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O despertar das Bestas

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (páginas 122-127)

SEÇÃO III – CAPITALISMO E CIÊNCIA: os pressupostos epistemológicos de uma

3.1 O despertar das Bestas

Harari (2016) afirma que o ponto de virada dessa nova era, denominada Antropoceno, aconteceu com o advento do que hoje denominamos homo sapiens. Isso porque foi a partir desse momento que começaram as transformações de forma intensa no sistema do planeta. É importante dizer que o autor não defende que antes do homo sapiens havia uma harmonia perfeita e estável sem alterações, muito pelo contrário, pois antes do advento do homo sapiens muitas transformações sacudiram o planeta como, por exemplo, a era do gelo, a movimentações das placas tectônicas e a colisões de asteroides. Esses fatos naturais e exteriores, no caso dos asteroides, causaram destruição em massa, mas fizeram

parte do próprio funcionamento do planeta e do universo, ou como será abordado mais a frente, faz parte da Terra enquanto um agente: Gaia41.

A questão é que, antes do homo sapiens, nenhuma espécie havia sido o motor de destruições em massa. Assim, a partir do homo sapiens não há mais fatos do acaso, exteriores e da natureza que determinam os rumos do planeta, mas sim o próprio homo sapiens que surge como uma besta destruidora42. O que se deve temer, desde então, não vem de fora. O grande e maior algoz dos últimos milênios é próprio homo sapiens. Isso pode ser facilmente percebido quando a história da terra é colocada em perspectiva com a história do aparecimento da humanidade.

Segundo pesquisas na área de geologia, a espécie humana, como a concebemos hoje, é uma aparição tardia no planeta, algo em torno de sete mil anos em relação a um planeta que possui cerca de 4,5 bilhões de anos. Pensando na era industrial e no modo de vida baseada em energias fosseis, que data de praticamente pouco mais de um século, a sociedade atual representa alguns meros segundos neste tempo. Entretanto, a humanidade, nesses poucos segundos, trata-se de “[...] uma catástrofe, um evento súbito e devastador na história do planeta, e que desaparecerá muito mais rapidamente que as mudanças que terá suscitado no regime termodinâmico e no equilíbrio biológico da Terra” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014a, p. 27).

Para demonstrar como o homo sapiens teve e tem esse efeito devastador no planeta, Harari (2016) traz alguns dados que são, no mínimo, chocantes. A constatação é de que atualmente o mundo é habitado majoritariamente por humanos e seus animais domésticos. Animais domésticos que ou servem para nos divertir e suprir nossas carências afetivas ou servem para suprir nossa fome. “Atualmente, mais de 90% dos animais de maior porte do mundo (isto é, os que pesam mais do que uns poucos quilos) são ou humanos ou animais domesticados” (HARARI, 2016, p. 80).

Segundo o autor, o planeta terra possui 200 mil lobos selvagens. Um número que parece até interessante, mas quando colocado ao lado do número de cães que estão dormindo em nossos sofás a perspectiva muda. Hoje são cerca de 400 milhões de cães domesticados no mundo. Existem também 600 milhões de gatos domesticados que sobem em nossas

41 Várias pesquisas apontam que o planeta já sofreu no mínimo cinco grandes extinções em massa. A respeito,

ver artigo “Big Five mass extinction events” no portal online da BBC (BBC, 2014).

42 Para uma visão desse processo de forma artística ver o curta metragem de animação de Steve Cutts chamado

“Man” disponível no Youtube, que mostra como os humanos se pensam reis do mundo, colocando toda a natureza ao seu serviço. O link para o vídeo é o que segue, acessado no dia 17 de maio de 2017:

camas, enquanto 40 mil leões estão lutando para encontrar uma presa na devastada savana africana. Ainda existe 1,5 milhão de vacas e cerca de 20 bilhões de galinhas. Isso sem levar em consideração a diversidade da flora que perde espécies a cada ano em relação à produção de monoculturas como soja e milho.

