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Desenvolvimento Comunitário: Significado, Atributos e Controvérsias 63

1. Construção da Arquitetura do Enquadramento Teórico 45

1.1. Revisita às Noções de Desenvolvimento e Desenvolvimento Comunitário 45

1.1.2. Desenvolvimento Comunitário: Significado, Atributos e Controvérsias 63

Numa primeira aproximação, o desenvolvimento comunitário, também descrito na literatura consultada como o desenvolvimento da comunidade, é essencialmente um processo de mudança para uma vida melhor, dinamizado através do envolvimento dos membros da própria comunidade. Tal como refere Manuela Silva (1963) há mais de meio século, o desenvolvimento comunitário representa um “conjunto dos processos pelos quais uma população une os seus esforços aos dos poderes públicos com o fim de melho- rar a sua situação económica, cultural e social” (Silva, M., 1963, p. 543)21.

Não há dúvida que o desenvolvimento comunitário é um fenómeno social que tem animado os debates e discussões entre o domínio duma visão de desenvolvimento mera- mente economicista, o progresso e a modernização tecnológica (Martins, 2002), e uma orientação mais subjetiva dos papeis estratégicos que os atores sociais reclamam para a construção de um desenvolvimento alternativo, baseado nos seus interesses (Ife & Teso- riero, 2008; Carmo, 1999). Subjaz nesta perspetiva que o processo do desenvolvimento comunitário interceta outras realidades meso e micro sociológicas, entre as quais as se- guintes: “trabalho comunitário”, “organização comunitária”, “ação comunitária”, “prática comunitária” e “mudança na comunidade” (Ife & Tesoriero, 2008), ou “serviço social de comunidades”, e “intervenção comunitária” (Carmo, 1999), ou ainda “planeamento social e ação social” (Rothmann, 1987 citado por Carmo, 2001).

Já na época dos tempos idos de 1954, a ONU propunha como pressupostos da definição o desenvolvimento comunitário o seguinte (Sousa citado por Gómez, Freitas & Callejas, 2007):

“O fim principal: o melhoramento da vida comunitária e a sua participação no conjunto mais vasto da nação; O conteúdo especifico: a capacidade de integração (interna e externa) e de auto direção da comunidade; O processo: auto  esforço coerentemente organizado; Os meios: organização do esforço de autodesenvolvi- mento através da autoajuda e trabalho cooperativo; Os atores: são os membros

das coletividades, verdadeiros agentes do seu desenvolvimento” (Caramelo, 2009, p. 166).

Acrescentam ainda os autores que o conceito de desenvolvimento comunitário comporta um conjunto de elementos operacionais a saber:

“Participação das populações na elaboração e na execução dos programas; Os

estudos prévios para se conhecer a comunidade, as suas necessidades, os seus re-

cursos e programar os meios e os fins; A colaboração entre os poderes públicos e a população, como condição indispensável” (Caramelo, 2009, p. 166).

Na esteira do sentido que ONU atribui ao desenvolvimento comunitário, Gómez, Freitas & Callejas (referido por Caramelo, 2009) consideram que existe uma íntima rela- ção entre o processo de desenvolvimento da comunidade e a cooperação, cuja dinâmica promove a ação coletiva e a capacitação dos líderes locais22.

Não obstante a existência de diferenças terminológicas implícitas em cada um desses termos (Ife & Tesoriero, 2008, p. 2), é comummente aceite que o foco de desen- volvimento comunitário radica no desenvolvimento da comunidade no seu todo, na par- ticipação ativa e direta da comunidade nas escolhas dos rumos da construção do bem- estar ou na qualidade da vida em geral, e na mudança e melhoria das condições materiais e sociais de vida da própria comunidade em particular. Esta ideia de participação no de- senvolvimento comunitário, remete-nos à consideração que o seu processo se inscreve numa visão de empoderamento23 (empowerment)24 da comunidade, em que esta está ca-

pacitada e tem poder para agir, e que, em primeira e última instância, releva a importância

22 Para Gómez, Freitas & Callejas (2007), o desenvolvimento comunitário implica o seguinte: “i) a característica ori-

ginal primordial do Desenvolvimento Comunitário é a organização do auto-­‐‑esforço e da cooperação; ii) o Desenvolvi- mento Comunitário é apresentado como processo educativo e de organização, realçando-se assim a sua natureza qua- litativa, pois ‘promove a ação coletiva, orienta as instituições, e requer a aparição e capacitação de novos líderes locais’; iii) o Desenvolvimento Comunitário aplica-­‐‑se tanto às zonas rurais como às zonas urbanas, quer dos países do Sul, quer do Norte; iv) o Desenvolvimento Comunitário e o desenvolvimento global são complementares” (Caramelo, 2009, p. 168-169).

