional. O Eu-corpo está implicado nele apenas como o pólo-sujeito do afeto.90

Há também uma unidade entre ausência e impulso: – Eu, em minha totalidade, sou apetite, mas ao mesmo tempo um desconforto está localizado naquelas regiões que seriam afetadas quer por uma satisfação última ou por um encontro no qual o prazer sensual serve como prelúdio para uma alegria profunda. Sensações interiores relacionam a necessidade com um corpo que não meu corpo pessoal. Elas são apenas afetos sensórios ilustrando a variedade orgânica, como distinta do afeto ativo que é a minha vida, não-localizada e não-dividida, – minha vida embasbacada como apetite pelo outro. Mas o afeto ativo não é uma dor. A dor está ligada a uma agressão externa, isto é, à intersecção entre o existente e as forças da natureza. É por isso que ela estimula uma re-ação que evita ou repele o agente hostil. Em contraposição, uma certa ausência dolorosa é inerente na necessidade, prévia ao encontro com o outro. Ela se move para este encontro. É uma ausência que é ativa antes do encontro ocorrer, e é por isso que não pode em sentido algum ser assimilada num reflexo à dor, a uma aversão oculta. Esta distinção é crucial para nossa interpretação do involuntário, seus motivos, e sua relação com o voluntário.

Não podemos cair teimosamente naquela postura de que um reflexo não seja assimilável à vontade e deva permanecer um corpo estranho na conduta responsável do indivíduo. Por outro lado, é da própria natureza do impulso (que é indiscernível da ausência) não ser um reflexo, não irromper num modo irreprimível, mas ser capaz de suspensão. É por causa do ímpeto da necessidade não ser um reflexo automático que ela pode se tornar um motivo que não é inevitável. É por não ser automática que é possível haver homens que prefiram morrer de fome ao invés de trair seus amigos.91 O homem é capaz de escolher entre sua fome e algo mais. A não-satisfação das necessidades não apenas pode ser aceita mas pode até ser sistematicamente escolhida.

90 IDEM. Ibid., p. 88 91 IDEM. Ibid., p. 89

O homem é o homem por causa de sua habilidade em confrontar suas necessidades e às vezes sacrificá-las. Ora, isto deve ser estruturalmente possível, ou seja, está enraizada na própria natureza da necessidade. Embora eu não tenha o senhorio da necessidade no sentido da ausência, posso rejeitá-la em sua reivindicação de ser a única razão para a ação. O homem freqüentemente demonstra sua humanidade para além dos muros da necessidade. E faz isto tanto em situações corriqueiras quanto naquelas mais dramáticas. Basta lembrar das expedições a terras onde a água é rara ou a terras de extremo frio, ou dos testemunhos de soldados de combate – tudo isso é uma vitória sobre a necessidade.

Assim, é possível haver um homem que, constantemente confrontado com a escolha entre a denúncia e um pouco de pão, prefira a honra de vida. Como Gandhi, que escolheu não comer para que afetasse seu adversário e a visão de um povo. A greve de fome é sem dúvida a experiência rara que revela a verdadeira natureza humana de nossas necessidades assim como, de certo modo paradoxal, a castidade torna a sexualidade uma sexualidade humana. Estas situações extremas são fundamentais para a psicologia do involuntário. Necessidades podem portanto ser um motivo entre outros.

Contudo, como a necessidade está incrustada na existência do corpo, ela não pode torná-lo um motivo como os outros. A necessidade é a espontaneidade primordial do corpo e, como tal, revela originalmente valores que separa o corpo de todas as outras fontes de motivos. Através da necessidade, os valores emergem sem que eu os tenha postulado em meu papel de ação-geradora: o corpo segreda o poder de ser, a vitalidade primordial. “O pão é bom, o vinho é bom.” Mas antes de os querer, um valor já apela a mim e me atrai somente porque existo em carne e osso. E esta minha existência como uma realidade no mundo, se revela a mim pela ausência.92 A necessidade mostra que um sistema de valores não pode ser deduzido a partir de uma necessidade puramente formal de coerência interna, nem a partir de um puro poder auto-afirmativo da consciência. O corpo é o primeiro existente não-deduzível. A vida como valor último é a que primeiro revela os valo res.

A necessidade se presta a uma relativa integração na unidade da consciência. Em nosso conhecimento e sabedoria do dia a dia estamos quase sempre na intersecção de nossa vontade e as necessidades. Com estas considerações quanto ao modo pelo qual as necessidades se prestam à motivação, podemos então chegar à seguinte conclusão:

Uma necessidade pode se tornar um motivo somente se o conduto que assegura a satisfação de tal necessidade não for um reflexo invencível – um automatismo irresistível.