Mas por que fazer essa relação de animais domésticos e selvagens?

Essa comparação permite mostrar que mesmo com o aumento da chamada consciência ecológica da década de 1970, o número de animais selvagens decresce a cada ano em relação aos animais domésticos. Assim, o surgimento do homo sapiens, há mais de 70 mil anos, marca o que se vem convencionando chamar de Antropoceno, ou a era da humanidade. Isso porque, durante todo esse tempo foi o homo sapiens o fator mais importante na mudança da ecologia e no sistema do planeta. Nesses 70 mil anos o ecossistema global mudou de forma jamais vista. A ação antrópica já ultrapassa o impacto causado pela era do gelo e do movimento das placas tectônicas. Mais o pior não é isso. Se continuarmos nesse ritmo de depredação, em algumas décadas, pode-se superar o nível de destruição do impacto do asteroide que matou os dinossauros.

De fato, segundo investigação realizada por pesquisadores das universidades de Stanford, Princeton e Berkeley, o número de desaparecimento de animais vertebrados está em um ritmo 114 vezes mais rápida que o normal. Ou seja, enquanto nas últimas décadas o número de humanos quase dobrou, o de insetos e de crustáceos diminuiu cerca de 45%. Isso significa, segundo o estudo, que cerca de 322 espécies desapareceram nos últimos cinco séculos (PLIMM et al, 2014). Em entrevista à BBC Brasil, um dos autores do estudo citado, Gerardo Cabellos, afirmou: “Estamos entrando agora no sexto grande período de extinção em massa” (BBC BRASIL, 2015).

Esses, portanto, são apenas alguns números da época áurea de um fenômeno bem antigo. Como Harari (2016) observa, a estreia do homo sapiens, há milhares de anos na savana africana, significou, de saída, a extinção de outras espécies humanas e uma profunda modificação na flora e na fauna de todo continente. Entretanto, é importante pontuar, que todas essas mudanças dizem respeito a períodos longos na trajetória do homo sapiens. É praticamente certo que eles não tinham a real dimensão de que estavam ocasionando a extinção de espécies, mesmo porque a vida de um humano nesse período era muito curta. É possível especular, com certo grau de acerto, que em determinados momentos esses humanos começaram a perceber que alguns animais que faziam parte da paisagem e até da alimentação corriqueira estavam mais difíceis de serem encontrados. Harari (2016, p. 83) afirma que

algum ancião nostálgico poderia ter dito a época: “Quando eu era jovem, havia muito mais mamutes do que agora. Assim como havia mais mastodontes e alces gigantes”.

O sentimento de mudança e o saudosismo acompanharam a personalidade do homo sapiens através dos milênios, pois nas conversas no Assentamento não foram poucas as lembranças de um tempo em que as coisas eram diferentes e pareciam estar melhor postas e ordenadas, como foi possível ver na fala com Seu Chico, na seção anterior.

E conversando com Tereza foi possível perceber como existe uma relação no que tange ao tempo pretérito e o tempo vivido: “Antigamente se tinha 60 a 90 dias de seca, hoje a gente tá chegando a 6 meses de seca. E essa seca, segundo Roger, acontece “porque antigamente tinha mais mato e o que faz a chuva é os mato”. Em uma prosa com Seu Chico e Simão, seu filho, é possível perceber, ainda uma outra vez, esses elementos:

Seu Chico: O milho aquele tempo era setembro, outubro, né [para plantar]? Há trinta

anos atrás, né? Povo ia lá tentando, né? Até em agosto o povo plantava milho, naquele tempo, plantava e dava bom hein...

Entrevistador: Agora mudou isso, o mês do milho?

Seu Chico: Agora ninguém, tem que falar a verdade, ninguém tá entendendo... Simão: Descontrolou.

Seu Chico: Descontrolou tudo agora. Que nem nóis agora plantamos milho em

fevereiro, né?