23 Tradução do português do Brasil de empowerment.

24 Tal como referido na nota de rodapé nº 15, os temas da participação e do empowerment serão aprofundados mais

do paradigma de desenvolvimento “de baixo para cima” (bottom-up approach) ou da abordagem centrada nas pessoas (people centered development) nas malhas da construção participativa do desenvolvimento do território, da comunidade e o do seu espaço social. Porém, para além desta perspetiva, existem outros autores que não excluem a definição de desenvolvimento comunitário como algo decorrente das iniciativas governamentais, embora apele ao envolvimento da comunidade, situação que traduz que há igualmente espaço para uma perspetiva top-down ou mesmo mista (top-down-bottom-up) na aborda- gem deste tipo de desenvolvimento (Tabela 1).

Os diferentes autores referidos na Tabela 1 (Ife, 1995; Ife & Tesoriero, 2008; So- etomo, 2008; Carmo, 1999; Gómez, Freitas & Callejas, 2007) salientam ainda que é es- sencial e fundamental para o desenvolvimento da comunidade que os processos reflitam a realidade social da comunidade, ou melhor a perspetiva das necessidades da comuni- dade.

Assim, os diferentes conceitos e ou perspetivas de desenvolvimento comunitário descritos na Tabela 1 remetem-nos à consideração que se uma dada perspetiva de desen- volvimento não corresponde à perspetiva e ou expetativa da comunidade local, trata-se meramente de uma perspetiva programada e determinada de fora (top-down perspetive) (Soetomo, 2008). Importa igualmente salientar que, na prática, sem que haja uma boa vontade da comunidade (ou das pessoas) de participar e de apreender para ganhar poder para agir (participação ativa e empowerment), não se sedimentam os processos de (des)- envolvimento, sendo apenas gerados alguns caminhos de (des)-empowerment da comu- nidade.

Face ao exposto, um processo de desenvolvimento comunitário que não contem- ple a própria iniciativa da comunidade e da sua boa vontade em participar ativamente, não passa de uma mera “retórica” do modelo de desenvolvimento, na medida em que radica num processo gerador de um (des)-envolvimento25 duma comunidade, ou melhor,

de atores não capacitados e sem poder para agir sobre os seus destinos.

25 Esta ideia de des-envolvimento é contrária à tese de Amaro (2003, 2017). Para o autor a ideia de “des-” significa

“libertar-se das amarras anteriores” do desenvolvimento centralista. Para nós a ideia de “des-”, tem uma conotação negativa, na medida em que significa “perca”, “ação contrária” e ou “negação” (cf. https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/con-

Tabela 1: Principais perspetivas sobre o Desenvolvimento Comunitário

Fonte: Compilado pelo autor.

De relevar ainda que, de acordo com Ife & Tesoriero (2008, p. xxiv), a abordagem de baixo para cima parece ser baseada nos princípios ecologia, justiça social e diretos humanos. Se assim for, parecem ser a priori os pressupostos ideais para a dinamização do desenvolvimento comunitário. Contudo, parece-nos que não existem processos de de- senvolvimento da comunidade que reflitam puramente a perspetiva de baixo para cima (bottom-up perspective), na medida em que os processos podem ser dinamizados de forma top-down através de iniciativas governamentais, onde se apela meramente à acei- tação pela comunidade das iniciativas propostas externamente (Soetomo, 2008).

Autor Definição de desenvolvimento comunitário Perspetiva Top-down

Jim Ife (1995) “O desenvolvimento comunitário pode ser caraterizado por cinco elementos: perspetiva de justiça social; abordagem do desenvolvimento utilizada que não sacrifica a comunidade; fomento do empowerment; necessidade; e, por último, o direito. Além disso, o desenvolvimento comunitário é composto por seis dimensões, incluindo o desenvolvimento social, desenvolvimento económico, desenvolvimento político, desenvolvimento cultural, desenvolvimento do meio ambiente e desenvolvimento pessoal” (Ife, 1995).

ONU (1954 citado por Caramelo, 2009) ONU (1999 citado por Biggs,

1999 cf. J. Cavaye, 2006)

“O desenvolvimento comunitário é um processo em que as pessoas se juntam, apoiam e dinamizam as iniciativas das autoridades governamentais para melhorar as condições económicas, sociais e culturais das comunidades, fomentando a integração das comunidades na vida da nação, contribuindo assim de forma plena para o progresso nacional”.

Ife & Tesoriero (2008, p.3) “O desenvolvimento comunitário representa um processo de formação ou restabelecimento das estruturas da sociedade humana e que permite novas formas de vincular e organizar a vida social e satisfazer as necessidades humanas”.