O conduto conectado com a necessidade está sujeito à direção dupla – por sinais percebidos e por tensões emitidas pela própria necessidade. O que chamamos de instinto pode também ser chamado de um “conhecer-hábil” desaprendido e relativamente completo no qual os problemas orgânicos são resolvidos e torna a invenção desnecessária, trazendo uma constância na resolução dos problemas. Mas o homem tem, quantitativamente, mais instintos, se incluirmos as novas ansiedades e novos incentivos que ele inventa, mas ele é menos instintivo se realçarmos sua perda de formas desaprendidas de conduta, começando com as habilidades que são pré-formadas mas que permaneceriam latentes se não fossem aperfeiçoadas por uma técnica adquirida.93 Esta pobreza de movimento inerente abre um campo ilimitado para toda invenção e primariamente para o conhecimento, linguagem e sinais que dirigem nossos atos em conformidade com o estilo de uma civilização.

Assim, é a representação, o conhecimento aprendido que regula propriamente o conduto humano oriundo da necessidade. É isto em primeiro lugar que desperta a necessidade à consciência de seu objeto e a levanta à dignidade de um motivo para um querer possível. Aqui a imaginação tem um papel fundamental – a imaginação da coisa ausente e da ação-alvo para esta coisa. A imaginação, aliada à percepção, tem o papel de aperfeiçoar a experiência cega da necessidade na ausência da coisa. A imaginação não pode dar carga à intencionalidade da necessidade a menos que a percepção a avalie em seu objeto e seu modo de consegui-lo. É a percepção que mostra o alimento, o líquido, etc. A necessidade, reduzida a si mesma, nem assim está destituída de intencionalidade – a ausência e o impulso são específicos. No caso do homem, se o conhecimento do objeto e dos meios não estão disponíveis para clarificar a ausência, a necessidade permanece uma aflição ou uma angústia vagamente orientada. Tal conhecimento é a experiência da satisfação da necessidade experimentada pelo menos uma vez. O lugar deste conhecimento não só está no fim do ciclo-necessidade (quando já se obteve o objeto), mas também antes do fim, no momento do encontro-sensório quando o objeto é uma presença ainda distinta do corpo. Este é o momento precioso evocado pela imaginação. Mas o momento de posse e de satisfação da necessidade suprime a representação, pois a representação é sempre representação à distância.94 A presença reforça a necessidade porque mostra o término da necessidade sem depô-la; já o gozo não é

93 IDEM. Ibid., p. 91 94 IDEM. Ibid., p. 92

ausência nem presença – é união. Agora, ao mesmo tempo em que a presença desperta a necessidade, ela lhe dá uma forma – a forma do objeto.

A necessidade chega ao seu momento mais decisivo: aquele em que reconhece seu objeto e cujo programa não mais será apenas uma ausência e um impulso surgindo do corpo, mas será um chamado vindo de fora, de um objeto conhecido. Já não sou mais empurrado de dentro para fora, mas sou também atraído por fora por algo dentro do mundo. O perceptivo acelera sua operação. Um mundo de sinais afetivos entram em ação e se anexam às qualidades sensíveis reais e se tornam indiscerníveis delas.

O percurso desta descrição das necessidades e sua relação com o corpo como ser integral nos faz ver o corpo de forma bem diferente da ciência positiva. O corpo é geralmente visto pela ciência como objeto ou coisa a ser observada empiricamente. Isto causa uma quebra entre o conhecimento do involuntário e o da consciência, e passo a passo faz toda psicologia cair no terreno das ciências naturais. Ao se tornar um fato, a experiência da consciência se torna degradada e perde suas duas características distintas: a intencionalidade e sua referência a um “Eu” que vive em sua experiência.95 Na verdade, um fato mental é uma monstruosidade: se ele pretende ser um fato, o faz somente pela contaminação a partir do corpo-objeto que sozinho tem o privilégio de ser exposto entre objetos. Mas se ele quer ser mental, só pode sê-lo por meio da recordação do experimentar consciente e por meio das margens da subjetividade ilegitimamente arrastada ao nível do fato empírico ao qual a psicologia alega tê-lo transportado.