Simão: Março...

É interessante perceber que fora este ambiente de adversidades, experimentado pelos primeiros homens e mulheres, que os levaram a buscarem alternativas de fontes de alimentos. Este foi, segundo as evidências arqueológicas e antropológicas, o primeiro passo dos homens e mulheres no processo de separação com a natureza. Isso porque os humanos e os outros animais, assim como observou Lévi-Strauss (2009, p. 211), viviam em uma relação simbiótica: “Para os ameríndios e a maior parte dos povos que viveram muito tempo sem escrita, o tempo dos mitos foi aquele em que os homens e os animais não eram realmente distintos uns dos outros e podiam se comunicar entre si”.

A atitude animista dos primeiros homo sapiens, portanto, conferiam a eles uma visão holística do seu redor, e todos os habitantes do planeta seguiam um conjunto de regras comum, as quais eram possíveis porque “[...] as pessoas falavam com animais, árvores e pedras, e também com fadas, demônios e fantasmas. Dessa rede de comunicações emergiam

os valores e as normas que comprometiam igualmente humanos, elefantes, carvalhos e assombrações” (HARARI, 2016, p. 86).

Lévi-Strauss (2009) faz uma interessante observação sobre essa relação entre os humanos e a natureza nos dias de hoje, nas sociedades ditas modernas ocidentais. Para ele, salta aos olhos o fato de que desde que as crianças nascem, tentamos lhes passar um senso de continuidade e de ligação ao cercá-las com simulacros de animais de plástico e pelúcia, em uma tentativa de “[...] lhes dar a nostalgia de uma unidade que em breve saberão terminada.” (p. 211).

Vale pontuar, portanto, que a preservação desse tipo relação não está restrita aos simulacros de plásticos e pelúcia, pois esse tipo de visão de mundo animista ainda está presente em comunidades indígenas na América do Sul e na Ásia. Nessas comunidades, é importante pontuar, o modelo cosmológico e mítico de formação do mundo, em muitos casos, preveem a existência humana antes de qualquer outra coisa: uma humanidade-ainda- sem-mundo. “É a Natureza que nasce ou se ‘separa’ da Cultura e não o contrário, como para nossa antropologia e nossa filosofia” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014a, p. 92). E todos os animais existentes, mesmo os que servem de alimento, são na verdade humanos transformados em animais. É justamente por isso que os povos ameríndios sem escrita concebem a alimentação carnívora como uma forma um pouco atenuada de canibalismo. Isso se dá, segundo Lévi-Strauss (2009), por conta de uma humanização na relação entre caçador ou pescador e presa, lhes concebendo uma relação de parentesco.

Cabe ressaltar, porém, que em grupos sociais de camponeses uma ligação mais estreita com a terra os leva a um tipo de visão da natureza que beira o animismo, mas em moldes de uma religiosidade cristã com influências das sociedades modernas43. Irei aprofundar esse tema no decorrer do texto, porém trazer esse ponto à tona aqui me permite dizer que o desenho que estou traçando não se pretende linear e sucessório. Ou seja, esse é apenas um grande esquema do que foi a história dominante. Os resquícios, as resistências e as alternativas aparecerão, principalmente, na última seção da tese.

Para prosseguir, o fato é que a partir do momento em que alguns humanos tiveram a ideia de não mais depender da natureza para coleta e dos acasos e corridas para caçarem e passaram a domesticar os animais para ficarem mais perto de suas moradias, e plantar, para ter mais regularidade, a relação com a natureza e outros animais passou a ser outra. Algo

43 Ver como se dá essa relação de elementos da natureza e sobrenaturais na cultura camponesa no livro de

dentro da mentalidade do homo sapiens começou a lhe informar que os outros seres, por terem sido dominados, eram inferiores. E o mito de Adão e Eva explica essa revolução agrícola.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (páginas 122-127)