Perspetiva Bottom-up Christenson & Robinson

(1989 citado em Soetomo, 2008, p.81)

O desenvolvimento comunitário define-se como “um processo e um lugar onde a comunidade viva para desenvolver iniciativas de ação social (com ou sem intervenção) para alterar os ambientes cultural e da comunidade social, económico”. Segundo Soetomo (2008), esta definição pode significar que a intervenção do desenvolvimento comunitário a partir do exterior não representa uma obrigação, sendo o mais importante, a iniciativa e a participação comunitária no processo em execução.

Christenson et. al. (1989)

citado por Cavaye (2006) “O desenvolvimento comunitário é um grupo de pessoas duma comunidade que decide iniciar um processo de ação social para mudar a sua situação económica, social, cultural e ambiental”. Soetomo (2008) “O desenvolvimento comunitário é um processo de mudanças que tem como finalidade alcançar ou colmatar as necessidades através dos recursos locais, incluindo a capacidade de ação da própria comunidade na construção do processo”.

Gómez, Freitas & Callejas

(2007) “O desenvolvimento comunitário é a organização do auto!esforço e da cooperação, sendo apresentado como um processo educativo e de organização que realça a importância da acão coletiva”

Perspetiva Conjunta (articulação Top-down-Bottom-up) Ander-Egg (1980, p. 69)

citado em H. Carmo (1999, p.77; 2001)

O desenvolvimento comunitário caracteriza-se como “uma técnica social de promoção do homem e de mobilização de recursos humanos e institucionais, mediante a participação ativa e democrática da população, no estudo, planeamento, e execução de programas ao nível das comunidades, destinados a melhorar o seu nível de vida” (Ander-Egg 1980, p. 69).

ONU (1955 citado por Silva, M. 1962; Ferreira & Raposo, 2017, p.122; Carmo, 1999, p.

77)

O desenvolvimento comunitário é “um processo tendente a criar condições de progresso económico e social para toda a comunidade, com a participação ativa da sua população e a partir da sua iniciativa” (ONU, 1955).

J. Cavaye (2006) “O desenvolvimento comunitário é um processo que fomenta não apenas a criação de mais empregos, rendimentos e infraestruturas, mas também proporciona que as comunidades sejam mais capazes de gerir as mudanças. Os membros da comunidade podem mobilizar melhor as suas habilidades e competências, reformular o problema, trabalhar cooperativamente e utilizar os recursos da comunidade de forma inovadora”.

Longe de reduzir a leitura do desenvolvimento comunitário como uma mera ex- petativa para a comunidade local forjada pelas iniciativas governamentais, parece-nos relevante considerar que a operacionalização de tais processos comunitários carece de uma combinação cuidada da perspetiva “de cima para baixo” (top-down perspective) com a perspetiva “de baixo para cima” (bottom-up perspective). Em termos sumários, somos levados a considerar que não há desenvolvimento da economia da comunidade (p.e. me- didas propostas por iniciativas governamentais) sem um adequado desenvolvimento so- cial da comunidade que majore as iniciativas da própria comunidade e que tome em aten- ção o mosaico de fragmentação da multiplicidade dos interesses dos grupos e seus con- textos, visto que uma comunidade não é ela toda homogénea (Caillouette, Roos & Aubin, 2013).

Em termos práticos do desenvolvimento comunitário no terreno, de acordo com Jack Rothman (1987 citado por Carmo, 2001, p. 7) existem três modelos de intervenção comunitária propriamente ditos: a) modelo de desenvolvimento local (perspetiva micro social e orientada para o processo); b) modelo de planeamento social (perspetiva meso e macro, e, orientação para o resultado); e, c) modelo de ação social (perspetiva integrada- micro-meso-macro). Estes três modelos de intervenção comunitária são oriundos de pa- radigmas de desenvolvimento de cima para baixo (top-down perspective), mas diferem entre si quanto às suas orientações e tipologias de intervenções. Nesta linha de ação, a palavra intervenção é perspetivada como uma proposta de ação vinda de fora (top-down

approach), situação que remete ao papel da comunidade apenas um mero objeto de de-

senvolvimento. Porém,

“do ponto de vista pragmático, o Desenvolvimento Comunitário, nesta perspetiva, deve promover um desenvolvimento à escala humana, satisfazendo as necessida- des humanas num determinado espaço e tempo históricos, através de uma atuação que gere relações sistémicas entre atores sociais diversos na sua posição instituci- onal e estratégias de intervenção” (Caramelo, 2009, p. 185).