A consciência é fato e subjetividade. O involuntário não pode ser degradado em fato empírico. Se for, o voluntário se dissipa. O “eu quero” com iniciativa pura é anulada porque não tem nenhum sentido empírico. Torna-se mera elaboração, simples conduta e perde seu status de iniciativa. Torna-se mero reflexo da objetivação empírica do involuntário. Para compreender as relações entre o involuntário e voluntário, devemos reconquistar a consciência constantemente. Corpo e alma não estão divididos. A consciência precisa ser reconquistada com novas bases. O corpo e o involuntário só podem ser descobertos no contexto da consciência. Esta consciência, este Cogito como experiência de totalidade inclui o “eu desejo”, “eu posso”, “eu pretendo” e minha existência como corpo: um Cogito integral ou encarnado.

A subjetividade é a base da homogeneidade da estrutura do voluntário e o involuntário. Há um único universo de discurso, não dois. Não há universos separados – um para o pensamento e

reflexão, e outro para os aspectos físicos do corpo. Motivação, ação e necessidade são relações intra-subjetivas. Introspecção é muito mais que “fatos mentais”. Devemos evitar reducionismos: seja a naturalização da introspecção ou a personalização do conhecimento. Esquecemos que a subjetividade é tanto interna quanto externa.96 É ela que opera os atos de alguém.

Ao deparar-me com um outro, este outro não é nem refém de minha percepção, de meu próprio corpo, nem é um dado familiar empírico do mundo. A subjetividade é formada através do voluntário e involuntário reunindo experiências derivadas de sujeitos múltiplos. Somos uma consciência transformada por outras tanto quanto algo próprio que decifra o outro. O outro é um outro eu. Assim, a subjetividade é o contato mútuo da reflexão e introspecção. Não se consegue ser “naturalista” apenas pela inversão do interno e externo. Tais tentativas degradam ambos. Assim, ver o corpo como sujeito, e que também é objeto de outro é um dualismo que não os faz coincidir.97 O corpo experimentado corresponde, na verdade, a um comportamento da vontade. Na vontade, o corpo objetivo não é uma parte, mas um todo – um todo entre outros todos que se relacionam lateralmente, e não subordinadamente. A relação imanente do “eu quero” com o involuntário não tem contrapartida numa hierarquia objetiva. A relação entre subjetividade e “objetividade” existe, mas não é a de simples coincidência e sim de diagnóstico ou indicação. Não é relação a priori, mas de processo de sinal-aprendizagem. Isto porque ambos têm um âmbito próprio, daí a necessidade de aprendizado. E nem sempre indicações empíricas conseguem descobrir o subjetivo.

Há articulação entre o voluntário e o involuntário em termos de motivação, movimento, condicionamento, etc., mas esta relação muitas vezes se mostra confusa. Não há um padrão entre a relação vontade-corpo. Será o epistêmico algo somente pertencente à consciência? Descrever é distinguir e não reunir: desejo não é decisão; movimento não é idéia; necessidade não é vontade de consenti-la. A consciência é quebrada em sua intenção de conhecer. Desencadeia-se uma ruptura interna. É preciso então ver que compreender a relação voluntário-involuntário não pode ocorrer na objetividade empírica das coisas, mas na objetividade de conceitos vistos e maestrados além de estruturas e atenção intelectuais: “requer participação ativa em minha encarnação como um mistério. O método descritivo precisa então incluir um movimento transcendente.98 Ir do problema ao mistério, da objetividade à existência.

A objetividade pode ser degradada ou não. A objetividade naturalista da volição humana é degradada. Intenção, atenção, motivação, não são fatos naturais. Vê-los como fatos só tem valor

96 IDEM. Ibid., p. 14 97 IDEM. Ibid., p. 15 98 IDEM. Ibid., p. 18

diagnóstico. A consciência é objetiva ao colocar essências diante do pensamento como seus objetos, tais como percepção, imaginação ou a vontade. Há uma perda de ser no conceito. Eu perco, mas ganho “certa” objetividade. Mas nela, perco o corpo. Fico com uma objetividade pobre e uma transcendentalidade pobre.99 A filosofia é a tensão entre o Cogito e a existência encarnada, mas não há como escapar dos conceitos, porque precisamos compreender a existência. Se quisermos suplantar o dualismo epistêmico procedente das exigências únicas de clareza e distinções do pensamento, e se quisermos descobrir a ligação real do “corpo como meu” com o “Eu que o vê, rende-se a ele ou o governa”, descobriremos que esta ligação é ela mesma uma polêmica.100 Um novo dualismo, um dualismo da existência dentro da unidade experienciada, substitui o dualismo epistêmico e subitamente o carrega com uma significância existencial radical que, de forma singular, vai além das exigências do método. A existência tende a se quebrar. Num certo sentido, a consciência é a interrupção de uma harmonia íntima:

