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I. A DINÂMICA CONSTITUTIVA DA VONTADE

3. VONTADE COMO INTENCIONALIDADE – a vontade no homem

3.2. A VOLUNTARIEDADE

3.2.2. Os motivos

Um motivo não é uma causa no sentido eficiente-operacional. Neste aspecto, os motivos não podem ser considerados nem causa nem efeito. No entanto, não podem tampouco ser entendidos separadamente da decisão da qual são motivos. A centralidade do motivo na decisão dá a esta decisão uma continuidade com o involuntário. O motivo é o que motiva a vontade, o que dá movimento. É o seu motor. O elemento concreto que a motiva – a concretude básica que não pode ser desvinculada da vontade. É o porquê no sentido de “o que justifica” o projeto. É um porquê original, o primeiro elemento estrutural que suscita a união entre voluntário e involuntário. Ele pode ser racionalizável ou não.

3.2.2.1. O NÍVEL DOS MOTIVOS BRUTOS OU CRUS

Os motivos brutos ou crus são aqueles que não possuem contornos e sentidos bem definidos. Apesar disso, eles são fortes e reais o suficiente, como um fogo presente na motivação da decisão inserindo conteúdos concretos e atuais. Estes motivos são a vitalidade presente no homem em seu nível primário. São eles que tornam possível relacionar em número de funções como necessidade, prazer-dor, habilidades pré-formadas (instintivas), emoção, hábito, etc., ao centro de perspectiva do eu.86

Tanto o material de valor ético quanto o naturalismo filosófico semelhantemente procuram estes motivos no corpo (naturalismo) e no mundo (eticidade) em termos de necessidades e desejos. Mas vimos que a necessidade não é auto-explicativa, mas é antes uma falta e um desejo que adquire direção definida somente quando apropriado por uma vontade, por um voluntário. Os motivos estão voltados para uma vontade e esta, por sua vez, só pode existir em razão destes motivos. Assim, desejos como prazer, dor, alívio ou desafio, constituem somente um material cru da motivação, confuso e contraditório, que assume a forma de motivos definidos somente quando é recebido pelo voluntário.

Como vimos, existe também a possibilidade de haver motivos que não podem ser identificáveis (ou de difícil identificação) por parte do voluntário. Quando isto ocorre, temos a presença do involuntário absoluto.

Também importante mencionar aqui, como observamos logo no início deste capítulo, a existência de um motivo não-específico, ou que não se vincula a nenhuma especificidade na vontade, não estando submetido à ordem causal. Trata-se de uma motivação fundamental que pertence à vontade de viver ou à vontade de querer, ou ainda se quisermos, à vontade da vontade. Esta motivação tem uma dimensão muito mais profunda que qualquer outra. Ela constitui-se independentemente de qualquer motivo específico e se relaciona ao mistério do poder-de-ser presente no ser humano.

3.2.2.2. O NÍVEL DOS MOTIVOS MAIS NITIDAMENTE DEFINIDOS

Quando os motivos assumem uma forma mais definida e delineada na medida em que são recebidos pelo voluntário, estes aspectos de motivação dão uma certa persuasividade ao formalismo na ética que procura a razão como dominante e equaciona a liberdade com sua soberania sobre o desejo. Entretanto, a lei racional kantiana é somente uma regra mínima que se mantém purame nte formal à parte de um reconhecimento do material de valor do outro. Assim, a polaridade como integração entre voluntário e involuntário persiste na motivação.

Os motivos, presentes no involuntário, são motivos para uma vontade na medida em que esta vontade é uma vontade definida por causa dos motivos e por sua motivação fundamental. Os motivos tornam a vontade atual e a vontade torna os motivos com sentido. O voluntário exige o ser- querer do desejo como um todo.

3.2.2.3. A CONEXÃO ÍNTIMA ENTRE OS MOTIVOS E O VOLUNTÁRIO

Mesmo no ato voluntário central, a dimensão do involuntário nunca é removida, pois não há nenhuma decisão sem motivos. Decido não somente para, mas também porque. Sem motivos não pode haver decisões, somente acontecimentos. Acontecimento é uma ocorrência humana destituída de motivos e, assim, a decisão adquire só o caráter formal, mas perde o conteúdo. Assim, os elementos determinantes de meu destino, sejam internos ou externos, não são meras limitações que se impõem a mim mas sim realidades nas e pelas quais sou real, apesar de eu não me tornar completamente idêntico a elas.

Esta polaridade aparece claramente no processo de escolha. Diferente de Sartre, Ricoeur vê a consciência hesitante não como o nada, mas como uma unidade de busca, experimentando projetos no modo condicional. Ainda, diferente de interpretações cosmológicas, Ricoeur vê a consciência como genuinamente condicional, como não ainda definida, não ainda um objeto. Por causa de sua conexão íntima com os motivos, a vontade não é um nada ou uma espontaneidade rejeitando todas as razões; e devido ao seu poder de mudar a atenção, de considerar ou não considerar motivos, tampouco ela é simplesmente um processo de raciocínio dedutivo de premissas (motivos) para uma conclusão (decisão).

Temos então uma dinâmica de dissipação e reunião no contexto dos motivos. Há um movimento de dissipação no qual o querer pode ser compelido a se esvair na multiplicidade do desejo e dos motivos. Aí, tem que se unir na integração da vontade. Para poder ser produtivo87, este

movimento deve estar integrado e ser integrador. Por um lado, os motivos podem ser da ordem dos estímulos que se encontram num nível superficial. Por outro lado, podem estar relacionados a uma motivação mais profunda, da ordem do viver e integrar a vida. Aqui a motivação não se constitui por um estímulo superficial, mas encontra-se sob o poder de uma força integradora.

Se um desejo estiver motivado pelo nível biológico, quase sempre se encontrará numa motivação causal pertencente a esta esfera e que pode ser sublimada. Mas há a motivação que não está sujeita à causalidade. Ela não é causada por nada especificamente mas pertence à força realizadora do ser humano. Neste nível, a motivação da vontade não é nem biológica nem mecânica. Quando esta motivação profunda se perde, a vontade passa a experimentar um cansaço estrutural. Perde-se a força integradora e a vontade sente-se como que diminuída ou suprimida. Mais ainda, os movimentos dissipadores e multiplicadores do desejo perdem seu sentido de reunião e reintegração profunda, pois não há nada a que se voltar. Os desejos e suas motivações são largados à sua própria sorte na esperança de que, sozinhos, acabem produzindo um certo poder integrador a partir de si mesmos. Entretanto, vimos que esta é uma tarefa impossível ao desejo, pois lhe falta um número de esferas que por si só, e por sua natureza, não pode organizar. O poder de força e de estruturação não lhe pertence. Este poder só pode vir da totalidade da estrutura da vontade, que em última análise, pertence à vontade da vontade, à força motivante não-motivada do poder de ser. A crise da vontade da vontade, mesmo sob a agitação das cores e tentativas de intensificação dos desejos, segreda na

87 Estamos empregando o termo “produtivo” não no sentido de produção de coisas, de objetos, mas para indicar a

qualidade do movimento volitivo de lançar-se em uma atividade e permanecer relacionado com ela, de modo que nela possa ser identificado e através dela ampliar sua capacidade de auto-percepção e percepção do mundo sob a forma do querer.

verdade não só o fato de que a vontade encontra-se desintegrada, como também o de estar numa grande encruzilhada paralisante.

3.2.3. O CORPO REVISITADO - O CORPO PORTADOR DA NECESSIDADE E