Ainda para o autor que seguimos e na esteira das teses de Gómez, Freitas & Cal- lejas (2007) e das recomendações da PNUD, o que importa no desenvolvimento comuni- tário é ter sempre presente que as comunidades são os principais atores do desenvolvi- mento pelo que se “assiste às comunidades locais a possibilidade de tomarem decisões, serem protagonistas no seu próprio desenvolvimento e intervirem em todos os problemas que lhes são afetos” (Gómez, Freitas & Callejas, 2007, p. 113 citado por Caramelo, 2009, p. 174). Daí que é relevante, ter em atenção num processo de intervenção comunitária, os modos de ação e de intervenção num território na medida em que tais procedimentos podem aumentar ou restringir o potencial da ação coletiva e autonomia dos atores sociais (Caillouette, Roos & Aubin, 2013).

Na atualidade, para reconciliar as perspetivas e práticas de desenvolvimento co- munitário, nomeadamente a interdependência dos três modelos de intervenções comuni- tárias referidos acima, importa considerar o seguinte. Em primeiro lugar, é de considerar a existência de novas formas de agir que relevam que

“as relações políticas tornaram-se cada vez mais importantes e os agentes públicos introduzem sistemas de intercambio de informações, de negociações, que, através do confronto e da mediação de interesses produzem decisões onde anteriormente funcionavam mecanismos autoritários de normas e de poder” (Guerra, 2005, p. 15).

Em segundo lugar, que um modelo de planeamento social na intervenção comu- nitária pode ser considerado como uma típica intervenção comunitária (planeado/progra- mado) de origem externa (top-down perspective), cujo enfoque é a orientação para o re- sultado material, e não o processo (bem-estar e qualidade de vida das pessoas). Todavia, não obstante os outros dois modelos (modelo de desenvolvimento local e modelo de ação social) poderem igualmente ser considerados como intervenções comunitárias de origem externa, tais modelos podem conciliar as perspetivas da comunidade com as propostas externas. Por outras palavras, admite-se que esses dois modelos de intervenção comuni- tária (modelo de desenvolvimento local e modelo de ação social) podem constituir-se

como um processo construído através da participação ativa e empowerment da comuni- dade, que na linha como temos vindo a refletir, representam elementos vitais e fundamen- tais no processo de desenvolvimento da comunidade. Assim, podemos considerar que, embora sejam de origem externa, os modelos de intervenção do tipo de desenvolvimento local e ou de ação social podem acolher abordagens de desenvolvimento de “baixo para cima” (bottom-up perspective), para fomentar uma intervenção comunitária mais “mus- culada” da participação ativa da comunidade no processo de desenvolvimento, em parti- cular nas questões sobre o bem-estar e a mudança e melhoria das suas condições de vida (Ife & Tesoriero, 2008; Soetomo, 2008).

É pela constatação da necessidade de uma certa interdependência entre os modelos de ação e intervenção que não podemos negar que nos países subdesenvolvidos, tais como o “jovem” país de Timor-Leste, tenham adotado inicialmente na pós-independência, um modelo mais próximo do planeamento social (top-down approach) nas intervenções co- munitárias fomentadas pelas instituições governamentais, com apoio dos países doadores. Porém, tal como iremos voltar a abordar mais adiante esta questão a propósito do desen- volvimento comunitário em Timor-Leste, o planeamento social (top-down perspective) serviu como um “estímulo” para a sedimentação dos outros dois modelos de intervenção comunitária (desenvolvimento local e ação social), dinamizados através da abordagem

bottom-up approach de desenvolvimento comunitário. Sintetizando as ideias, na nossa

perspetiva, falar em desenvolvimento comunitário, estamos igualmente a falar de plane- amento social (top-down approach), desenvolvimento local e ação social (bottom-up

approach) no processo de desenvolvimento da comunidade, modelado inevitavelmente

por três modelos de intervenção comunitária que reconciliem os interesses globais e lo- cais, a relação entre a comunidade e os atores ou agentes de desenvolvimento, de modo que sejam implementadas ações que, com a inclusão de todos, conduzam de forma frutí- fera a satisfação das necessidades básicas, no máximo respeito pelas tradições locais, o ambiente e a sustentabilidade do espaço social, tal como o descrito no seguinte esquema da Figura 1.

Em síntese, se o desenvolvimento comunitário promove a ação coletiva, a partici- pação e a mudança, tal como refere Caramelo (2009), somos a considerar uma certa pers- petiva teórica do desenvolvimento comunitário

“que se prende com a sua inevitável dimensão ética que não pode desligar-­‐‑se do sentido positivo que, enquanto prática social, o Desenvolvimento Comunitário atribui à mudança, bem como do sentido emancipatório que constrói para o sujeito que se produz através da sua praxis e para as relações sociais que este estabelece” (Caramelo, 2009, p. 185-186).

Figura 1: Relação entre os modelos de intervenções comunitárias no contexto de desenvolvi- mento comunitário