“ ‘Um Eu harmonioso...’, disse o mais jovem dos três destinos. Contudo a consciência, como capacidade de julgamento e recusa, recua da realidade de seu corpo e dos objetos. A

vontade é a habilidade de negar. Em contraste, tal recuperação do eu, que o retira de uma

existência espontânea, faz toda espontaneidade parecer uma força um tanto injuriosa. Um sonho de pureza e integridade toma conta da consciência que, então, se concebe como idealmente completa, transparente e capaz de colocar-se absolutamente. A expulsão do corpo pessoal além do círculo da subjetividade, sua ejeção no domínio dos objetos considerados à distância, pode, neste ponto de vista, ser interpretado como uma revanche de uma subjetividade que se sente exposta, abandonada, jogada no mundo, e que perdeu a ingenuidade da compactação original.”101

Neste quadro dramático, o involuntário aparece como uma força hostil, fundamentalmente como uma natureza invencível, uma personalidade finita, um inconsciente indefinido e uma vida orgânica contingente. Mas o drama já está presente no estudo do movimento voluntário: o esforço não é apenas estímulo de capacidades dóceis, mas também uma luta contra uma resistência. Afinal, a própria habilidade de decidir qual é o tema da primeira parte, é sempre até certo ponto, uma recusa, um descarte de motivos rejeitados. De certo modo, a vontade sempre diz “não”. Assim, pouco a pouco, as relações do involuntário se revelam com uma perspectiva de conflito. A convicção que secretamente percorre as análises mais técnicas é que a recaptura da consciência é uma perda de ser, uma vez que a consciência é oposta ao seu corpo e a tudo, e procura fechar um círculo em si mesma. O ato do Cogito não é um ato puro de auto-afirmação: o ato do cogito vive do que recebe e num diálogo com as condições nas quais está enraizado. O ato de mim mesmo é ao mesmo tempo participação.

99 IDEM. Ibid., p. 19 a 20 100 IDEM. Ibid., p. 20 101 IDEM. Ibid., p. 21

O mistério, então, deve ser percebido e recebido como reconciliação, ou seja, como restauração, mesmo no nível mais claro da consciência, da concórdia original da consciência vaga com seu corpo e seu mundo. Neste sentido, a teoria do voluntário e involuntário não só descreve e entende, mas também restaura. Por isso, urge vermos o Cogito como participação, aprendizado e reconciliação, pois a consciência é tanto interrupção quanto união. Atrás da estrutura voluntário- involuntário reside o paradoxo que culmina no paradoxo da liberdade e natureza. A natureza não pode ser derivada da liberdade, ou vice-versa – não há como sistematizar este paradoxo. Será sempre um erro derivar a natureza (involuntário) da liberdade (voluntário) – tentação racionalista; quanto também é equívoco derivar a liberdade (voluntário) da natureza (involuntário) – tentação vitalista, naturalista, cínica, ou “psicanalista”. Mas então, o que impede o paradoxo de ser destrutivo? Como pode a liberdade ajudar a ser anulada por seu próprio excesso se ela não consegue recuperar sua conexão com a situação que, num certo sentido, a sustentaria? Uma ontologia paradoxal só é possível se for secretamente reconciliada. Não é nunca o que eu observo, mas antes o que serve como ocasião para a articulação do grande contraste da liberdade e natureza. Assim, há o conflito, mas nem por isso devemos ver o ser humano como dilacerado. Há um contraste, mas não desarticulação,102 contanto que eu aceite a contribuição ou o papel fundamental do mistério na condução do conflito.

Precisamos antes de tudo aprender a pensar no corpo como sendo eu mesmo, ou seja, como recíproco com a vontade que sou. Esta ultrapassagem do objeto não é colocada em questão de novo nem pela doutrina da escravidão, nem pela transcendência.103 Precisamos gastar tempo na exploração dos fundamentos da subjetividade demoradamente antes de tentar ultrapassá-la por dentro, e também de um certo modo, antes de ultrapassa-la por um excesso de imanência, como parece ser a tendência atual.

Ao quebrar o círculo estreito que o eu tende a fechar em si mesmo e ao revelar uma habilidade não só para postular, mas também para receber, acolher a, no coração da liberdade, a noção de encarnação prepara a concepção de uma recepção bem mais íntima que a liberdade realiza em seu próprio poder de postular atos. Talvez o corpo seja uma forma insegura de transcendência, e a paciência que se apóia na condição corpórea insup erável é uma forma velada de se render à